5pra1: João Donato

O talento, as fusões, a calma e a eterna juventude de uma lenda da música brasileira

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Fotos: Reprodução

A série 5pra1 apresenta e destrincha cinco discos que servem como primeiro mergulho na obra de um artista.

 

Entre os guardiões da Bossa Nova – de João Gilberto a Johnny Alf, de Tom & Vinicius a Carlos Lyra –, João Donato certamente é o menos bossanovista. Mesmo sendo, segundo o próprio xará, o inventor da batida que virou marca indelével da música brasileira, por aqui e pelo mundo, a partir do fim dos anos 1950.

O “Forrest Gump” da nossa música – como definiu muito bem Kassin em um vídeo da Jazz Is Dead –, João Donato é pedra fundamental da Bossa Nova, ao mesmo tempo em que nunca se enquadrou a ela. A calmaria da voz e a personalidade sempre tranquila podem até iludir, mas nunca se engane: João Donato é inquieto. Musical e fisicamente. Se, nas teclas dos pianos, a Bossa se fundiu com Afro-Cuban Jazz, Funk, suingues caribenhos e explosões de sintetizadores, o caminho traçado pelo acriano também é cheio de movimento e idas & vindas.

Em Rio Branco, aprendeu a tocar acordeom aos oito anos de idade e, aos 16, mudou-se para o Rio de Janeiro com a família. Lá, se jogou no Jazz e, com 20 e poucos anos de idade, já desenvolvia no piano a batida que João Gilberto trazia no violão. Vieram então viagens aos Estados Unidos, voltas ao Brasil, retornos aos Estados Unidos e assim sucessivamente. Na bagagem, ao longo de quase 70 anos de carreira, parcerias e amizades com ícones da música mundial: Chet Baker, Mongo Santamaría, Tito Puente, Eddie Palmieri, Gal Costa, Gilberto Gil, Naná Vasconcellos, Caetano Veloso…

Mesmo tão versátil, o estilo de Donato é inconfundível. Talvez por influência do acordeom – ele já brincou por aí que é acordeonista e não pianista –, o acriano é dono de uma concisão mágica. Desenvolvendo temas com as mãos mais fechadas e sem malabarismos, suas teclas batem no piano em um groove que faz uso de silêncios, imprimindo a levada da Bossa Nova, mas quebrando o Samba a partir de harmonizações jazzísticas. Donato, que já disse “eu gosto é de Jazz” quando o tema era Bossa Nova, tem uma economia natural, certeira. Seu piano é fácil de ser entoado sem que precise espernear. João nunca precisou espernear, nem gritar. Mal falar. E cantar, só depois de muitos pedidos. O negócio dele é mesmo o Som. Não só o som – a molecagem, a galhofa, a curtição, os encontros. Um músico que há mais de meio século compunha com João Gilberto e que, neste ano, se juntou Ali Shaheed Muhammad, produtor do A Tribe Called Quest. Donato é imparável!

Caetano, em “Outro Retrato”, diz “Minha poesia vem da poesia da música de um João músico que não gosta de poesia”, brincando com a ideia de que Donato, melodia e harmonia até os ossos, não é fã de poesia. Ao passo que o baiano também canta “Minha música vem da música da poesia de um poeta João que não gosta de música”, em referência a João Cabral de Melo Neto, que não gostava de música, com exceção de flamenco e frevo pernambucano. Mas, se Caetano me permite, o rigor técnico e o ritmo preciso de João Cabral são pura música, e o Jazz de Donato que parece obedecer à estrutura de canções (assobiáveis) guarda poesia implícita – em forma de som. No mês em que João Donato completa 87 anos de idade, aí vão 5 discos para viajar com nosso herói, tão discreto quanto genial.

Muito À Vontade (1962)

Durante o início da década de 1960, a Bossa Nova já havia explodido com Chega de Saudade (1959), e João Donato, àquela altura, tinha tutano de sobra para gravar suas próprias canções, sob seu próprio nome. Ele, inclusive, já havia colocado no praça o germinal Chá Dançante (1956), uma coleção de temas instrumentais.  A ida aos Estados Unidos, no final dos anos 1950, rendera participações em projetos de músicos renomados do Jazz, como Chet Baker, Mongo Santamaria, Eddie Palmieri – tocando trombone no disco La Perfecta (1962) – e Tito Puente. Donato, inclusive, já havia entregado todas as composições de Bossa Nova Carnival (1962), do vibrafonista David Pike.

Em 1962, ele retorna brevemente o Brasil e, enfim, lança seu primeiro registro oficial: o exuberante Muito À Vontade, pela Polydor. Gravado em apenas dois dias – e com boa parte das canções compostas durante as sessões de estúdio –, o repertório contou com Titão Netto (baixo) e o lendário Milton Banana (bateria), além de Amaury Rodrigues (bongô e pandeiro). Muito À Vontade apresenta quase 30 minutos do suprassumo do Samba Jazz e é um cartão de visita perfeito para o groove inigualável de Donato. Da faixa-título e sua hipnótica e frase principal – que rende, até hoje, remixes feitos por DJs – à beleza de “Pra Que Chorar”, de Baden Powell e Vinicius de Moraes, passando pela enérgica versão de “Minha Saudade”, parceria com João Gilberto, o álbum é um encontro elegante – e à vontade – entre o Jazz e a Bossa Nova. No embalo, ele repetiria a dose em outros dois grandes trabalhos logo na sequência: A Bossa Muito Moderna de João Donato (1963) e, a pedido e com colaboração de Claus Ogerman, The New Sound Of Brazil: Piano Of João Donato (1965).

Destaques: “Muito À Vontade”, “Jodel”, “Minha Saudade”

A Bad Donato (1970)

Aos 36 anos de idade, João Donato já era um veterano em 1970. Comparsa de palco e estúdio de ícones do Jazz mundial e dono de discos que sedimentaram não apenas a Bossa Nova, mas especialmente o Samba Jazz, o músico acriano, que retornara aos Estados Unidos havia quase uma década, queria mais. Foi aí que veio a carta branca de Bob Krasnow, um dos donos do selo alternativo Blue Thumb. Donato conhecera o empresário durante uma turnê de Sérgio Mendes com o grupo Bossa Rio no Japão, quando substituiu o pianista Osmar Milito. Krasnow ofereceu a empreitada após ficar encantado com um “solinho” do substituto.

Lançado entre a explosão e a ressaca do Flower Power, A Bad Donato – com subtítulo/spoiler: João Donato’s psichedelic funky experience –, vem, portanto, como a primeira (e mais convicta) aventura experimental de João Donato. O suingue típico de seu piano recebe intervenções elétricas do Funk, do Funk Rock e sintetizadores envolvem um Jazz Fusion cheio de psicodelia e loops lisérgicos. Em entrevista ao jornalista Pedro Só, na Bizz, Donato disse que estudou “10 discos de James Brown” e que A Bad Donato, tinha a intenção também de, sem os cacoetes bossanovistas, atingir o mercado americano.

Com arranjos de Eumir Deodato e um time musical de primeira (incluindo integrantes da orquestra de Stan Kenton), o disco é como a experiência-hippiechique de Donato. Mas por baixo do ritmo acelerado e das influências americanas – das guitarras aos metais – fica sempre a essência inequívoca, aquele tchugundun inconfundível das teclas de um, afinal, inventor da Bossa Nova. E isso é o que deixa o repertório ainda mais suculento. São 10 composições autorais e inéditas amarradas em menos de 30 minutos, de “The Frog” (tema remanejado em “A Rã”, de Quem É Quem, cinco anos depois) a “Malandro”, que ressoam, psicodelia do início dos anos 1970, trilhas do Blaxploitation, Quincy Jones, Jimi Hendrix, LSD e ainda melodias assobiáveis à la João Gilberto… A Bad Donato é viagem da boa. Em 2007, foi incluído pela Rolling Stone Brasil na lista dos 100 Melhores Discos da Música Brasileira.

Destaques: “Bambu”, “Lunar Time”, “Straight Jacket”, “ Mosquito (Fly)”

Quem é Quem (1973)

Após a breve passagem no Brasil para a gravação de seus primeiros discos autorais, Donato, no meio dos anos 1960, retornou aos Estados Unidos – dessa vez para ficar por um bom tempo. À época, a Bossa Nova vivia, digamos, a última fase de sua “Era de Ouro”, e Donato seguia trabalhando nos estúdios de nomes como Astrud Gilberto, Bud Shank e Carl Tjader. Após sua, àquela altura, última missão solo em terras estrangeiras, a aventura psicodélica-funk A Bad Donato (1970), nosso herói voltou de vez ao Brasil no natal de 1972. Motivado não apenas pela saudade de casa, como também pelo fim de seu casamento com Patrícia, que havia ficado com Jodel, sua filha. (Em entrevista a Charles Gavin, na série Som do Vinil, Donato brinca que em sua casa restava apenas “ele e o piano”).

Contratado pela Odeon, o músico começava a compor o repertório de Quem É Quem quando foi encorajado por Marcos Valle (produtor do disco) e Agostinho dos Santos a cometer um ato revolucionário, pelo menos para Donato: cantar. O disco de 1973 marca a primeira vez que ouvimos a voz magistralmente acanhada de João Donato, que recebeu contribuições de compositores como Paulo César Pinheiro, João Carlos Pádua, Geraldo Eduardo Carneiro, além de seu irmão Lysias Ênio e do próprio Marcos Valle. Outra inovação promovida foi o piano Fender Rhodes no lugar das teclas acústicas – fator fundamental para o aspecto Pop do disco, guiado a todo tempo pelas bases suingadíssimas e econômicas de Donato.

Musicalmente, Quem É Quem parece fundir cada faceta de Donato até aquele momento – dos ecos inescapáveis da Bossa Nova até o amplo domínio da música americana. Com, para variar, uma seleção irrepreensível de músicos – Dori Caymmi, Nana Caymmi, Laércio de Freitas, Bebeto, Naná Vasconcellos, Ian Guest – ele cria temas instrumentais imortais como “A Rã” (que ganharia letra de Caetano e voz de Gal no ano seguinte) e “Amazonas”, além de trazer todo o charme de sua voz balbuciante em “Fim de Sonho” e “Chorou Chorou” – duas inspiradas na ressaca da separação. O tom sempre jovial de Donato surge especialmente na levemente funkeada “Cala Boca Menino!” – de letra creditada a Dorival Caymmi, mas, ao que tudo indica, uma cantiga algo folclórica – e “Terremoto”.

Sem o apoio de divulgação da gravadora – fazendo, inclusive, com que Donato, irritado sem uma festa de lançamento, literalmente jogasse seus vinis do alto da Igreja da Glória –, o disco não foi exatamente um sucesso de vendas. Mas, a cada ano que passa, Quem É Quem, também incluído na lista de 100 Melhores Discos Brasileiros da Rolling Stone, ganha o prestígio e a admiração de um divisor de águas, o marco da expansão Pop do Samba Jazz de Donato. Outros três discos do período são importantes para entender não apenas o som do acriano na época, mas o que faziam seus comparsas de teclas: Donato/Deodato (1973), parceria com Eumir lançada pouco antes da volta definitiva ao Brasil; Previsão do Tempo (1973), clássico de Marcos Valle (“Não Tem Nada Não” surgiu nas sessões de QEQ); e Lugar Comum (1975), outra pérola do Donato cantante, com grande contribuição de Gilberto Gil.

Destaques: “A Rã”, “Fim do Sonho”, “Amazonas”, “Terremoto”, “Chorou Chorou”

Naquela Base (1988)

Essa pode não ser escolha tão usual para uma lista de grandes discos de João Donato, mas ela se sustenta tanto pela música quanto pelo contexto. A história de Naquela Base começa com Yoichi Ogawa, um admirador ferrenho do som de Donato que estava em todos os shows do músico no Rio de Janeiro. Assim nasceu uma grande amizade entre o acriano e o japonês – e o resultado foi um disco com todos os custos arcados por Ogawa. Em 1988, Donato e a trupe afiada formada por Márcio Montarroyos, Edson Lobo, Luiz Alves, Ohana, Robertinho Silva, Zé Carlos e Tita Lobo gravou Naquela Base.

O repertório abre com a belíssima “Entre o Sim e o Não”, de melodia comovente, em um Samba Jazz lento que chega a ter momentos de trilha do Studio Ghibli; percorre as influências latinas na salseada “Som Montuno” – com citação certeira de “Tico-Tico no Fubá”; e se abre ao Funk na explosiva “Bounce Blues”, com pungente ataque de metais. Ainda há espaço para a maravilhosa versão instrumental de “A Paz”, parceria com Gilberto Gil, que mostra o poder de uma bela e simples melodia, além da repaginação de “Naquela Base”, lançada nos anos 1960 e, aqui, mais ornamentada e grandiosa. A composição de Caetano marca presença no disco por meio das versões de “O Fundo” – cantada por Leila Pinheiro pouco tempo antes – e “Nua Ideia”. Donato ainda brilha em “Cadê Você”, composta com Chico Buarque e lançada antes pelo carioca, em uma releitura de múrmurios discretos e angelicais, com progressão harmônica que chega a remeter ao jovem Tom Waits.

Só que Ogawa voltou para o Japão, deixou as fitas da gravação com Donato. O disco acabou arquivado até felizmente ser encontrado pelo pesquisador musical Marcelo Fróes em 2014.

Destaques: “Entre o Sim e o Não”, “Bounce Blues”, “A Paz”, “Cadê Você”

Sintetizamor (2016)

Durante o novo milênio, João Donato seguiu mais discreto, mas quando apareceu surgiu à vontade, em companhia de músicos de novas gerações e de outras paisagens sonoras. Seja em Mangarroba, disco de 2002 com participações de Marcelo D2, Marisa Monte e Davi Moraes, ou no ótimo Donato Elétrico, de 2016, dobradinha com o time do Bixiga 70. Mas sua investida mais ousada e alucinante foi com o filho Donatinho, em Sintetizamor.

Separados por 50 anos, pai e filho acabam com qualquer dissonância em meio a uma avalanche de sintetizadores (e romantismo). Mas, ainda que ambiciosa e de harmonias intrincadas, o molho dos Donato tem um sabor pop irresistível e percorre a Disco, o Funk, o R&B, o Soul e até o próprio Pop contemporâneo mais radiofônico. É um álbum que evoca Lincoln Olivetti, Daft Punk, Ed Motta, Isaac Hayes. Uma brincadeira descompromissada, mas realizada com excelência. “Foi como brincar de bolinha de gude com ele”, definiu Donato em entrevista à Maíra Freitas. O filho, inclusive, rouba a cena nos vocais, mostrando a faceta meio-Michael Jackson-meio-Bruno-Mars na fantástica “Interstellar”.

Aqui, Donato se joga no universo musical do filho e entrega o groove máximo de sempre, seja em synths ou Rhodes, no orgânico ou no digital. E conta com colaboradores de primeira: Davi Moraes, Domenico Lancelotti, Ronaldo Bastos e Julia Bosco chegam para a festa, que até sossega a pista por uns instantes para Donato comandar a Synth Bossa “Vamos Sair À Francesa”. Mas o tom do disco é efusivo, o clima é solar, feliz, amoroso. Donato, com 25 ou mais de 80 anos de idade, segue como um dos grandes mestres da arte de se divertir compondo, e Sintetizamor é um capítulo emblemático de seu eterno verão musical.

Destaques: “Lei do Amor”, “Surreal”, “Clima de Paquera”, “Interstellar”

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ARTISTA: João Donato