A série 5pra1 apresenta e destrincha cinco discos que servem como primeiro mergulho na obra de um artista.
Conhecer Declan Patrick MacManus, o Elvis Costello, por meio de cinco discos é ter uma perspectiva de como a consciência pop do punk dos anos 1970 deu forma a novas linguagens. Digo “conhecer” porque seria loucura dizer “definir” – e seria simplista dizer “resumir”. Em mais de 50 anos de carreira, são mais de 30 álbuns lançados, dos quais nem mesmo os mais assíduos fãs têm coragem de cravar o número exato. Por isso, mas nem só por isso, e vamos ver juntos mais abaixo, sua discografia seja uma das mais difíceis de classificar em relevância, riqueza biográfica e proposta artística. Mas vale o exercício de ir além do senso comum e (agora sim) cometer uma loucura: propor uma lista na qual os dois álbuns iniciais — My Aim Is True (1977) e This Year’s Model (1978) — fiquem de fora, o que claro tem um bom motivo.
Para muitos, a primeira imagem de Elvis Costello é a sua foto-colagem na capa do debut My Aim Is True (1977). Nela, um aparente nerd meio desengonçado numa pose inquieta em traje rockabilly contrasta a moldura amarela com o fundo xadrez monocromático. Parece uma imagem construída em adversativos, intrigante, mas que passa certo tipo de eletricidade vintage. Na época, essa era a terceira tentativa de Costello de viver de música. Nascido em Londres (1954) e criado em Liverpool, ele, filho de um bandleader jazzístico, foi inevitavelmente pego pela beatlemania e tudo mais. Depois de duas bandas na adolescência, ele se apresentava para públicos de 15 pessoas em folk pubs até ter algumas demos apreciadas pela novíssima Stiff Records, mais precisamente por Nick Lowe, que já era conhecido por ser baixista do excêntrico Brinsley Schwarz. Começava aí uma das parcerias mais criativas e produtivas do rock. Quase que de um dia para o outro, ele explodiu no underground do disputadíssimo rock inglês do profano ano de 1977. Isso porque, literalmente, num mês ele estava — com a esposa e o filho recém-nascido – sendo despejado; em outro, largava o trabalho como programador de computadores para receber um salário firmado com seus empresários na época. Foi nesse período que ele seguiu a sugestão de seu empresário, Jack Riviera, e adotou o nome Elvis Costello — uma combinação do primeiro nome de Elvis Presley e o sobrenome de solteira de sua mãe. Antes disso, ele se apresentava como D.P. Costello.
Além de ser um murro elegante e polido, My Aim Is True traz algumas características que são verdadeiros signos da figura “Elvis Costello”. A começar pelo conceito central do compositor provocador, um solitário observador, acompanhado de uma banda viva, de nome próprio. Mergulhando na carreira e nos discos dele, percebe-se que suas bandas de apoio são verdadeiros marcadores estéticos — de fases, eras. Inglês de referências americanas, ele, além do nome referenciando o “rei do rock”, cabe certinho no arquétipo do songwriter, do qual Bob Dylan é a referência mais nítida. Assim como Dylan, Costello tem sua The Band: a The Attractions, que não vou falar sobre agora, pois serão citados consideravelmente até o fim desse texto. O motivo de trazer esses breves paralelos é para situar que, na época desse disco, ele já era alguém intrigantemente notável, mas pouco conhecido. O que importava é que era conhecido na cena de Londres. Um exemplo disso é que, mesmo sendo um artista estreante, para a capa de My Aim Is True, ele contou com a colaboração do fotógrafo Keith Morris, que já era um dos principais do “rolê britânico “por ter sido o único a fotografar Nick Drake (!). Tal como o contexto, o som do álbum é fascinante — uma virtuose desajeitada de punk, rockabilly e folk. Ao ser entrevistado pela NME na época, Elvis disse que suas letras eram sobre dois sentimentos apenas: vingança e culpa. Desde então, ele é conhecido por seu estilo lírico sarcástico, cronista, surrealista, entre o crítico e o romântico. Nesse álbum, tem tudo o que ele é. Por isso, ele é sempre comentado nas mais variadas listas de melhores discos de todos os tempos. Para a NME, por exemplo, é um dos 500 melhores discos de todos os tempos. Para a Pitchfork, é um dos 200 essenciais dos anos 1970. Ou seja, não faltam relatos do quão importante é.
Ao longo de sua carreira, Elvis Costello foi para espaços tão próximos quanto distantes do seu álbum de estreia. Em Imperial Bedroom (1982), por exemplo, ele envolve o punk num mergulho orquestral e lírico na complexidade emocional; já King of America (1986) revela um performer mais introspectivo, influenciado por folk e música country. Brutal Youth (1994) marca um retorno crítico e tímido às raízes do rock dos anos 1960. Painted From Memory (1998), em colaboração com Burt Bacharach, é um desvio luxuoso para o mundo do soft pop. Enquanto The Delivery Man (2004) mostra sua versatilidade ao mesclar rock, soul e blues.
Como ele tem uma discografia imensa, achei que seria mais interessante partir desse ponto, que esse disco é o definitivo, e que se não fosse ele, esse texto não existiria. Porém, aqui, selecionei 5 álbuns que expandem o arquétipo songwriter de Costello a outras figuras e linguagens. Isto é: uma lista que traz o núcleo de sua “fase de ouro” e outros momentos em que ele faz uma releitura dessa fase essencial, sendo novamente surpreendente, por outros motivos. Para mim, sua discografia é como os contos do escritor argentino César Aira — uma manifestação do inconsciente em narrativas fragmentadas e absurdas, cheias de guinadas oníricas e simbólicas. Acredito que nessa lista esteja uma seleção fomentadora, essencial, mas convidativa para a discografia toda.
Armed Forces (1979)
Gravado no Eden Studios, em Londres, Armed Forces foi inicialmente batizado de “Emotional Fascism”, talvez pelos acontecimentos da época — em 1979, o Reino Unido encarava uma guinada neoliberal com a chegada de Margaret Thatcher. Ao longo de seus 40 minutos, o terceiro álbum de Elvis Costello traduz, em cada acorde, a inquietação política e social do fim dos anos 1970, em composições afiadíssimas. “Accidents Will Happen” transforma culpa e autossabotagem em um hino melancólico, enquanto “Sunday’s Best” desfila sarcasmo sobre conformismo social.
Com produção do amigo Nick Lowe, o álbum equilibra os sintetizadores inventivos de Steve Nieve a ganchos irresistíveis. “Oliver’s Army” é um exemplo perfeito: a levada dançante esconde uma crítica ao imperialismo britânico, com o piano inspirado em “Dancing Queen”, do ABBA. Junto de “Senior Service”, elas se sucedem com uma energia quase cinematográfica, em que o piano brilhante e as guitarras incisivas transportam os sentidos para cenários de batalhas internas e reflexões sobre poder e resistência. Já em “Party Girl”, é como se a dança e a festa fossem máscaras para angústias profundas.
O groove descompassado do som se entrelaça a um charme narrativo das letras – ao mesmo tempo em que se coloca como cronista de seu tempo, Costello instiga o ouvinte a questionar a realidade. Não que as paradas sejam um bom parâmetro para entender um artista como Elvis Costello, mas o álbum desponta como o primeiro (e único) dele a alcançar o Top 10 nos Estados Unidos.
Destaques: “Accidents Will Happen”, “Party Girl”, “Moods For Moderns”
Get Happy!! (1980)
Chegamos a um momento muito especial da sua discografia – na opinião de quem vos escreve, o mais interessante, por conseguir colidir sua caricatura nerd com a raiva punk a partir de uma proposta primordialmente dançante. Em Get Happy!!, Costello cria uma síntese vibrante entre o legado do soul dos anos 1960 e a rebeldia da época. E é síntese mesmo. São 20 faixas e uma correria em que nada fica mal resolvido. Na verdade, as músicas de não mais do que três minutos constroem um mosaico sonoro repleto de reinvenção. Cada canção é uma pira genuína de um fã de música dialogando com suas referências. O cover de “I Can’t Stand Up For Falling Down”, de Sam & Dave, ganhou contornos ska-psicodélicos, enquanto “High Fidelity”, segundo o próprio Elvis, é uma tentativa de chegar a uma proposta similar à de Bowie em Station To Station (1976).
Dá para dizer também que, historicamente, Get Happy!! assinala a primeira tentativa explícita de criar um disco temático, prenunciando futuras experimentações que mesclariam intimidade e grandiloquência. Isso porque, nos três primeiros álbuns, ele procurou mais mostrar seu leque de referências do que focar numa proposta específica. Já nesse, claramente há um afastamento dos arranjos herdados de This Year’s Model e Armed Forces e o desejo se ligar no R&B da Motown sessentista. Em uma entrevista para o Record Mirror em 1981, Costello falou que estava tentando ser mais simpático e acessível. E olha, parando para pensar, esse álbum certamente é um de seus mais simpáticos. É a indicação perfeita para quem ainda não escutou nada dele.
Destaques: “I Can’t Stand Up For Falling Down”, “Human Touch” e “New Amsterdam”
Imperial Bedroom (1982)
Em seu sétimo álbum, Elvis Costello não apenas reformulou sua sonoridade — ele a redesenhou com a precisão de um miniaturista obcecado por detalhes. Para isso, ele contou com a produção do engenheiro de som dos Beatles, Geoff Emerick, e um tempo de estúdio inédito para ele— foram dois meses no AIR Studios, em Londres. Só pra comparar, em My Aim Is True, foram 24 horas no estúdio. Uma vez reconhecido como mais do que um nome da geração punk de 77, agora ele buscava uma evolução, o que já é sentido em Get Happy!!. Elvis queria se distanciar do estilo mais direto de trabalhos anteriores e explorar arranjos complexos, influenciado por referências sofisticadas como George Gershwin, Cole Porter e Burt Bacharach, com quem anos depois gravou Painted From Memory (1998), um álbum belíssimo.
Para fazer seu Sgt. Peppers, ele desconstrói o nervo cru do pós-punk que o lançou e ergue um álbum tão ornamental quanto angustiado. Faixas como “Beyond Belief” e “Man Out of Time” transbordam verborragia meticulosa, enquanto a orquestração barroca de “…And in Every Home” e o lirismo à la Bacharach de “The Long Honeymoon” antecipam o futuro do artista. Se sua verve lírica já havia se provado meticulosa, aqui atinge um novo patamar de complexidade. Ao ser questionado pela revista Uncut sobre a obra musical que mudou sua vida, o ator Robert Downey Jr. citou o disco, descrevendo-o de modo certeiro: “cada canção do disco é um triunfo”. Como ocorre com todo grande artista, é difícil cravar um consenso quanto ao melhor álbum de sua discografia, mas pode-se dizer que Imperial Bedroom é o que mais corresponde a essa pretensão. Ou seja, um álbum que não se oferece de bandeja, mas que recompensa os ouvidos pacientes com um dos retratos emocionais mais refinados da new wave.
Destaques: “Man Out of Time”, “Almost Blue”, “Kid About It”
When I Was Cruel (2002)
Após seu auge prolífico e artístico nos anos 1980, Elvis Costello deu uma encorpada na carreira explorando tangentes. Spike (1989) trouxe influências ecléticas e a parceria com Paul McCartney em “Veronica”, que se tornou um de seus maiores sucessos nos EUA. Colaboração essa que continuou em Mighty Like a Rose (1991), um trabalho mais denso e introspectivo. Em 1993, ele surpreendeu novamente com The Juliet Letters, ciclo de canções gravado ao lado do Brodsky Quartet e que mostrou sua inclinação pela música clássica.
Depois da “volta ao mundo”, no novo milênio, ele retornou ao pop rock com um cinismo renovado e um álbum que, se não revive os Attractions, os reencarna num novo nome: os Imposters. Isso porque a única mudança na formação é a entrada de Davey Faragher no lugar de Bruce Thomas, assumindo o baixo. Inspirado pela euforia de quem sabe o que está fazendo, When I Was Cruel soa como a vingança de um veterano — um disco elétrico, texturizado, carregado de loops, ecos e micro-experimentações que estilhaçam qualquer impressão de conforto. A faixa-título se desenrola como um mantra de sete minutos, envolta em um vocal fantasmagórico sampleado, enquanto “Tear Off Your Own Head (It’s A Doll Revolution)” exuma seu lado mais incendiário. Tudo isso de uma forma nada linear. “45” é um rock contido, ameaçador como um palhaço de festa prestes a sacar uma faca, já “Spooky Girlfriend” brinca com uma levada sincopada e jazzística, enquanto “15 Petals” mistura pulsação latina a beats eletrônicos. Muito do disco, que é a vontade de propor uma releitura a algo aclamado, dá para ser resumido num dos versos da faixa título: “It was so much easier when I was cruel”. Ao confrontar seu eu do passado, Costello não carrega um pingo de nostalgia. Há sarcasmo, malícia e um prazer nada disfarçado em continuar afiado.
Destaques: “45”, “Spooky Girlfriend”, “Tear Off Your Own Head (It’s A Doll Revolution)”
Look Now (2018)
Depois de anos evitando a rotina tradicional da indústria fonográfica, Elvis Costello voltou ao estúdio junto dos Imposters, com quem ele não gravava há uma década. Esse meio tempo foi um período estranho, no qual ele chegou a insinuar numa entrevista à Mojo que sua carreira nos estúdios poderia ter chegado ao fim. Segundo ele, não fazia mais sentido, o MP3, a internet e os streamings haviam tirado a graça do formato álbum. Por um tempo, parecia que essa decisão seria levada adiante. Após o ambicioso folk crítico, mas pouco inspirado, de National Ransom (2010), Costello praticamente se afastou das gravações, retornando apenas para Wise Up Ghost (2013), uma colaboração com o The Roots — projeto que, aliás, partiu da iniciativa da banda. Dado esse contexto, Look Now talvez não seja um dos melhores dele, mas certamente é um dos mais importantes. É um disco que, mais do que um retorno, representa uma reflexão madura sobre sua própria obra. Nos anos que antecederam o álbum, Costello mergulhou em projetos teatrais, revisitou o Imperial Bedroom em turnês e enfrentou problemas de saúde, incluindo uma batalha contra o câncer — experiências que, inevitavelmente, ressoam no tom introspectivo do disco.
Comparando com alguns de seus clássicos, se Imperial Bedroom foi seu grande exercício de composição camerística, e Painted From Memory sua imersão na sofisticação de Burt Bacharach, Look Now é a síntese desses dois mundos — um álbum em que o pop orquestrado encontra o lirismo melancólico sem perder sua prosódia sagaz característica. Faixas como “He’s Given Me Things” e “Photographs Can Lie” trazem a assinatura melódica de Bacharach, que co-assina as faixas, enquanto “Burnt Sugar Is So Bitter” é composta com Carole King. Ao invés de nostalgia, o álbum exala maturidade e um domínio absoluto da canção como forma de arte. Costello canta com a serenidade de quem já desbravou todas as direções possíveis e agora se permite apenas lapidar as que mais lhe interessam.
Destaques: “Under Lime”, “Unwanted Number”, “Burnt Sugar Is So Bitter”