5pra1: Luiz Melodia

Indomável, boêmio e avesso a rótulos, o músico carioca soube viver e cantar – e deixou um legado enorme de composições e interpretações para a música brasileira

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Fotos: Divulgação

A série 5pra1 apresenta e destrincha cinco discos que servem como primeiro mergulho na obra de um artista.

 

Naquele que para muitos é um dos melhores filmes brasileiros de todos os tempos – senão o melhor –, há um detalhe melodioso, em meio a uma sequência de violência, que pode passar despercebido até mesmo a olhos – e ouvidos – atentos. Cidade de Deus. Dois rapazes do morro, crus no crime, na função de arrumar um trocado. Após tentativas frustradas, cai do céu um fusca. Perdido, o motorista, um paulista de sotaque carregado, pede para ir à Barra. Os garotos, armados, se entendem no olhar e entram a bordo. É para lá que fingiriam ir. O paulista dá a partida e Buscapé pensa/nos conta “nenhum paulista pode ser legal prá caramba”. Haviam, enfim, encontrado o alvo. Até que: play no toca fita e uma voz acolhedora e de paz incontornável entoa “o pôr do sol vai renovar brilhar de novo seu sorriso”. E por fim, já com o carro parecendo uma sauna, a dupla desiste da empreitada. “Tu é legal pra caralho, paulista”.

O carioca Luiz Melodia é inclassificável. Confunde rótulos e recusa clichês. Pode fazer torcer o nariz de guardiões do samba carioca, se amarrava na Jovem Guarda, já se inspirou em Elvis, começou fazendo cover de Renato e Seus Blue Caps. É rock, samba, soul, jazz, salsa, reggae, e haverá um Luiz Melodia em cada fase de sua vida. A ressignificação sonora e estética proposta – algo espontaneamente – por Luiz Melodia foi celebrada por Gilberto Gil, que cravou no manifesto de seu célebre disco de 1977: “Refavela, como Luiz Melodia”. E essa inquietação tão magnética também repercutia em seu modo de lidar com o mundo das gravadoras e contratos. Sempre indomável na relação com filtros e amarras do show biz: “Desde que entrei nessa parafernália, procuro deixar claro que sou indomável. Falavam que eu brigava com as gravadoras, isso virou até folclore. Simplesmente não aceito certas imposições. Na Warner, um produtor queria que eu fizesse uma música de refrão para poder “acontecer”, fazer puxar um disco. Isso não existe. Quando desci o morro de São Carlos, e me disseram que eu era interessante, procurei fazer aquilo que eu sabia. Se deixar no natural, fica bem legal”, disse ele em entrevista à Folha de SP, em 1997.

Nascido em um dos berços de ouro do samba, o Estácio, ele conviveu, da década de 1970 em diante, com os maiores quilates contemporâneos do Rio de Janeiro – e de Salvador também. A madrinha, Gal Costa, foi só a primeira, graças a Waly Salomão. Bethânia, Caetano, Chico, Cazuza, Cássia Eller, Jards Macalé e Sérgio Sampaio também já dividiram copos e palcos com Melodia.

Gal, já Fatal, diz que eles se amaram desde o primeiro momento. Ele, tímido, soldado, achava “um desbunde total” ver aquela mulherada com a calcinha aparecendo. “Pérola Negra”, que estourou na voz da baiana, foi o primeiro sucesso de Melodia e deu nome ao primeiro disco, lançado em 1973. 28 minutos em 10 músicas, um portal de pedradas que se abria para uma carreira de brilhantismo dali em diante. Nesse 5pra1, começamos com o início arrasador nos anos 1970 – a partir do clássico absoluto Pérola Negra – e seguimos a toada pinçando outros discos imperdíveis de uma figura instigante, inclassificável e fundamental da nossa música.

 

Pérola Negra (1973)

Quando Luiz Carlos dos Santos cedeu à alcunha vinda de seu pai, Oswaldo Melodia, e percebeu que era acima da média para a disciplina musical, viu ali na sua própria zona de conforto uma fonte fértil de inspiração. Ao descobrir que compunha, deixou o próprio Estácio seduzi-lo para as letras. O álbum Pérola Negra tem duas delas. E a homenagem a essa relação é simplesmente reconfortante. É prazeroso ouvir “hoje o tempo está mais firme, abre mais meu apetite, cura e seca minha bronquite algumas folhas de hortelã”, de “Estácio, eu e você”.

Mas a melhor com o nome do bairro é a faixa três. “Estácio, Holy Estácio” é um hino e não sou eu quem está dizendo isso. É o próprio autor, de uma autoconfiança justa. (A mesma que dá a ele discernimento para ficar magoado e confuso pelo fato de, “maldito”, não vender tantos discos quanto alguns de seus pares. Considerava-se artista, não músico, sem pragmatismo). De volta ao hino, a canção é linda, cativante, dramática. “Estácio acalma os sentidos dos erros que faço”. Desperta a curiosidade em entender a magia do bairro que divide a cidade com Ipanema, Copacabana, Arpoador, Leblon, Jardim Botânico, Lapa.

Em uma pegada bem menos conto de fadas, ele mistura sentimentos em “Vale Quanto Pesa”, canção que mostra a predominante intensidade de Luiz Melodia, primeiro com o drama de “Quanto você ganha pra me enganar/ Quanto você paga pra me ver sofrer/ É quanto você força pra me derreter”, depois se defendendo em vozes e acordes no “Sou forte feito cobra-coral/ Semente brota em qualquer local”, e depois se rendendo aos encantos de Deda, ex-namorada do amigo Waly Salomão, em “Aquela madrugada deu em nada, deu em muito, deu em sol/Aquele seu desejo me deu medo, me deu força, me deu mal”. E o arremate vem no sopro sincero: “Ai de mim, de nós dois”.

Na mesma música – e apesar de um relacionamento breve –, ele admite que ela era inesquecível, sobretudo pelos “beijos demorados afirmados”. Deda também inspirou outras duas canções neste mesmo Pérola Negra: “Magrelinha”, à qual Fernando Meirelles recorreu para evitar o conflito entre o paulista e os cariocas, e “Live in Bahia”, que Caetano Veloso escolheu para cantar. Em “Farrapo Humano”, Melodia aborda um elemento que percorre toda sua carreira: a morte (como também acontece no verso “Se alguém quer matar-me de amor”, de “Estácio, Holy Estácio”). Dramática, melancólica, mas com um toque bem-humorado e um blues perfeito – que depois sairia como reggae em uma parceria com o Skank.

Blues, samba de breque, desenvoltura pop ritmos caribenhos – um caldeirão de influências e um ímpeto criativo irrefreável que tornam Pérola Negra tão clássico quanto de difícil definição e explicação. Tão clássico quanto sua capa, com o músico segurando um globo em uma banheira cercado de crus feijões pretos.

Destaques: “Vale Quanto Pesa”; “Pérola Negra” e “Magrelinha”

 

Maravilhas Contemporâneas (1976)

Os anos 1970 foram um poço de inspiração para Luiz Melodia. Se, para mim, seu primeiro disco é o melhor da carreira, Maravilhas Contemporâneas, o seguinte, o é para muitos. Justíssimo. As primeiras palavras de Maravilhas Contemporâneas são, em “Congênito”: “Se a gente falasse menos, talvez compreendesse mais”. Um mantra bom de se ter – e especialmente corajoso nos tempos atuais.

Em meio a instrumentação e arranjos refinados – sob tutela de Oberdan Magalhães, ex-Black Rio, Chico Batera e Perinho Santana, vizinho de Luiz Melodia em Santa Teresa – o disco é melodia (contagiante) do início ao fim e mostra um artista confiante e à vontade, no embalo, também, do sucesso de Gal Costa cantando uma composição escrita por ele. Na faixa-título, com variação de velocidade e ritmo das mais interessantes, ele canta “sou quase nada, sou forte feito nobre humano” e, em “Questão de Posse”, homenageia o filho Hiran, de quem ficou afastado até os dois anos de idade, após a mãe, Beatriz, se mudar para o Espírito Santo. “Hiran, eu estou contigo, nego; Hiran, meu filho tenha sossego” – composta por Luiz, sozinho, em um sótão onde ele morou, na casa de amigos em Santa Teresa.

“Baby Rose” também é outra canção incrível do repertório, mas foi “Juventude Transviada” que fez o disco tão famoso nacionalmente. Com “Juventude Transviada”, Melodia, nas palavras dele, “se assustou”. Tema da novela Pecado Capital e com aparição destacada no Fantástico, essa é daquelas músicas que ouço desde criança e tenho a impressão de que minha avó também ouvia desde criança. “Até sonhar de madrugada, uma moça sem mancada, uma mulher não deve vacilar”. Capitaneado pelo hit, Maravilhas Contemporâneas teve um merecido sucesso e demonstrou que Melodia superava com sobras o famoso teste do segundo disco.

Destaques: “Congênito”, “Maravilhas Contemporâneas” e “Juventude Transviada”

 

Mico de Circo (1978)

A aparição de “Presente Cotidiano” no terceiro disco de Luiz Melodia é formidável. Foi a primeira música composta por ele que chamou a atenção de Gal – e a censura se meteu pelo trecho “tá tão ruim/ quem vai querer comprar banana”. Só depois veio “Pérola Negra” e o resto é história. O terceiro disco escolhido para essa seleção é justamente o terceiro disco da carreira do autor, Mico de Circo, mais uma demonstração de como os anos 1970 do músico foram arrebatadores.

Aqui, a lenda do samba Zé Kéti começa a se fazer presente na obra de Luiz, e “A Voz do Morro” cai perfeitamente na voz deste intérprete tão inconfundível. A gravação remete aos sambas ao vivo tocados em antigos programas de rádio, bem gafieira. Um espetáculo. Waly Salomão sugeriu que a faixa fosse a abertura do repertório, como um recado para quem acusava o músico do São Carlos de renegar o samba – depois, ele chegou a tocar no Clube do Samba, do mestre João Nogueira, a convite de Martinho da Vila. Para completar a seleção, o arranjo é de João Donato. Zé Kéti, Waly Salomão, Severino Araújo (orquestra) e Luiz Melodia. Esse time abre o álbum. “Sou eu quem leva a alegria para milhões de corações brasileiros”.

Mico de Circo foi feito em homenagem a marginalizados e seu lançamento aconteceu em Salvador, cidade da qual o autor se sentia parte – dizem, inclusive, que o lançamento foi uma festa daquelas, com um caruru de sete mil quiabos. Soteropolitana também é a inspiração de “Fadas”, outro grande sucesso de Melodia, que fecha este terceiro disco. Ele próprio admitiu que a canção é uma homenagem a “algumas namoradas baianas, três ou quatro delas”.

“Um toque de sonhar sozinho te leva em qualquer direção, de flauta, remo ou moinho, de passo a passo, passo”. No dia da gravação de “Fadas”, a amada Jane, tão importante na vida pessoal e artística do músico carioca, descobriu que estava grávida. “Os poetas não sabem andar sozinhos” – frase dita por Jane que foi reproduzida no livro Meu Nome É Ébano: A Vida e a obra de Luiz Melodia, de Toninho Vaz, utilizado como grande referência histórica para esta seleção.

Com a contracapa homenageando mais de 100 pessoas, lista que inclui os Robertos Carlos e Dinamite, Mico de Circo mostrava um artista que vivia sucesso, êxtase e que se sentia querido.

Destaques: “A Voz do Morro”, “Presente Cotidiano” e “Fadas”

14 Quilates (1997)

Agora, enfim, um disco de uma fase mais madura de Luiz Melodia. Madura e, à época, recém-premiada. Melodia levou dois prêmios no 9º Prêmio Sharp em 1997, por Melhor Música pop/rock (“Só Assumo Só”) e melhor cantor pop/rock, troféu dividido com Rita Lee. Luiz Melodia, já quarentão, criou naquele ano 14 Quilates.

Duas regravações clássicas neste álbum são muito bem escolhidas para o repertório de 13 músicas. “Ébano”, composta pelo próprio Melodia, e “Quase fui lhe procurar”. “Cruel”, do grande amigo e também “maldito” Sérgio Sampaio, tem uma linda letra que cai como luva na voz de Melodia, tanto em estúdio quanto nos palcos.

14 Quilates manteve Melodia nas estradas e na mídia depois de seis anos de discos sem inéditas. “Não vejo motivo para lançar um disco atrás do outro. Eu acredito em inspiração”, ele disse em entrevista à Folha. Na mesma entrevista, ele conta que o disco surgiu especialmente a partir da parceria com o produtor Ricardo Augusto, que o tirou de uma fase de ócio. “Eu estava bem preguiçoso em relação à composição. Aí reencontrei um amigo e parceiro num show. Nos juntamos e em dois dias fizemos seis músicas”. Ele mostrou que ainda tinha lenha para queimar e sucesso para fazer, como provou no disco seguinte.

Destaques: “Ébano”, “Quase Fui Lhe Procurar” e “Cruel”

 

Acústico Ao Vivo (1999)

Eleger o Acústico Ao Vivo para fechar essa lista poderia ser apenas um atalho para colocar outras belas obras compostas e interpretadas por Luiz Melodia. Mas esse álbum é bem mais do que isso, além de ser o único registro do autor a vender mais de 100 mil cópias e conquistar o cobiçado Disco de Ouro.

Esse ao vivo cheio de energia gravado no Teatro Rival, casa importantíssima na retomada de sua carreira, foi parte de uma turnê aclamada pelo Rio de Janeiro. É um disco bom para todas as ocasiões – da cerveja com os amigos à estrada com a família. Os arranjos são novamente deslumbrantes. O violão quase fala em músicas como “Surra de Chicote”, extremamente superior na versão ao vivo, com gritos e entusiasmo poderoso. ­E “Codinome Beija-Flor” tem uma versão tão empolgada quanto. Melodia e Cazuza foram grandes amigos. Este último se declarava fã, dizia que ouvia Melodia quando estava relaxando em casa. No começo dos anos 1990, Lucinha, mãe de Cazuza, disse “Luiz, meus parabéns, devo reconhecer que a sua gravação de ‘Codinome Beija-Flor’ é melhor do que a do meu filho”. Além das releituras estonteantes, a seleção das músicas é irretocável. “Zé Kéti é o cara, não adianta”, ele diz quando manda “Diz que Fui Por Aí”, canção extremamente ilustrativa da vida do boêmio carioca Melodia, fãzaço de uma madrugada regada a chopp e violão. A interação entre cantor e público, característica marcante dos shows de Melodia, aqui é elevada ao máximo. Sobretudo em “Cara a Cara”, uma declaração de amor e tesão para sua inseparável Jane, a garota da calcinha preta.

A maior parte das músicas citadas nesse 5pra1 está nesse Acústico Ao Vivo. Se alguém que ainda não teve o prazer de conhecer Luiz Melodia me pede indicação de um disco para começar, é neste de capa roxa que eu vou.

Destaques: “Diz que Fui Por Aí”, “Surra de Chicote” e “Codinome Beija-Flor”

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ARTISTA: Luiz Melodia