5pra1: Djavan

Complexidade musical, refinamento poético e sucesso popular: cinco discos de um dos mais talentosos artistas da música brasileira

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Fotos: Acervo Site Oficial Djavan

A série 5pra1 apresenta e destrincha cinco discos que servem como primeiro mergulho na obra de um artista.

 

Djavan realizou um feito para poucos na música brasileira: conseguiu aliar complexidade e refinamento musical e poético e o sucesso popular, emplacando hits verdadeiramente desafiadores. Suas letras sobre os “arredores da paixão” (como descreveu na música “Esquinas”) ou com visões místicas e surrealistas da natureza (como em “Para-Raio”, por exemplo) oferecem cenários poéticos imaginativos, que propõem ao ouvinte antes a deriva do que a descrição ou explicação. Embora criticado por uma imprensa racista que o classificou como non-sense, suas qualidades foram reconhecidas internacionalmente. Em 2015, recebeu do Grammy Latino o Prêmio à Excelência Musical pelo conjunto de sua obra.

Em mais de 20 álbuns de carreira, o alagoano passou por blues, pop, black music, baião e samba. Em todos os campos, levou a marca da originalidade de seu violão, com uma divisão rítmica e um suingue singular. Os seus seis primeiros álbuns — de A Voz, O Violão, A Música de Djavan (1976) a Lilás (1984) — constituem uma das sequências mais gloriosas da música brasileira e mundial.

Nesta lista, quebramos um pouco a ordem para abarcar um período maior da carreira de Djavan — que acaba de completar 73 anos. É um passeio pela música de Djavan do fim dos anos 1970 até a década de 1990. Assim como grandes gênios negros da música brasileira, Djavan não foi tema de uma grande série documental nem teve uma biografia, então as informações sobre sua vida e obra estão dispersas na internet e em arquivos de jornais. Boa parte das informações utilizadas neste texto veio da reportagem “O Toque do Samurai”, escrita por Lívia Vasconcelos, um dos textos mais completos sobre a carreira do músico.

Djavan (1978)

Nos primeiros meses de 1975, o jovem alagoano de 26 anos conquistou o segundo lugar do Festival Abertura, realizado pela TV Globo no Teatro Municipal de São Paulo — ficou atrás apenas de “Como um Ladrão”, de Carlinhos Vergueiro, em uma disputa que ainda tinha nomes como Jards Macalé, Alceu Valença, Jorge Mautner, Luiz Melodia, Hermeto Pascoal e Walter Franco.

Seis meses depois, Djavan — que estava na Som Livre como intérprete de canções das trilhas sonoras de novelas — então recebeu o sinal verde para gravar seu primeiro disco, com produção de Aloysio de Oliveira, fundador do seminal selo bossa novista Elenco. Apesar de A Voz, o Violão e a Música de Djavan (1976) ser um disco fabuloso e uma das maiores estreias da música brasileira, o álbum representou uma frustração para o artista. Das mais de 60 músicas que ele apresentou a Aloysio, o produtor selecionou 12 para o repertório final, sendo oito sambas. Assim, Djavan era fixado em um só gênero e suas experimentações outras deixadas de lado — problema enfrentado por outros cantores negros do período, como Zezé Motta.

Foi no disco seguinte que Djavan desfrutou da liberdade de percorrer caminhos artísticos mais diversificados. Ele deixou a Som Livre e passou para a EMI/Odeon, onde gravou Djavan (1978). Se o primeiro trabalho anunciava um artista promissor, de marca autoral forte, este segundo álbum confirmou as expectativas e consolidou seu nome no cenário da MPB. Com arranjos de Dori Caymmi, Eduardo Souto Neto e Gilson Peranzetta, Djavan encontrou cenários musicais ambiciosos para suas letras envoltas em mistério e beleza — observe as metamorfoses de “Água” e o violão minimalista desenhando ciclos em “Estória de Cantador”. O samba, porém, não ficou de lado e atinge o ápice do suingue com colorido soul em “Nereci”, “Serrado” e “Samba Dobrado”.

A majestosa “Alibi” não só foi regravada por Maria Bethânia naquele mesmo ano como deu título ao álbum da cantora e se tornou o primeiro LP de uma cantora brasileira a ultrapassar a marca de 1 milhão de cópias vendidas.

Destaques: “Estória de Cantador”, “Numa Esquina de Hanoi”, “Serrado”

Seduzir (1981)

Em 1979, Chico Buarque convidou Djavan para se apresentar no Festival de Música do Caribe (Carifesta), em Havana, como parte de uma comitiva de artistas brasileiros — que incluía ainda Zezé Motta, Gonzaguinha, Walter Franco, Paulinho Nogueira e Marieta Severo. Na volta, o grupo passou em Luanda. E ainda que a viagem à ilha de Fidel Castro o tenha impressionado, foi a passagem por Angola que verdadeiramente o marcou.

“Na primeira vez que eu fui à África, em 81, tomei o maior susto, quando eu pude identificar ali a raiz da minha música, porque eu tenho uma música que no início da minha carreira era muito contestada por muita gente. Diziam que era uma coisa estranha, que não tinha nem pé nem cabeça, que a minha divisão rítmica era uma coisa estranha e tal”, contou ao jornal O Globo, em 2007. “Cheguei em Angola e pude ver nitidamente onde estava a raiz disso tudo”.

Djavan deixa claro que Seduzir, seu quarto álbum, é um disco de autoafirmação. “O pouco que aprendi está aqui. Pleno. Dos pés à cabeça”, escreve na contracapa. A abertura com “Pedro Brasil” oferece uma prova dessa força afirmativa ao refazer a história colonial: “Quem descobriu o Brasil foi Pedro”, ele canta. Mas não o Cabral, e sim o povo negro, símbolo desse Brasil que “não trai o dom de cair de pé”.

Um dos maiores hits do disco, a faixa-título é um hino de amor à música e sua força libertadora. Uma celebração das estradas a serem trilhadas, as paixões por descobrir: “Cantar é mover o dom do fundo de uma paixão (…) Amar é perder o tom nas comas da ilusão”. O ritmo sincopado de texturas pop em “Luanda” dá vazão a um movimento sinuoso, que mostra a singularidade da divisão rítmica de Djavan em uma espiral de símbolos de um “batismo africanamente”.

O disco ainda conta com outros dois clássicos: “A Ilha”, regravada por Roberto Carlos, e “Faltando um Pedaço”, sucesso na voz de Gal Costa. Seduzir também contou com a estreia em estúdios da Sururu de Capote, banda formada na turnê do álbum Alumbramento (1980) e que acompanharia o alagoano até 1984, marcando um período em que Djavan esteve mais aberto à criação coletiva.

Destaques: “Luanda”, “Seduzir”, “Morena de Endoidecer”

Luz (1982)

Após Seduzir, Djavan migrou para gravadora CBS, cuja filial brasileira passava por problemas financeiros e buscava remodelar o seu cast no país. Foi então que o executivo Tomás Muñoz, espanhol que deixou seu escritório em Nova York para arrumar a casa no Brasil, buscou Djavan com um projeto de internacionalização da carreira.

“Eles queriam que eu fosse morar nos Estados Unidos. O Muñoz sabia que, em um curto espaço de tempo, eu seria um cartucho internacional”, contou Djavan à jornalista Lívia Vasconcelos em reportagem da revista Graciliano. “Neguei na hora. Queria gravar nos EUA, mas não viver lá, justamente porque o meu desejo era manter contato com a minha essência. A minha intenção era ser um artista internacional, mas queria ainda mais continuar sendo um artista brasileiro”.

O plano da gravadora fica evidente na sonoridade pop oitentista de Luz, que conta com as mãos do pianista americano Ronnie Foster (conhecido por trabalhos com Stevie Wonder e George Benson) na produção. Muitos artistas oriundos da década de 1970 tiveram seus piores dias na década de 1980, solapados por um padrão de teclados e sintetizadores pasteurizados. Djavan, por sua vez, encontrou o seu auge – um dos artistas que melhor fez a transição entre épocas. Com a Sururu de Capote, ele adicionou os elementos do pop norte-americano sem ser engolido por este — ao contrário, Djavan projetou singularidades que conquistaram músicos como Quincy Jones, que no mesmo ano produziu Thriller, de Michal Jackson.

Além de clássicos eternos, como a contagiante explosão de felicidade de “Samurai” (com participação de Stevie Wonder na gaita) e o hino de esperanças “Sina”, Luz é repleto de imagens poéticas sensíveis que demonstram o talento de Djavan em nos mostrar o mundo com outro olhar, com sentidos renovados: “Um trem entrou no meu eu e divagou feliz” (em “Luz”), “o sonho secou na nesga do amor” (“Banho de Amor”), “zum de besouro, um ímã, branca é a tez da manhã” (“Açaí”), “art-noveau da natureza” (“Sina”).

De acordo com a reportagem de Lívia Vasconcelos, Luz fez Djavan passar do patamar dos 40 mil discos vendidos (com Seduzir, no ano anterior) para 450 mil cópias vendidas. Ainda segundo as informações da jornalista, nesse período o músico quadruplicou seu cachê e se tornou milionário. Vale notar também a presença do compositor negro pernambucano Moacir Santos, que fez o arranjo de “Capim”.

Destaques: “Samurai”, “Capim” e “Pétala”

Lilás (1984)

Segundo disco produzido em Los Angeles, Lilás abraça de vez a música pop com os sintetizadores eletrônicos de Erich Bulling. Aproximando-se dessa sonoridade, o álbum parece encarnar justamente a utopia evanescente que o pop promete. Felicidades e sofrências tão intensas quanto passageiras, como uma nuvem que “beija, brinca e deixa passar”, como diz a letra da faixa-título, que rapidamente se tornou um dos maiores sucessos do cantor.

O álbum marcado pela preponderância das baladas românticas, que passam, sim, por alguns clichês (como as “grades do amor” mencionadas em “Infinito”), mas que ainda possuem a escrita original e evocativa de Djavan. Sua visão é atravessada por um amor romântico, mas não totalmente idealizado, focando em afetos que estão como que ao lado da paixão — são os “arredores da paixão”, como descreve no megahit “Esquinas”. Nessa mesma faixa, ele ainda crava uma poderosa imagem para o sofrimento e frustração, no amor ou na vida: “Sabe lá/ O que é morrer de sede/ Em frente ao mar”.

Duas faixas levam novamente sua mira para a música brasileira: o baião “Canto de Lira” e o samba pop “Obi”. Nesta última, ele exclama: “No ver da gente o samba é pedra mor”. O samba é e sempre será o seu fundamento. Criticado à época pela sua aproximação com a música pop, Lilás vem sendo reavaliado e redescoberto por novas gerações que agora apreciam seu brilho radiante.

Destaques: “Lilás”, “Esquinas” e “Obi”         

Novena (1994)

Novena marca quase 20 anos de carreira e 45 anos de vida de Djavan, que pela primeira vez toma o controle de todo o processo. O disco é inteiramente produzido, arranjado e composto por ele, feito totalmente à sua maneira, ao seu ritmo. Também foi a primeira vez que entrou em estúdio sem as canções prontas, apenas com algumas ideias definidas. As letras foram sendo escritas juntas com os arranjos.

Após o mergulho nos teclados na década anterior, neste disco ele optou por trabalhar quase exclusivamente com instrumentos acústicos. “A redução do instrumental foi a motivação para fazer o disco”, disse à época em entrevista à Folha de S. Paulo. “Eu vinha trabalhando com sete músicos e entre eles com dois tecladistas, o que alarga a possibilidade sonora para o infinito. Fazer arranjos e compor sobre um universo sonoro reduzido é diferente”.

A foto que estampa a capa do álbum é do próprio Djavan aos quatro anos de idade. Naquela época, quando tinham vermes, as crianças tinham de tomar óleo de rícino, que tinha um gosto horrível. Por isso, costumavam ganhar recompensas do pai. A recompensa do menino Djavan foi a foto. O artista encontrou a imagem na época e suas memórias de infância dispararam. Por isso, compôs o álbum como uma espécie de homenagem ao Nordeste rural.

Apesar do som mais enxuto, Novena amplia seu repertório de gêneros musicais. Há o frevo instrumental de “Sete Coqueiros” e o frevo estilizado de “Quero-Quero”, o blues de “Aliás” (que foi regravada por Belchior) e o toque afropop de “Nas Ruas”, que leva o groove do violão de Max Viana, filho de Djavan que aos poucos foi tomando lugar na banda e na carreira do pai.

Destaques: “Avô”, “Lobisomem”, “Aliás”

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ARTISTA: Djavan