30 anos de “Usuário”, do Planet Hemp

Estreia da banda é um clássico tanto pelo som quanto pelo discurso; D2 relembra a história da consolidação do ‘raprocknrollpsicodeliahardcoreeragga’

Loading

Fotos: Daniela Dacorso

“Se você sobe no morro pra buscar e leva porrada/ se liga sangue bom tem alguma coisa errada”, canta Marcelo D2 na sequência do “Planet Hempá!”, anunciado por BNegão. D2 mostra o flow moldado nos shows da periferia carioca entre 1993 e 94, quando tinha que atropelar um verso no outro para os porcos fardados não notarem as letras. “Tá falando de maconha aqui na minha área, porra, acha que isso aqui é o quê?”, ouviam ele e o resto da banda — Skunk, Formigão, Rafael Crespo, Bacalhau, às vezes BNegão, outras vezes Black Alien — quando a polícia enquadrava.

“Era arma na cara, tá ligado?”, conta D2 ao Monkeybuzz. Foi assim até o disco de estreia Usuário ser lançado, em abril de 1995. O Planet Hemp fazia barulho, a cena underground do Rio de Janeiro estava tomada pelo punk, o hardcore, o funk, o rap, e o território carioca, dividido pelo jogo do bicho, o tráfico e os primeiros milicianos pós-ditadura. Os caras do Planet poderiam ter morrido nos meses que antecederam Usuário e o estouro no rádio e na MTV Brasil. “Os caras podiam matar a gente, sabe? Jogar na vala e falar: os moleques são traficantes, que nem eles fazem com uma porrada de moleque”, continua D2.

O álbum não demorou para acontecer. As gravadoras e os jornais estavam ligados na banda desde o ano anterior. O Raimundos havia vendido 160 mil discos com o álbum de estreia baseado na mistura do hardcore com o forró; o rock e o hip-hop dos Estados Unidos faziam cada vez mais a cabeça da juventude saída dos anos 1980; o som de protesto d’O Rappa circulava¹. Dias depois de lançar Usuário, o Planet Hemp estava na cena, em definitivo. “Quando a gente ganha visibilidade, os caras não iam poder matar a gente”, diz D2.

Com o nome da banda e o hype de “Legalize Já”, a terceira música do disco e a primeira a ter clipe, a entrada do Planet no circuito fonográfico se associou de cara ao debate da descriminalização da maconha. A lei em vigor no país, criada em 1976 e conhecida como lei de tóxicos, determinava prisão de seis meses a dois anos àqueles que fossem pegos com “substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica’ (ilícitas, claro), e era questionada a partir das mudanças nas políticas de drogas vividas na Europa.

A maconha recebia atenção midiática especial por causa dos coffe shops da Holanda e das evidências científicas que começavam a aparecer sobre seu uso milenar e grau de dependência inferior ao álcool. A descriminalização do Usuário era defendida por um grupo de deputados, e o ministro da Justiça Nelson Jobim dava declarações favoráveis à mudança, mas isso só iria de fato acontecer 11 anos depois, em 2006 — com brechas corrigidas pelo STF somente no ano passado.

Nenhum grupo da música brasileira havia escancarado o assunto até surgir o Planet. A ideia de D2 foi dar o nome Planeta Maconha, mas Skunk, co-criador e melhor amigo de Marcelo, que o convenceu a criar a banda, alertou que assim seriam presos em três meses. Decidiram, então, pelo nome em inglês, usando o termo retirado da revista americana High Times, especializada em cannabicultura. Na primeira fita-demo da banda, em 1993, o tema da legalização não está explícito, mas o bagulho já está ali nas oito faixas. Com exceção de “Rappers Reais”, todas entraram em Usuário.

O escracho aparece logo de início. “Não Compre, Plante!” abre o álbum com as bases pesadas de Formigão (baixo) e Bacalhau (bateria) e riffs de Rafael Crespo (guitarra). BNegão anuncia o nome da banda e Marcelo D2 canta a composição dele e Rafael. O disco e o Planet Hemp estão definidos na primeira pedra.

“O Planet Hemp sobrevive a partir do momento que eu entendo que esse sonho que eu compartilhava com Skunk era o sonho compartilhado de uma geração”

– Marcelo D2

Rio de Janeiro dividido

Usuário narra a disputa territorial do Rio. O tráfico, a corrupção policial, a violência contra quem é pobre e negro. “Já chega de financiar essa máquina extorsiva/ de um lado o miserável/ de outro o policial homicida”, diz a letra de “Não Compre, Plante!”. A maconha é transversal, conduz os temas através das rimas. “A gente usou a maconha para falar sobre isso aí, para falar como a cidade estava repartida”, conta D2.

Com o impacto de Check Your Head (1992) do Beastie Boys sobre a cabeça da geração do Planet Hemp, o som para falar do submundo carioca precisava da mesma rebeldia.  O Beastie Boys mesclava ritmos abusando de scratches para fazer rap e foi chave para os MCs da Hemp Family (Marcelo D2, Skunk, BNegão, Black Alien e SpeedFreaks). “O Check Your Head nos libertou. Pensei: caralho, a gente pode fazer muito instrumental, pode cantar rap, tocar rock, reggae”, relembra D2. Se era carioca, também precisava ter samba. “Eu entendi já no primeiro disco que a gente tinha que se mostrar uma banda carioca, então o samba era essencial”.

Incluir o samba no Usuário seguiu o movimento de mesclar ritmos que outras cenas também viviam no Brasil — Chico Science e Nação Zumbi em Recife, Raimundos em Brasília — e arredonda a mensagem do disco. Afinal, o samba tratava dos mesmos assuntos e o maior cronista deles era o Bezerra da Silva, referência que D2 carrega tatuado no braço. Bezerra cantou com sarcasmo sobre problemas sociais durante a ditadura; era a vez das bandas de garagem do Rio cantarem com escracho.

Planet Hemp, nos idos de 2000 (Foto: Daniela-Dacorso)

“Bezerra eu peço licença para falar em seu nome”, canta D2 em “Porcos Fardados”. E depois Black Alien em “Dezdasseis”: “sou Black Alien, sangue bom/do Rio de Janeiro/terra do samba, do reggae, do rap, do rock, do ragga e do pandeiro”. O samba derradeiro está em “Futuro do País”, um alerta de D2 à malandragem.

A diferença do Planet no discurso era (e é, em essência) a defesa da legalização da maconha. “Não Compre, Plante!”, “Legalize Já!”, “Fazendo a Cabeça”, “Mantenha o Respeito”, “Dig Dig Dig (Hempa)” causavam os primeiros estilhaços no teto de vidro do debate. Usuário alcançava 140 mil cópias no fim de 1995, “Legalize Já!” era exibido na MTV e invadia o rádio. Os cadernos de cultura a chamaram de hino da legalização.

O Congresso discutia três projetos para descriminalizar, o Planet Hemp ia muito além. Somente sete anos depois de Legalize Já!, em 2002, é que o Brasil realizou sua primeira Marcha da Maconha. E até hoje o usuário é marginalizado, as estruturas cantadas em 95 estão todas aí.

“Me chamam de marginal só por fumar minha erva/porque isso tanto os interessa/ já está provado cientificamente/o verdadeiro poder que ela age sobre a mente”

– “Legalize Já”

Com Usuário, a banda começa a viajar pelo país, tendo contato através de shows com o circuito alternativo fora do eixo sudeste-sul. O bagulho começou a pegar fogo. “Era tudo muito mágico”, diz D2. “A gente tava ganhando dinheiro, tá ligado?”.

Os integrantes continuaram lidando com polícia, quem ia ao show precisava tomar cuidado para não rodar por uma seda no bolso, o clipe de “Legalize Já!” era censurado antes das 23h e as cópias do disco eram apreendidas. Uma repressão enorme, que culminou na prisão da banda em 1997 durante a turnê do Os Cães Ladram Mas a Caravana Não Pára. Mas não tinha mais arma na cara. “Para a gente melhorou, tá ligado?”, afirma D2.

“O Check Your Head [Beastie Boys] nos libertou. Pensei: a gente pode fazer muito instrumental, pode cantar rap, tocar rock, reggae”

– Marcelo D2

“Este disco é em sua memória”

O som cru do Usuário resulta da sinergia entre os MCs (Marcelo D2, BNegão, Black Alien, SpeedFreaks e, em memória, Skunk) e a banda. BNegão e Black Alien já faziam shows com o Planet na formação com o Skunk, que insistia em três vocais no palco sem D2 entender direito o porquê. O rapper não havia contado que estava com AIDS até dias antes de morrer, em 1994. A banda estava com as músicas prontas para o disco, fita demo gravada, interesse de gravadoras. Marcelo D2, em especial, sente a perda. Decide acabar com o grupo, mas é convencido pela madrasta de Skunk a continuar. BNegão é chamado para gravar os vocais do rapper e topa segurar a onda para a banda não chegar ao fim. Black Alien já estava lá e SpeedFreaks é chamado para participar em “Speed Funk”.

D2 se reúne com o Jorge Davidson, diretor de arte da Sony, pede liberdade para produzir o álbum, videoclipe e tiragem em CD  — o vinil estava em sua fase obsoleta. Queria também R$ 50 mil para a banda, calculado numa conta de boteco para cada um ter R$ 10 mil, o que na cabeça deles era muito dinheiro. A Sony aceita de cara. “Aí eu pensei: caralho, eu pedi pouco. Até hoje quando eu falo com o Jorge (Davidson), eu pergunto: fala a verdade, eu pedi pouco, né?”.

No estúdio, chegam com o som afiado, oito músicas prontas, mais as instrumentais, muita maconha — na verdade, muita droga em geral — e gravam o disco. O encarte apresenta a epígrafe: Luiz ‘Skunk’ Antonio, este disco é em sua memória. O rapper está presente também em uma das músicas instrumentais, que carrega seu apelido. Está criado o raprocknrollpsicodeliahardcoreeragga do Planet Hemp, sonho compartilhado por D2 e o melhor amigo. “O Planet Hemp sobrevive, cara, a partir do momento que eu entendo que esse sonho que eu compartilhava com Skunk era o sonho compartilhado de uma geração”, afirma D2.

BNegão entra de vez na banda para conduzir o som junto de Marcelo D2 somente depois de Usuário. A sobrevivência do Planet leva D2 a mudar de postura no palco, ocupando o papel deixado por Skunk de rodar para incendiar o público. “Quando o Bernardo entrou, ficavam os dois parados (no palco). Eu falei: ‘Puta! vou ter que ficar rodando, ele não vai ser o cara a fazer isso’. O Bernardo mó negãozão, né, cara? Falei: cara, eu vou ser a agulha e ele vai ser o martelo, tá ligado?”.

Usuário ampliou o universo dos integrantes da banda. A Hemp Family, ao lado de Chico Science, Marcelo Yuka e outros daquela geração, teve acesso a mais sons, ao cinema alternativo. Descobriu o mundo de que era parte. Era uma parada muito empolgante, sabe? Acho que por isso eu não cai numa depressão e acabei com o Planet Hemp. Era muito estimulante enquanto vida”, relembra D2. O debate sobre a legalização da maconha, por sua vez, permaneceu nos discos seguintes e amadureceu no país, com mudanças gradativas na lei durante estes trinta anos. A planta, no entanto, segue ilícita — e milhares de jovens periféricos, assassinados por essa condição. “Porque da onde eu vim, eu sei, o gatilho é a lei”, diz a letra de “Fazendo a Cabeça”. Usuário prossegue com seus recados.

 

 

 

 

¹: Marcelo D2 conta que a primeira vez que fumou com o Skunk foi durante um show d’O Rappa, com quem tinham amizade. “Eu lembro disso porque o Skunk teve um teto preto, caiu, pá!”, disse na entrevista depois de pedir para abrir uma nota de rodapé na fala. Fica o registro.

Loading