5pra1: Mariah Carey

O domínio técnico, a avalanche de hits e as caricaturas de uma estrela que, desde os anos 1990, influencia vigorosamente o pop

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Fotos: Ron Davis

A série 5pra1 apresenta e destrincha cinco discos que servem como primeiro mergulho na obra de um artista.

 

Mariah Carey é uma artista que só pode ser pensada no superlativo, tanto por seu enorme talento quanto pela personalidade expansiva, às vezes no limite do caricato, que construiu com maestria ao longo de suas três décadas de carreira. Ainda que por muitos anos tenha sido diminuída e até ridicularizada, sua obra é multifacetada, com nuances e fusões entre o popular e o domínio musical profundo, que resulta em virtuosismo colocado à luz das engrenagens mercadológicas da música pop.

Quando se apresentou ao mundo, em 1990, aos 21 anos, teve sua imagem e sonoridade moldadas pela gravadora e seu então marido, o à época presidente da Sony Music Tommy Mottola, mirando uma audiência mais conservadora. Embora compusesse praticamente todas as suas canções, o lugar que lhe era reservado junto ao grande público era rígido: o da intérprete do vozeirão destinada a cantar o amor e suas dores em lugar mais seguro. Filha de mãe branca e pai negro, ela também tensionava questões raciais, colocando em xeque o que alguém como ela poderia ou deveria cantar.

Não demoraria muito tempo até que a estadunidense começasse a tomar as rédeas do seu projeto e abraçasse o R&B contemporâneo e o hip hop  que cresceu ouvindo e que tanto apreciava. Mariah questionou fórmulas, passou a experimentar mais sonoridades e revelou uma característica que abraçaria sem ressalvas a partir do Rainbow (1997): o humor. Deixando para trás a seriedade que marcava seus primeiros trabalhos, Carey mostrou um lado divertido, leve, camp. Um exagero que ao invés de comprometer a qualidade de suas músicas, deu a elas mais robustez.

32 anos depois de lançar seu primeiro álbum, Mariah Carey continua onipresente no pop. Sua influência está no alicerce do que se escuta hoje no mainstream e pode ser encontrada de forma direta (só para citar um exemplo, “Big Energy”, da rapper Latto, atualmente no top 3 da Billboard, referencia o single “Fantasy”) ou diluída (Ariana Grande é uma de suas grandes fãs e ecoa seu trabalho, inclusive na relação com o hip hop). Se por muito tempo era cool não gostar de Mariah Carey, atualmente sua obra e influência têm sido vistas com a devida importância. Para além dos números (são mais de 220 milhões de álbuns e singles vendidos e 18 músicas que atingiram o primeiro lugar na principal parada dos EUA), ela é uma artista completa e complexa.

Sua voz e estilo de canto, com o uso marcante de melismas e falsetes,  moldaram gerações e seus talentos não se restringem à vertente intérprete. Como compositora, Mariah é uma exímia contadora de histórias que ficou conhecida por baladas cheias de urgência, nas quais o amor e sua angústia e êxtase aparecem na máxima potência, e hits pop com melodias cativantes, mas sua discografia também é marcada por um constante sentimento de inadequação. Mariah é o status quo e também a outsider. É a diva em sua definição mais clássica e também a criança excluída clamando por aceitação. Viu o sucesso e experienciou o fracasso, sem parar de criar.

Portanto, propor um recorte de sua obra é inevitavelmente deixar de fora muitos caminhos interessantes de uma carreira longeva, com 15 discos de estúdio e vários clássicos. Nesta seleção, vamos pensar Mariah Carey a partir do momento em que, ao nosso ver, ela começa a construir sua persona artística com autonomia – e os riscos que assume, com seus ápices e tropeços.

Daydream (1995)

Quinto disco de estúdio da artista em cinco anos, Daydream marca o início da tomada de controle criativo da cantora. Seus álbuns anteriores, Mariah Carey (1990), Emotions (1991) e Music Box (1993) foram sucessos avassaladores, vendendo, juntos, mais de 50 milhões de álbuns (em 1994, ela lançou o natalino Merry Christmas). Nesses primeiros trabalhos estão alguns de seus maiores hits, como “Vision of Love”, “Hero”, “Emotions” e o cover de “Without You”. Eram, também, álbuns que apresentavam uma imagem unilateral de Mariah, forjada por seu então marido e chefe da gravadora Sony, Tommy Mottola: comportada e dialogando com uma sonoridade mais conservadora, voltada para músicas de amor e coração partido.

Com Daydream, Mariah Carey começa a se aproximar do R&B contemporâneo, colaborando com produtores como Jermaine Dupri, nome forte do hip hop dos anos 1990 e que viria a se tornar um parceiro musical, e Babyface, o grupo Boyz II Men, entre outros. O disco marca o início do fim da relação amorosa e profissional de Mariah com Mottola e começa a apresentar uma imagem mais jovial da cantora, capturada pelas ótimas “Always Be My Baby”, “Fantasy” e no flerte com as sonoridades eletrônicas, em “Daydream Interlute – Fantasy Sweet Dub Mix”, com produção sua e do  DJ David Morales.

Destaques: “Fantasy”, “Always Be My Baby”, “Underneath the Stars”

 

Butterfly (1997)

Se com Daydream Mariah abriu as portas para a experimentação, em Butterfly ela deixou clara qual era sua visão artística. Descrito pela própria como sua obra-prima, o álbum é maduro, confessional e conectado com o seu tempo. Enquanto os primeiros trabalhos de Mariah almejavam uma sonoridade mais atemporal, Butterfly está inserido no momento de virada da fusão do pop com o R& e hip hop, que marcaria o final dos anos 1990 e início dos 2000.

O uso astuto de samples mostra o vasto conhecimento de Mariah da música negra estadunidense, com referências a The Treacherous Three, The World’s Famous Supreme Team e Run DMC, pioneiros do hip hop, Mobb Depp, Bone Thugs-n-Harmony e os Jackson 5. Em termos de composição, ela também apresenta algumas de suas letras mais elegantes e reveladoras, a exemplo de “Outside”, uma reflexão sobre crescer birracial em um país racista. Ela explora também outros registros de sua voz, por vezes mais grave e contida, como em “The Roof”. É um trabalho que abre caminhos para Rainbow, disco ainda mais leve e pop, quando Mariah incorpora de vez o humor e elementos camp em seu trabalho.

Destaques: “The Roof”, “Honey”, “My All”

 

Glitter (2001)

Por muitos anos, esse foi considerado um disco maldito. Concebido como trilha sonora do primeiro filme de Mariah, que leva o mesmo nome, foi lançado no dia 11 de setembro de 2001. Massacrado pela crítica, vendeu pouco para os padrões da artista, culminou com a rescisão de um contrato com a gravadora Virgin avaliado em 100 milhões de dólares. Pouco tempo depois, Mariah se afastou dos holofotes para cuidar de sua saúde mental, período em que foi diagnosticada com transtorno bipolar.

Apenas nos últimos anos, graças a uma campanha dos fãs, o disco começou a ser reavaliado. E merece. É talvez o trabalho mais fora da curva da artista e celebra sua paixão pela sonoridade dos anos 1980, a disco music, o funk, new jack swing e o hip hop. Majoritariamente dançante, tem versões deliciosas de “Didn’t Mean To Turn You On”, de Cherrelle, e “Last Night a DJ Saved My Life”, de Indeep. Além de participações de vários nomes do rap, como Busta Rhymes, Fabolous, Ja Rule, Da Brat, Ludacris e Cameo.

As baladas estão lá, mas não são o foco, como até então era mais comum em sua obra. É um trabalho para as pistas de dança, que exala desejo, com olho no passado sem perder o tato com sua época. A maioria das produções é assinada pela dupla Jimmy Jam & Terry Lewis, uma das grandes responsáveis por moldar o som do R&B entre as décadas de 1980 e início dos 2000. Merece ser revisitado.

Destaques: “Didn’t Mean To Turn You On”, “Loverboy”, “Never Too Far”

The Emancipation of Mimi (2005)

Depois do fracasso de Glitter e seu sucessor, Charmbracelet (2002), no qual retornou a uma fórmula mais ancorada em baladas, Mariah era dada como ultrapassada pela mídia. Com o sucesso do teen pop e de novas estrelas do R&B, ela passou a ser vista como carta fora do baralho no panteão do pop. E então, em 2005, ela tomou de assalto as paradas ao redor do mundo com The Emancipation of Mimi, que reposicionou sua imagem e sonoridade. Mais uma vez reunida com Jermaine Dupri, ela se cercou de produtores como Neptunes, Kanye West, Swizz Beatz, Bryan-Michael Cox e Darkchild para criar um clássico dos anos 2000.

Responsável por compor e coproduzir todas as faixas, o álbum reforça a visão certeira de Mariah sobre a melhor forma de contar a sua história. As letras passeiam por temas diversos, do flerte na festa (“It’s Like That”, “Get Your Number” e “To The Floor”) ao pé na bunda (“Shake It Off”), o coração partido (“We Belong Together, uma de suas músicas definitivas e faixa de maior sucesso da década de 2000, segundo a Billboard) à superação dos tempos árduos (“Joy Ride” e “Fly Like a Bird”). A fusão de gêneros e a voz madura e segura de Mariah fazem da obra uma jornada poderosa do início ao fim.

Destaques: “We Belong Together”, “It’s Like That”, “Fly Like a Bird”

 

Caution (2018)

Os últimos 15 anos foram frutíferos para Mariah. Pós-Emancipation…, ela emplacou singles de sucesso nos discos E=MC² (2004) e Memoirs of an Imperfect Angel (2009), mas, apesar de bons momentos, são álbuns irregulares. Ela volta a entregar um trabalho mais coeso e menos preocupado com as paradas de sucesso com Me. I Am Mariah… The Elusive Chanteuse (2014) e parece ainda mais à vontade em criar à revelia das expectativas comerciais no álbum Caution.

Seu trabalho mais elegante em anos é também um lembrete da disposição de Mariah para continuar exercitando seu talento como compositora e intérprete. O álbum foge de explosões – evita as baladas derramadas ou mesmo a pulsação das boates. É majoritariamente mid-tempo, mas isso não quer dizer que seja morno. Há, pelo contrário, uma segurança e uma atitude que a maturidade parece ter reforçado em Mariah. “A No No”, por exemplo, faz referência ao clássico “Big Momma Thang”, de Lil’ Kim (a reverência ao hip hop sempre presente), enquanto “GTFO” parece fofa, mas é cheia de sarcasmo.

Em “Giving Me Life”, produção de Dev Hynes, ela entrega uma de suas canções mais surpreendentes e multifacetadas, enquanto em “Portrait” ela volta a explorar a sensação de isolamento e inadequação que marca sua trajetória pessoal e artística. É admirável esse ímpeto em continuar se arriscando, ao mesmo tempo em que assume cada vez mais a agência sobre a narrativa sobre sua obra. Livre da pressão para estar no topo das paradas – o que, por sinal, ela continua atingindo anualmente com o clássico “All I Want For Christmas Is You” –, ela parece cada vez mais confortável em ser Mariah. Criativa, exagerada, contraditória, complexa, o que tem se materializado em trabalhos vigorosos. Mariah, afinal, continua e continuará entre nós.

Destaques: “Giving Me Life”, “A No No”, “Caution”

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ARTISTA: Mariah Carrey