5pra1: Curtis Mayfield

Da fase brilhante no início da década de 1970 ao adeus mais de 25 anos depois, cinco discos de um gigante do Soul

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Fotos: Granamour Weems Collection / Alamy

A série 5pra1 apresenta e destrincha cinco discos que servem como primeiro mergulho na obra de um artista.

 

Ainda que tenha iniciado sua carreira solo em 1970, Curtis Mayfield é figura que remonta ao período germinal do Soul. Seguindo de perto a trilha deixada por Ray Charles e Sam Cooke, o músico de Chicago fez parte do momento em que o encontro entre Gospel e Pop acabara de ser consolidado. Durante a adolescência, na segunda metade da década de 1950, em companhia inseparável do amigo Jerry Butler, desbravou a agitada cena musical da Wind City, passando por grupos de Doo-Wop, até formar o The Impressions – que mereceria um capítulo especial à parte. Acompanhado do grupo, Curtis cantou clássicos do movimento pelos direitos civis dos negros, como “People Geat Ready” e “Keep On Pushing” e contribuiu decisivamente para edificar o chamado Soul de Chicago.

Na virada dos anos 1960 para os 1970, Curtis passou a seguir trilha sozinho, enquanto a Motown, capitaneada por Marvin Gaye e Stevie Wonder, colocava o Soul no topo das paradas de sucesso. Mas Curtis parecia não se enquadrar a aqueles moldes e seu espírito criativo tendia a ser bem menos afável a grandes audiências e expectativas radiofônicas. Com o primeiro disco solo, ele demonstrou estar equipado para outro tipo de viagem Soul, uma mais urbana, funkeada e cheia de mensagens políticas incisivas. O falsete e a guitarra inconfundíveis e o discurso poderoso cruzaram os Estados Unidos especialmente a partir da trilha de Super Fly – um êxito não muito provável. “Super Fly (1972) encapsula o sentimento pós-direitos civis/início do Movimento Black Power da América negra que lutava para sobreviver às consequências políticas e sociais da onda conservadora no país”, define o escritor Mychal Denzel Smith, em uma resenha especial da Pitchfork. “O sucesso de Super Fly vai contra a sabedoria convencional. Nada tão cru, tão gueto, funk, soulful e político, supostamente, venderia cinco milhões de cópias. Ao menos, nada até o nascimento do Hip Hop”.

Referência para Jimi Hendrix e Kanye West, Santana e Chuck D, o apelidado Gentle Genius foi um gigante da música, cuja mensagem colhia ensinamentos do retrovisor e apontava em frente. Mesmo após um trágico acontecimento em 1990. Aqui, do brilhante início na década de 1970 ao disco que encerrou sua carreira mais de 25 anos depois, selecionamos cinco álbuns de Curtis Mayfield.

Curtis (1970)

O primeiro disco solo de Curtis Mayfield, de uma só vez, definiu contundentemente o rompimento com a linguagem do The Impressions e abriu um leque de novas possibilidades para o Soul americano setentista – musical e discursivamente. Antes de Stevie Wonder mostrar sua face mais política e espiritual com Talking Book (1972) e Marvin Gaye dar um dos maiores saltos criativos da história do Pop em What’s Going On (1971), houve um outro clássico que iluminou caminhos capazes de escapar dos domínios e padrões das gigantes gravadoras Atlantic, Stax e, claro, Motown: Curtis. Sob o próprio selo de Curtis Mayfield, o Curtom Records, a estreia solo mostra logo de cara que o Doo-Wop, o Pop Soul e as referências ao gospel mais “puro” do The Impressions haviam ficado para trás com a explosiva e apocalíptica abertura “(Don’t Worry) If There’s A Hell Down Below We’re All Going To Go, principal êxito do disco, chegando ao Top 3 da parada de Soul da Billboard.

Há espaço para romantismo em “Give It Up” e na exuberante “The Makings Of You”, mas Curtis fica marcado por unir psicodelia soul, arranjos orquestrais riquíssimos – produzidos pelo próprio Mayfield – e percussões com influências latinas em prol de ampliar o “say it loud, I’m black and I’m proud”, entoado por James Brown dois anos antes. “We people who are darker than blue / Are we gonna stand around this town / And let what others say come true?”, diz uma das canções mais marcantes do repertório. “Move On Up”, brilhantemente sampleada por Kanye West em “Touch The Sky”, é um hino entusiasmado e irresistivelmente político; “Miss Black America” expressa o orgulho negro de maneira poderosa e terna; e “The Other Side Of Town” denuncia o abismo social e a discrepância de oportunidades entre as zonas urbanas de Chicago. Se, na época do The Impressions, Curtis Mayfield já demonstrava, mesmo em um som ameno e Pop, sua atenção a temas sociais e raciais, em Curtis, ele – em um Estados Unidos sem Malcolm X e Martin Luther King – intensificou esse pacto. E fez isso sob uma musicalidade livre e alucinante – o All Music Guide chama Curtis de o “Sgt. Peppers do Soul dos anos 1970”.

Destaques: “Move On Up”, “We The People Who Are Darker Than Blue”, “The Makings Of You”

Super Fly (1972)

A ótima recepção do álbum de estreia em 1970 deu gás para Curtis, já no ano seguinte, soltar um disco ao vivo e Roots, outro ponto altíssimo de sua discografia – encabeçado por “Keep On Keeping On” –, que poderia também tranquilamente estar nessa lista. Àquela altura, Curtis, não apenas pela música, mas por conta de sua postura e mensagem incisivas, já representava algo como um “Soul alternativo” ao estilo Motown. E essa proposta se incrementou ainda mais em 1972, quando ele contribuiu para o som do Blaxploitation.

Centrado na história de um traficante de drogas do Harlem, em Nova York, Super Fly foi a inspiração perfeita para Curtis compor aquele que, para muitos, é o seu melhor álbum. Ainda que o roteiro do filme protagonizado por Ron O’ Neal carregue certa dubiedade moral, Curtis – talvez por isso mesmo, visto que ele chegou a dizer que o filme parecia “uma propaganda para vender cocaína” – fez questão de criar canções com fortes e atentos comentários sociais, rejeitando qualquer celebração ao crime e à violência. “Freddie’s Dead” – sampleada em “Mano na Porta do Bar”, dos Racionais, mais de 20 anos depois – funcionou como um “hino de conscientização contra as drogas em todos os Estados Unidos”, como conta Chuck D, do Public Enemy, no documentário Movin’ on Up: The Music and Message of Curtis Mayfield and the Impressions (2005). “If you wanna be a junkie, wow. / Remember Freddie’s dead”. Os perigos das ruas também são expressos em “Pusherman”, na qual Curtis praticamente encarna um MC em meio a uma levada acelerada, de linha de baixo hipnotizante, que aponta sutilmente para o R&B Pop que Michael Jackson e Prince defenderiam na década seguinte.

A denúncia daquilo que o longa corria o risco de exaltar veio acompanhada de um Soul que, embora contasse com metais, arranjos de cordas e percussão de bongos e congas, era centrado em um formato mais simples, urbano e com certa sujeira, mas sem perder o Funk – como nas incríveis em “Little Child Runnin’ Wild” e na própria faixa-título. Inclusive, no período, a grande maioria das apresentações de Curtis na TV baseavam-se em guitarra, bateria, baixo e, no máximo, percuteria. Passando quatro semanas no topo do Billboard 200 e rendendo novos convites para Curtis compor trilhas sonoras, Super Fly foi sucesso de crítica e público e colocou o músico de Chicago no panteão do Soul.

Destaques: “Pusherman”, “Freddie’s Dead”, “Super Fly”

There’s No Place Like America Today (1975)

Após o sucesso de Super Fly, Curtis ainda floreou a primeira metade da década de 1970 com discos respeitáveis, como Curtis In Chicago (1973) e Sweet Exorcist (1975), mas é (o para lá de subestimado) There’s No Place Like America Today que parece fechar com chave de ouro esse início (solo) brilhante. Enquanto Earth, Wind & Fire, The Isley Brothers, Barry White e Marvin Gaye pós-Let’s Get It on colocavam a Soul Music em contato íntimo com a energia Disco e o tesão & o hedonismo, Curtis Mayfield soltou o disco mais desacelerado e reflexivo de sua carreira. A recessão americana em decorrência das Crise do Petróleo nos anos 1970, o maior desemprego no país desde 1941 e as consequências disso, aliadas às históricas tensões raciais, inspiraram o músico em um repertório que une política, espiritualidade e esperança de maneira arrebatadora. O simbolismo começa pela capa, releitura da fotografia de Margaret Bourke-White, tirada em 1937 durante a Grande Depressão: desempregados – em sua maioria, negros – na fila de algum programa social e, ao fundo, um outdoor com os dizeres “There’s no way like the American Way”. Mayfield trocou por “There’s No Place Like America Today” e colocou as contradições da Grande Depressão à luz dos anos 1970, quando a realidade crua das ruas despedaçava qualquer utopia do American Dream.

A violência das armas de fogo é tema de “Billy Jack”, faixa de abertura guiada por uma guitarra com wah-wah e um ataque orgasmático de metais. Com forte teor de crônica das ruas, TNPLAT faz referência a aspectos simples do dia a dia de maneira singela e, ao mesmo tempo, potente. “Blue Monday People” traz uma tocante poesia sobre as despedidas – antes de correr atrás do seu nesse mundão louco – durante as manhãs de segunda-feira. Uma guitarra esparsa, o falsete mágico de sempre, backing vocals angelicais, percussão econômica e precisa, baixo marcante. Um deleite. “When Seasons Change” segue a mesma linha, debruçando-se sobre as angústias da vida citadina – fora descoberta por um novo público ao ser usada como trilha da série Atlanta. Ainda cabe a redenção espiritual de “Jesus”, que pede por coragem (“You need courage in time of fear / Because of undyin’ news you hear”), e “So In Love”, talvez a grande canção romântica de todo o catálogo de Curtis. Olha, sinceramente, sete faixas, no skips. Um disco perfeito.

Destaques: “Billy Jack”, “Jesus”, “Blue Monday People”, “So In Love”

Heartbeat (1979)

Essa é uma escolha menos usual ao elencarmos os destaques da discografia de Curtis Mayfield. Mas o dançante Heartbeat, ainda que menos memorável do que os lançamentos da fase inicial dos anos 1970, demonstra a capacidade do músico de ramificar seu groove para outras vertentes – aqui, ele, enfim, se rende a Disco. E faz isso celebrando o amor por Altheida Mayfield, sua esposa e companheira até o fim da vida.

Mesmo com propostas mais digitalizados e produções extravagantes, o álbum, de apenas oito faixas, abarca também certos elementos do Soul e até traz influências do período com o The Impressions – como na sensual “Between You Baby And Me”, parceria com Linda Clifford, com quem Curtis lançaria um disco colaborativo em 1980 (The Right Combination). Mas o clima do disco é feito mesmo todo para as pistas. “Tell Me, Tell Me (How Ya Like To Be Loved)”, faixa de abertura, é guiada por um baixo cheio de slap, arranjos envolventes de cordas e poderia estar tranquilamente no cancioneiro do Jamiroquai; a funkeada e romântica “You’re So Good To Me” parece já introduzir o tipo de sonoridade que daria cara ao R&B mais dançante e Pop da primeira metade dos anos 1990 – tanto que acabaria sampleada em “Be Happy”, de My Life (1994), segundo disco de Mary J. Blige; e “What Is My Woman For” alia a gordura e grandiosidade de uma produção Disco à levada sempre Funk de Curtis, para falar dos prazeres de um relacionamento estável, ser pai, amar sua esposa e constituir uma família.

Produzido em parceria com Ron Tyson (que futuramente faria parte do Temptations), Heatbeat está longe de ser o disco mais genial da carreira do músico de Chicago ou um marco do Soul ou da Disco. Mas comprova que, no ano que em que Michael Jackson mudaria a indústria para sempre com Off The Wall, Curtis Mayfield seguia atento às novas tendências da música negra. E, mesmo sem o discurso social cortante de outrora, ele mantém a essência e a originalidade ao falar simplesmente de amor.

Destaques: “Tell Me, Tell Me (How Ya Like To Be Loved)”, “Between You Baby And Me”, “You’re So Good To Me”

New World Order (1996)

Seria impossível terminar a lista sem esse disco. New World Order é uma demonstração de perseverança, amor pela música e, sobretudo, talento. Este foi o primeiro e único álbum lançado por Curtis Mayfield após a tragédia pessoal pela qual ele fora acometido em 1990: durante um show no Brooklyn, em Nova York, uma estrutura de luz desabou sobre sua cabeça, o deixando paralisado do pescoço para baixo. Mesmo passando por um incidente tão avassalador, o músico juntou forças e gravou um disco, cantando verso por verso deitado em sua cama e fez um retorno triunfal. Atento aos sons do R&B dançante dos anos 1990, do recém-inaugurado Neo Soul e do quentíssimo Hip Hop, Curtis, para a produção, convocou o Organized Noise, parceiros recorrentes do Oukast, e Daryl Simmons, conhecido por trabalhar com nomes como TLC, Toni Braxton e Whitney Houston.

“O disco não atualiza o estilo de Mayfield; ele ressalta onde sua influência é sentida – em todos os lugares”, aponta uma elogiosa resenha da Rolling Stone, em 1996. New World Order traz, sim, linguagens mais digitais, mas o ímpeto não soa como modernização insossa. É um atestado de como Curtis se sente à vontade ao navegar por novas tendências de gêneros dos quais ele é uma das pedras fundamentais.

Acompanhado de timbres noventistas, Curtis mantém sua voz firme e inconfundível em meio a ecos de G-Funk (“Ms. Martha”), baladas românticas & sensuais (“I Believe In You”) e Neo Soul, aos moldes do que nomes como Maxwell vinham fazendo (“No One Knows About Good Thing”). “Back To Living Again”, Pop jovial e esperançoso – com toques de Reggae à la Jimmy Cliff –, traz ninguém menos do que Aretha Franklin nos backing vocals do refrão. “Cry sometimes with tears of joy”, diz um dos versos da comovente faixa. O repertório ainda traz revisitações dos clássicos “We The People Who Are Darker Than Blue”, “The Girl I Find Stays on My Mind” e “It Was Love That We Needed” e um mergulho no Rap/R&B da época em “Just A Litte Bit Of Love”, com versos rimados de Blaise Mayfield, seu filho. Com guitarra suja e narrativa sobre um viciado em crack, “Here But I’m Gone” é, sem dúvidas, a canção mais marcante do disco. Em 1999, como parte do filme The Mod Squad, Lauryn Hill incluiu alguns versos em um remix imperdível da faixa.

Indicado ao Grammy de Melhor Álbum de R&B, New World Order foi o último ato desse símbolo tão único do Soul e da música – que, três anos depois, morreria por conta de complicações advindas da diabetes. Um adeus que, mesmo frente aos conluios cruéis do destino, garantiu que a mensagem essencial de Curtis Mayfield fosse entregue: apesar de tudo, esperança.

Destaques: “Here But I’m Gone”, “Back To Living Again”, “Ms. Martha”

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