20 anos de “Zero e Um”, do Dead Fish

O vocalista Rodrigo Lima relembra a história do disco que se tornou um clássico do hardcore brasileiro e mudou a vida da banda capixaba

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Fotos: @youknowmyface

“Vamos celebrar os 20 anos do álbum que mudou a nossa vida”. Logo que subiu o palco de uma Audio Club (SP) abarrotada e pulsante, Rodrigo Lima, vocalista do Dead Fish, anunciou o motivo para o show do dia 8 de dezembro de 2024, parte de uma turnê comemorativa do disco Zero e Um que, além de São Paulo, passou por Porto Alegre, Florianópolis, Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Na sequência, Rodrigo, prevendo o caos ordenado, alertou: “Ajudem-se. Ajudem os amiguinhos”. Não era para menos. Já na primeira sequência ríspida de power chords (D – F#) de “A Urgência”, abertura do show e do disco, as mais de três mil pessoas no espaço na  Av. Francisco Matarazzo fizeram o chão tremer (sem força de expressão) e entraram em um ritual hardcoreano coreografado em mosh-pits, berros a plenos pulmões e vais e vens de massas humanas. Rodrigo, aos 51 anos de idade e quase 35 à frente do Dead Fish, sentiu que a noite era especial. “Da terceira música para frente, deixei de ser humano – eu passei a flutuar. Não tinha mais respiração, não tinha mais nada. Era tudo uma coisa só”, ele conta. Junto da atual formação, que, além do vocalista, conta com Marcos Melloni (bateria), Ric Mastria (guitarra) e Igor Tsurumaki (baixo), estava Philippe Fargnoli, hoje integrante do CPM 22 e, lá em 2004, uma das peças-chave no desenvolvimento de Zero e Um. “Não é mais meu álbum preferido da banda já há algum tempo, mas ter executado essa turnê com os caras, e com o Phil, me levou para um lugar do qual eu já não lembrava”, define Rodrigo. Tiago Hóspede (guitarra), Alyand (baixo) e Nô (bateria) completavam a formação na época do disco de 2004. E por que Zero e Um é tão especial?

Em 2004, o Dead Fish estava longe de ser principiante. Formada em 1991, em Vitória (ES), a banda já acumulava duas demos e três discos de grande repercussão no underground nacional: Sirva-se, Sonho Médio e Afasia. O último, gravado no fim de 2000, rendeu turnês com mais de 100 shows por ano até 2003. Tanto tempo na estrada desgastou a relação entre os integrantes e, somado a isso, veio a crise das mídias físicas – que, segundo Rodrigo, impactou muito o cenário independente e endividou a banda, à frente do selo Terceiro Mundo Produções Fonográficas, que aos poucos se profissionalizava. “No começo dos anos 2000, estava tudo muito bem estruturado. Mas aí quando começou CNPJ, imposto, aluguel… Nós saímos do auge do independente, de uma euforia, para uma dívida brutal”. Rodrigo, inclusive, chega a afirmar que, no final de 2003, a banda realmente acabou. “Eu queria ir embora, não suportava mais estar numa banda. Era visível. Se alguém pegar vídeo dos últimos shows do Afasia, vai perceber o quanto era insuportável, para mim, estar no Dead Fish. Até para os caras da banda, porque eu era mais insuportável que todo mundo”. Seria o provável fim da banda – caso não chegasse um convite, o segundo na verdade, feito pela Deck Disc e, especialmente, feito pelo produtor Rafael Ramos. “O timing dele foi brutal”, lembra Rodrigo.

Antes do fim iminente, o Dead Fish realizou uma curva acentuada, cujo caminho era nebuloso, mas, se saberia depois, redentor: assinar. O contrato com a Deck, claro, não foi concretizado sem alguns percalços e desconfianças. “Aquele convite me irritou profundamente”, diz Rodrigo. “Eu não queria, aí o Nô [um dos fundadores da banda, ao lado de Rodrigo] falou assim: você quer, sim. Não é você que diz que não existe ‘eu’ no meio da crew? Você tem que seguir essa regra. Você impôs isso mil vezes aqui e agora a regra vai valer para você. E eu falei: é isso”.

Em abril de 2004, Zero e Um chegou ao mundo, entoando em seu primeiro verso que aquele era o dia da revolução – e que não havia ninguém nas ruas. O resto é história. Aqui, Rodrigo relembra os bastidores, personagens e lições de um dos maiores clássicos do hardcore nacional.

Dead Fish, formação de 2004.

Queria começar um pouquinho antes do Zero e Um. Esse período depois do Afasia (2000), entre 2001 e 2003. Como estava o Dead Fish nessa época?

Quando a gente lançou o Sonho Médio (1998), recebeu monte de convite de gravadora, com aqueles contratos, um mais cretino que o outro. Quem viveu o período sabe um pouquinho o que eram aqueles contratos. E a gente tinha a nossa própria gravadora, a nossa própria distribuição. Nós éramos uma banda de cinco pessoas, cada um fazia uma coisa. Murilo fazia uma coisa, eu fazia outra, tinha a Terceiro Mundo [Produções Fonográficas]. Então, a gente falou: “nesse momento, a gente tá vencendo, meus camaradas”. Eu vendo minhas próprias coisas, eu faço minha própria edição. É isso. Mas aí veio 2001/2 – Napster, baixar torrents e tudo mais. A gente achou que o independente ia vencer – e veio o fim de mídia física. Havia uma crise, que era a crise das majors, que perpassou totalmente os selos independentes. A gente saiu de uma euforia de anos 2000 muito brutal… Aí o Dead Fish resolveu se profissionalizar como selo. Abriu CNPJ, saiu do quarto da minha mãe. E aí começou a tomar prejuízo. Começou a parar de vender.

A gente vendia muito CD na estrada, fazia muita turnê e levava. Só que o que acontece? Tinha um escritório para cuidar. No começo dos anos 2000, tava tudo muito bem estruturado. Mas aí quando começou CNPJ, imposto, aluguel… Nós saímos do auge do independente para uma dívida brutal. E acho também que por conta de uma incompetência administrativa. Se a gente tivesse um pouco mais de maturidade, teria conseguido driblar por mais cinco ou seis anos. Mas foi isso: a gente foi para uma crise brutal. E essa crise tá muito estampada no Afasia. Muito estampada no Rodrigo, que tinha acabado de sair da faculdade, que escolheu não ser um operador do Direito e virar um vocalista de banda. Isso tá muito bem refletido no Afasia.

E o fim da turnê do Afasia foi uma coisa meio trágica porque foram mais de cento e tantos shows por ano, entre 2001 e 2003. Não tem banda sem estrutura que resista a isso, na estrada, viajando de van. Digo isso para todo moleque que vem perguntar. Eu falo: se vocês forem fazer mais de 100 shows, por favor, tentem se entender ou delegar coisas às pessoas. Porque a banda acaba. E foi isso que aconteceu com o Dead Fish. A banda, no final de 2003, acabou. Eu não falava com o Murilo, mal falava com o Alyand. Mas aí o Rafael Ramos, que já tinha feito um convite para a gente, falou: nós temos aquele contrato aqui, vocês querem? Ele teve um timing muito brutal. Porque, se não me engano, posso estar falando besteira, mas era para a gente ter entrado quando a Pitty foi contratada. Era para a gente ter começado ali, mas a gente mandou o Rafa às favas [risos].

“Aquele convite [da Deck] me irritou profundamente. Na época, queria ir embora, não suportava mais estar numa banda. Era visível. Se alguém pegar vídeo dos últimos shows do Afasia, vai perceber o quanto era insuportável, para mim, estar no Dead Fish. Até para os caras da banda, porque eu era mais insuportável que todo mundo. Mas… Foi redentor, né?”

É doido, porque nessa época vocês já tinham Sirva-se, Sonho Médio e Afasia. Não era uma banda começando, muito longe disso…

Sim, a banda já tinha mais de uma década e a gente já tinha todas as ferramentas. Dos transportes aos contratantes. A gente, provavelmente, sabia quem eram os contratantes de todas as capitais de Sudeste, Sul, de parte do Nordeste e do Centro-Oeste. A gente não tinha chegado ao Norte ainda. A gente tinha a nossa própria distribuição e prensava o nosso próprio álbum. Era o sonho de qualquer punk, sacou? Eu não diria que “ah, fomos destruídos pelo sistema”. Sim, como sul-americanos, somos destruídos pelo sistema. Mas rolou uma incompetência. Rolou uma desinteligência, como dizem os poliça, né? Mas se a gente estivesse num lugar com um pouco mais de estabilidade, muito provavelmente o selo teria durado mais 15, 20 anos, sei lá.

Você sente que, de alguma forma, esse contato do Rafael acabou sendo uma salvação para a banda?

Aquilo me irritou profundamente. Aquele convite me irritou profundamente. Na época, eu queria ir embora, não suportava mais estar numa banda. Era visível. Se alguém pegar vídeo dos últimos shows do Afasia, vai perceber o quanto era insuportável, para mim, estar no Dead Fish. Até para os caras da banda, porque eu era mais insuportável que todo mundo. Mas… Foi redentor, né? Fui ao Rio, vi o estúdio, troquei ideia com o Rafa, que era um garoto cheio de ideias, o cara do Mamonas, da Pitty. E eu, do meu lado, tava fechando um escritório, com uma dívida gigante. Com dois caras que eu mal falava, tirando o Nô, que era meu amigo de infância. E ele [Rafael] falou: a gente pode tentar de outro jeito, a banda é boa, vocês querem fazer? E eu não queria, aí o Nô falou assim: você quer, sim. Não é você que diz que não existe “eu” no meio da crew? Então, você tem que seguir essa regra. Porque nós todos queremos e foda-se o que você quer. Você impôs isso mil vezes para um monte de gente aqui e agora a regra vai valer para você. E eu falei: é isso.

Você hesitou no começo então?

Nós brigamos. Na verdade, eu briguei, né? Eu fui às vias de fato com o Nô, um cara que era o dobro do tamanho, com um braço que é o triplo do meu. E ele não reagiu, só me segurou e falou assim: você faz o que você quiser, mas você fica. Aí fui fazer entrevista no consulado americano, tinha tido o 11 de setembro, não tava rolando os vistos e eu fui negado. Saí do consulado e fui direto para a Deck, falei “deixa eu ler o contrato” [risos]

Você ia para os Estados Unidos?

Sim, eu ia para os Estados Unidos e depois para a Europa, fazer um curso de Diretos Humanos, na universidade. Nem sei como eu ia fazer isso, porque eu não tinha dinheiro, mas estava disposto a ir.

Dead Fish na Audio Club, 8/12/2024 (Foto: @youknowmyface)

“[No show da Audio] Da terceira música para frente, deixei de ser humano – eu passei a flutuar. Não tinha mais respiração, não tinha mais nada. Era tudo uma coisa só”

E como foi a sua relação com o Rafael? Quando você começou a ganhar confiança e pensar “acho que isso vai funcionar”?

Cara, a relação saiu do bullying deadfishiano para o extremo respeito, em questão de meses. A gente chamava ele de “Rafael Baba Cósmica”, a gente barbarizava, o Alyand e o Nô eram sem filtro. E foi disso para o extremo respeito. Ele me ensinou as intenções na hora de cantar. Foi dentro do estúdio da Deck que eu aprendi algumas coisas de flow, não só com o Rafa, mas com o Phil [Fargnoli] e até um pouco com o [Tiago] Hóspede. Aquele álbum foi um ponto de mudança muito forte. E fora que a energia ali era de muita felicidade. Nós, três meses antes, estávamos muito fodidos. Meses depois, estávamos morando na Barra da Tijuca, perto da praia, com gente perguntando que tipo de instrumento e microfone a gente queria usar. Foi muito redentor. A gente fez o álbum em Vitória já com uma data para ir embora, eu quase já não ficava em Vitória, já morava sozinho, mas tinha uma namorada aqui em São Paulo. Então, era tudo muito grande para uma banda que quatro meses antes tinha falido, sabe? E acho que isso perpassa o álbum. Mesmo as letras não sendo tão otimistas assim. É impressionante. Uma vez, o Juninho [Sangiorgio, do Ratos de Porão] – que nem é fã de toda a nossa obra – falou para mim “cara, a primeira vez que eu ouvi esse álbum fiquei absolutamente embasbacado, ninguém esperava isso de vocês, vocês eram aqueles punk melódico do Afasia que marcaram um momento e que iam sumir”.

O Zero e Um elevou a banda para outro patamar?

Definitivamente. Eu aprendi muita coisa. Muita, muita coisa.

Você diz tecnicamente?

Técnica de voz, novas leituras, como lidar com uma banda com uma estrutura um pouco melhor. A minha estrutura de amizade. Como era minha estrutura de amizade num tempo de crise e como era a minha estrutura de amizade com N pessoas num tempo de bonança. Por isso que eu digo sempre: a gente sempre tem que estar não na escassez, a gente tem que estar sempre com um mínimo de superávit. De tudo – de esperança, de grana, de comida, de respeito, sacou? Foi muito louco, cara. Olhando para trás, ali, o processo do jovem Rafael Ramos e do João Augusto, eles que operaram psicologicamente. Era nítido que eles estavam transformando aquilo num amálgama rígida, dando uma liga.

Pelo vídeo do making-of da época, dá para notar o quanto o Rafael estava dentro do negócio ali, com muita paixão…

 O Rafael é um apaixonado, ele tava definitivamente in love ali. Lembro de quando eu cheguei com a letra de “A Urgência”, que começou com o Gabriel Zander [Zander, Noção de Nada] fazendo um tipo de escrita. E eu peguei uma parte da melodia do Gabriel Zander e fiz a minha própria letra – puto, debaixo da chuva, no Rio de Janeiro, sentindo calor. Lembro quando o Rafael leu a letra, ele falou assim: entra e grava. Eu tava muito bravo. Eu tinha 30 anos, tinha acabado de sair dos 20 e tantos. Já tinha brigado com o Nô fisicamente, já tinha brigado com todo mundo na vida. E o Rafael falou assim: ah, você tá sentindo isso? Entra naquela porra daquele estúdio e me mostra o que você tem. E lembro de gravar, sair do estúdio, e o Rafael estar feliz e satisfeito.

Já que você citou “A Urgência”, queria falar sobre o tema geral do disco. Além da temática social e política que acompanha o Dead Fish, sinto que nesse disco existe uma espécie de “metalinguagem”. Como se você estivesse falando do próprio momento da banda, de “assinar”, da estrada dali para frente.  No primeiro verso de “A Urgência” [“Hoje é o dia da revolução/ não há ninguém nas ruas”] e em “Bem-Vindo Ao Clube” [“celebrar o fim”], por exemplo.

Você está absolutamente certo. Sabe quando tem um ciclo e você chega ao ponto mais culminante… Acabou, mas tem algo começando. O álbum é isso. A gente finalizou um momento da nossa vida. Nós passamos 12 longos anos numa banda, viajando, tudo parecia dar certo, mas deu tudo errado. E ali a gente tava pensando: agora vai dar tudo certo. Então, tem letra de despedida, como “Bem-Vindo Ao Clube”, que é para os meus amigos do Clube dos Niilistas, um partido político de quatro pessoas que eu fundei com os meus amigos no início dos anos 2000. O partido já nasceu rachado, com uma ala for fun e uma ala mais vermelhista/comunista, que era eu e um amigo. Era um momento muito diferente politicamente, o fascismo ia ser vencido, havia brecha para o non sense, para o dadaísmo, para o surrealismo. Quando a gente fundou o partido, eu vim com uma ortodoxia marxista e os amigos vinham com alguma outra coisa. Era um choque entre quatro pessoas que fundaram um partido político, que não servia para nada [risos]. Mas o Zero e Um tem a despedida, o dia da revolução, em que você sai na rua com molotov e olha para o lado e fala “pera aí, vamo chamar a rapaziada”. É isso. É um momento histórico muito diferente do que a gente vive hoje, mais de 20 anos depois.

E a última do disco, “Tudo”? Eu sinto que a letra mostra novas ideias a cada audição. Do que essa música fala, além de tudo [risos]?

Eu me inspirei em um pedaço de “Greed”, do Fugazi, que diz “everything is, everything is greed”, e levei para a minha realidade, depois de ler Guy Debord e ler sobre situacionismo. É o paradoxo de estar entrando no sistema, sacou? Cuidado, moleque, cuidado. Você quer tudo, você vai se tornar um deles. Tão ganancioso, tão burro, tão estúpido. Então, me fala hoje o que vai te fazer sorrir e se liga, porque daqui a pouco você vai estar no fundo dessa máquina como mais um instrumento de ganância.

“Foi um ponto de mudança muito forte. E fora que a energia ali era de muita felicidade. Nós, três meses antes, estávamos muito fodidos. Meses depois, estávamos morando perto da praia, com gente perguntando que tipo de instrumento e microfone a gente queria usar”

O álbum me parece muito autoconsciente do passo que ele representava. Como um “eu sei o que a gente tá fazendo”. Não se apegando a uma síndrome de underground, mas vocês, ali, depois de três discos, decidem assinar, e parecem saber o peso disso…

Quando a gente assinou, já não tinha muito esse glamour. Quem não estava lúcido ali se decepcionou. Eu morava com uma amiga que era advogada também. Sou formado em direito e analisei contratos a minha vida inteira. Lembro de analisar o contrato e ficar um pouco incrédulo, passar para a minha amiga e ela falar “ó, esse contrato é treta, hein?”. Mas eu tinha essa lucidez, de que muitas das nossas coisas a gente estava dando, entre aspas, de mão beijada. Até porque eu não posso responsabilizar a Deck por terem só sugado meu sangue. Eles também deram sangue. Mas… Foi Rafael Ramos, cara. Rafael montou esse repertório. Eu sempre erro nos repertórios, nem opino mais. Eu era contra “A Urgência” estar no começo…

Sério?

Sério. Depois que eu vi o repertório montado, falei “Rafa, não há a menor possibilidade de que seja diferente. É isso, tá montado”.

Durante uma época em que o CPM 22 já era uma banda muito grande, lembro que, como fãs dos três primeiros discos, eu e meus amigos ficamos bem curiosos – e preocupados, admito – para ouvir o Zero e Um

Vamos ver se esses caras se venderam, né? [risos]

[Risos] Sim. E acabou sendo um, digamos, “cala a boca” para muita gente…

Isso aconteceu com muitas pessoas. A gente tinha muitos detratores, tinha brigado muito na cena do Espírito Santo. E eu lembro de uma galera que foi ouvir meio assim “vamos ouvir esses vendidos filhos da puta” [risos]. E aí vinham falar comigo. Gente que nem falava muito comigo, por conta de briga dentro do hardcore. Falavam “brother, vocês tão jogando o jogo e tão jogando bonito”.

Rolou o receio por conta dessa coisa de “assinar”, e não só “A Urgência” provava o contrário, como também o single que foi carro-chefe, a faixa-título, que é uma música rápida, porrada. Como foram essas escolhas das músicas de trabalho?

E “Você”, né? Que é uma letra irônica, gozadora, que se revela só na última palavra. Eu lembro que a gente fez essa estrutura em Vitória, e eu apresentava as letras muito em cima da hora de gravar. Os caras ficavam putos. Fazia isso para não ter que mudar muita coisa e para não ter que reescrever demais, eu levava muito tempo para escrever uma letra. Mas “Você” não veio tanto assim. Como a gente estruturou a música em Vitória, eu fiz umas melodias, os caras compuseram um pouco em cima. Lembro que essa escolha de single não me agradou, porque a gente não queria perseguir o modus operandi do CPM, mas era quase inevitável. Fazendo a nossa estética, chegando num patamar mais comercial, a gente seria comparado a quem? Ao CPM, que era uma banda cinco anos mais nova do que a gente. E eu fui contra, né? Sempre errando [risos]. Eu fui contra “Você”, sacou? Aí os caras falavam que a letra era um alçapão, as pessoas vão cair num buraco. Nem sempre todas as pessoas estão prestando atenção nas letras… Mas, enfim, era um alçapão e foi uma decisão muito legal. Se tivesse os reacts de hoje, as pessoas iam falar “Ó, tá vendo, os caras querendo replicar esse punk chinfrim, comercial, essa musiquinha” e até chegar ao final da música e falar “caralho!”. E eu lembro que, por ser uma música mais solta, quase uma música do Afasia, eu quis fazer alguma coisa para desnortear – não só quem fosse ouvir, mas os caras da banda.

Hoje em dia você tem um carinho especial pelas músicas dessa fase? Como é a sua relação com elas?

Durante muito tempo eu cansei de “Você”. “Bem-Vindo Ao Clube” era uma música que eu gostava muito, mas que eu não gosto do clipe. Foram esses os singles?

E “Queda Livre”, que estourou depois, lançada como single do MTV Apresenta

É, essa aconteceu depois da grande exposição. Foi acontecendo depois que o álbum tava rolando. Não teve um impacto comercial de fazer um clipe e blá blá blá, quando ainda era importante.

Hoje você escolheria outras músicas do disco como single?

“Queda Livre” eu escolheria antes de “Bem-Vindo Ao Clube”. Mas é isso, era o impacto daquele momento e tal. A gente era muito difícil também. Eram uns caras que já não estavam no independente e não estavam no mainstream. Eu fazia questão de ser chato com todo mundo que era do mainstream. Era muito, muito chato. Num nível de ser escroto. Eu pedi desculpas para algumas pessoas, no decorrer da vida. Algumas. Outras não merecem. Mas… A gente não tava no independente, então, num dado momento de Zero e Um, eu falei “quer saber? Escolham os singles, vai”.  Eu vou ser chato mesmo, de qualquer jeito.

Como foi a composição de “Tão Iguais”? É uma música em que você cita o seu pai, tem uma carga nostálgica, biográfica, ao mesmo tempo em que é raivosa, na cara…

É a gente querendo sempre seguir em frente com o legado, né? Meu pai era um cara muito inteligente, morreu muito cedo, era alcóolatra, doença renal crônica, morreu de septicemia, muito provavelmente por incompetência médica. Mas ele deixou um legado. Meu avô, que foi para a guerra, deixou um legado. E eu sentia que estava dando um passo à frente. Eu estava sendo muito sortudo por ser um moleque do punk do Espírito Santo entrando em uma gravadora que ia me alçar a um nível nacional. Eu queria jogar esses dados. Eu entendia que pessoas que não eram do nosso métier, do nosso sindicato, do nosso meio iam ouvir. Enfim, acho que “Tão Iguais” é um exemplo de escrita nesse sentido.

Qual foi o papel dos guitarristas no Zero e Um?

Eles eram mais jovens. A coisa geracional era bastante nítida. E eles trouxeram muita musicalidade, ambos. Cada um à sua forma. O Hóspede talvez com uma coisa mais ríspida, urgente. E o Phil trazendo estrutura para letra por ser vocalista. Era muito interessante trabalhar com os dois. Só que, depois, durante esse momento, eles sofreram com a embaixada capixaba [risos]. Eram os três capixa que falavam – eu tô imitando o Nô – “a gente vem só até aqui, daqui para cá, foda-se, não tô interessado na sua influência”. Era chocante, era dialético, mas era uma dialética interessante.

Como foi o dia do VMB para você?

Você tinha que perguntar isso? Porra… [Risos]

[Risos] Eu posso te falar como foi para mim: eu e meus amigos nos reunimos e ficamos torcendo por vocês. Comemoramos que nem Copa.

[Risos] Era do caralho. Eu era muito otário de ver tudo aqui com a cabeça do Jello Biafra. O Jello Biafra não estava junto do Thunderbird, do Gordo, do Gastão. Era outro papo. Eu era muito idiota. Eu estava sendo muito colonizado pelo punk em inglês. E no dia eu estava de mau humor [Risos]. Mas foi lindo, uma das coisas mais bonitas que eu vivi na vida. Meu irmão, que tava lá em 2004, em Vitória, falou que foi um tipo um gol do Flamengo. Os caras ganharam! E eu subo no palco com aquela cara de bunda.

Considerando o nome do álbum e a letra da faixa-título, como é a sua relação hoje com a internet? Eu sei que você demorou para ter redes sociais abertas e agora é um pouco mais ativo, né?

Foi a pedidos [risos]. A pedidos e a aprendizados. Veio 2013, o fascismo, 2015, um pouco antes do Golpe na Dilma. Muita gente falava “Rodrigo, você é uma voz necessária, você não pode se furtar a estar diante dos tubarões”. Diante do julgamento das massas. Porque nós todos estamos. Um dos que falaram isso para mim foi o Thunderbird. E o Marcelo D2, alvo adorado dos nazis. E ainda tem essa coisa do cancelamento. Eu fui cancelado não só pelo lado fascista, mas teve fogo amigo pra caralho. Enfim, como você está ali, você vai ser julgado nos termos do algoritmo. Desse imediatismo geracional. E eu nunca lidei muito bem com o 0 e 1. Não sou uma pessoa das telas, da programação. Eu sou do quente, do ao vivo, do cantado, do escrever no caderno. Mas eu tive que aprender, porque tudo tá ali. E eu aprendi um tanto de coisas, algumas a duras penas, outras de forma mais tranquila. Foi legal ir reencontrando pessoas. Eu encontrei de novo, grosso modo, pós-golpe, a esquerda radical. Com quem, lá atrás, no começo dos anos 2000, eu vivia junto – com a galera do Impróprio, com o Centro de Mídia Independente. Eu estava ali trocando cartas ou recebendo e-mail com newsletter dessa galera. Tudo mudou, se tornou mais fluido, e eu fui aprendendo. Não sou super desenvolto ainda, não tenho o tempo das redes. Eu acho até que eu sou um Rubinho Barichello, chego em sexto, sétimo. Mas eu chego. Falo o que eu tenho que falar, compro as brigas que eu acho que tenho que comprar. Porque acho que as pautas da esquerda nem sempre são as pautas mais legais hoje em dia. As pautas da esquerda em muitos momentos estão chutando contra o próprio gol. Mas é isso: continuo errando. Mas com 50 anos – eu não erro mais com 30. Não que eu não tenha críticas. Eu tenho muitas. Eu gostaria que fosse da tela para a organização. Da tela para a discussão de uma vanguarda; da tela para a discussão de uma ação. Acho que a direita neofascista faz isso muito melhor do que a esquerda há pelo menos 10 anos.

No show da Áudio, você chamou o Zero e Um de o disco que “mudou a vida da banda”. O que esse disco mudou em você, Rodrigo Lima, pessoa?

Primeiro foi enfrentar minhas próprias certezas éticas de moleque punk ultrarradical. Segundo, foi uma mudança de corpo e território. O que eu vivi principalmente de 2000 a 2003 foi morar dentro de uma van, ter amigos em cada cidade. Saí do leste do Sudeste, perto da casa da mãe, com a estrutura de família e fui morar num espaço impróprio, Antônia de Queirós, esquina com a Augusta – com um disco no mainstream. Eram paradoxos atrás de paradoxos. Eu estava indo para o mainstream, mas continuava morando com os meus amigos. Punks e anarquistas que nos deram casa para morar em São Paulo. Eu comecei a sentir que nem todo preto é preto e que nem todo branco é branco, sabe? E a minha vida inteira foi muito 8 ou 80, eu ainda sou um pouco assim. Mas, com 30 anos, eu comecei a perceber que existiam uns garotos na rua que deveriam estar muito mais bem posicionados, midiática e financeiramente falando, do que um monte de lixo. Como eu tava transitando entre tudo isso, foi muito rico, uma baita faculdade. Foi assim de 2004 a 2006 – quando vem outra crise. Mas aí já é a ideia de Um Homem Só (2006).

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ARTISTA: Dead Fish