5pra1: Mary J. Blige

As emoções à flor da pele e a voz inimitável da Rainha do Hip Hop Soul, que faz aniversário hoje (11/01)

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Fotos: Annie Leibovitz

A série 5pra1 apresenta e destrincha cinco discos que servem como primeiro mergulho na obra de um artista.

 

Durante os primeiros anos da década de 1990, os ouvintes americanos presenciaram a ascensão – e a consolidação – de novos nomes que ecoariam por muito mais tempo pela indústria. De um lado, o Rock trazia o furor grunge de Nirvana e Pearl Jam e também alçava ao estrelato bandas como R.E.M. e Red Hot Chili Peppers; do outro, capitaneado pela produção revolucionária de Dr. Dre, o Rap chegava com a estética Gangsta – e também abria espaço para a veia alternativa de A Tribe Called Quest e De La Soul. Havia ainda a bem-sucedida mescla entre R&B e Pop, que resultava em hits de Mariah Carey, Janet Jackson e Boyz II Men dominando as paradas. No meio dessa ebulição, surgira uma garota do conjunto habitacional Schlobohm, em Yonkers (NY), combinando brilhantemente referências clássicas do Soul à linguagem do Hip Hop: Mary J. Blige.

Seus dois primeiros discos, What’s The 411? (1992) e My Life, logo a credenciaram como uma força autêntica do R&B noventista. Mais do que música, seu estilo, suas letras confessionais e sua personalidade criaram conexão imediata com uma legião de fãs. Ao exorcizar seus demônios escancaradamente, Mary ajudou garotas como ela a também afugentarem seus fantasmas. “Homens tinham representatividade, tinham suas histórias. Mas eu não me identificava com as mulheres. E ela de boné pra trás, saia de tênis, coturno – ela era nossa Urban Hood Girl Model. Vimos algo que nunca tínhamos visto antes, mas que sabíamos que existia. Eu era como ela. Então, ela nos deu um rosto, nos deu um nome, uma história. Ela nos humanizou”, relembra a atriz Taraji P. Henson, no documentário Mary J. Blige’s My Life (2021). Alicia Keys também foi atingida pela energia da Rainha do Hip Hop Soul: “Comecei a me sentir bem comigo mesma, com se sentir um pouco imperfeita e ter um ponto de vista forte. Senti que poderia ser eu mesma. Foi incrível e, na verdade, percebi que não queria ser parecida com ninguém. Poderia ser apenas mais uma garota com um sonho e poderia ser especial. Você não vê muito esse tipo de coisa mesmo hoje em dia. Para mim, aos 13 anos de idade… foi o incentivo que eu precisava”.

São mais de 30 anos de carreira, 13 álbuns de estúdio, nove prêmios no Grammy, além de três indicações ao Globo de Ouro e duas ao Oscar. Aqui, estão cinco discos para adentrar o universo musical e emocional de Mary J. Blige, que completa 51 anos de idade hoje (11 de janeiro).

 

What’s The 411? (1992)

Antes de completar 20 anos de idade, Mary J. Blige foi descoberta por Jeff Redd, caça talentos da Uptown Records que ouviu sua poderosa voz em uma versão de “Caught Up in the Rapture”, de Anita Baker. A fita, entregue pelo padrasto de Mary a Redd, chegou aos ouvidos de Andre Harrell, empresário forte da gravadora. O resultado: em 1992, Mary fez sua estreia com What’s The 411?, produzido por, entre outros nomes, um Puff Daddy-pré-Notorious-B.I.G. – cuja parceria com a cantora duraria mais uns bons anos.

O disco apresenta pela primeira vez esse composto de Hip Hop Soul tão característico de Mary J. Blige, especialmente por meio das envolventes “Real Love” – citada, duas décadas depois, por Frank Ocean em “Super Rich Kids” – “Reminisce” e “You Remind Me”. Há ainda uma fabulosa versão de “Sweet Thing”, clássico de Chaka Kahn, repaginada nos inconfundíveis timbres da primeira metade dos anos 1990. Temas como a busca por amor (verdadeiro), dores da solidão e resiliência são envelopadas por uma marcante voz rouca e uma personalidade que carregava a atitude urbana e uma sensibilidade, uma faceta “à flor da pele”, que batia de frente com grandes divas do Soul. Um inesquecível cartão de visita que chegou ao topo da parada de R&B da Billboard e que ganharia um sucessor à altura – senão ainda melhor – dois anos depois.

Destaques: “Real Love”, “You Remind Me”, “Sweet Thing”

My Life (1994)

Mary J. Blige superou, com sobras, o desafio do segundo disco após uma estreia prestigiada – e soltou um clássico do R&B noventista. Considerado seu disco mais importante pela própria (e pela crítica), My Life é irresistível e afina ainda mais a dobradinha entre a cantora e Puff Daddy, que, acompanhado do multi-instrumentista Chucky Thompson, assina a produção de praticamente todas as canções. Uma mistura azeitada entre samples e camadas musicais encorpadas permeia um repertório que nunca se perde em exageros – segue seu caminho, seguro, entre cacoetes do Hip Hop e a linguagem mais “clássica” do Soul, sem se prender exatamente a nenhum deles.

A sinceridade e a vulnerabilidade de Blige são contagiantes, justamente porque trilham o caminho para a redenção. Temas pesados como depressão, luta contra o vício em drogas e relacionamentos abusivos – vivido por Mary com K-Ci, da dupla & Jojo – são tratados com otimismo e esperança. A faixa-título, com sample de “Everybody Loves The Sunshine”, de Roy Ayers, ainda que sequer tenha sido escolhida como single, se tornou um hino de empoderamento feminino; “Be Happy”  atingiu o 6º lugar da parada de R&B da Billboard; “Mary Jane (All Night Long)” chegou ao Top 20 das paradas britânicas, levando de vez a voz de Blige para a Europa; e ainda há espaço para o delicioso Soul-Fossa “I’m Goin’ Down”, cover do Rose Royce. Indicado ao Grammy de Melhor Álbum de R&B, My Life foi considerado o 63º melhor disco dos anos 1990 pela Rolling Stone.

Destaques: “My Life”, “Mary Jane (All Night Long)”, “I’m Goin’ Down”

 

Mary (1999)

Após entregar sua voz para o marcante refrão de “Can’t Knock The Hustle”, clássico de Jay Z – presente em sua aclamada estreia Reasonable Doubt –, e colocar Share My World (1997) direto no topo da parada da Billboard, Mary J. Blige se desvencilhou consideravelmente da linguagem do Hip Hop. O resultado é Mary (1999), um disco mais smooth e que bebe principalmente de referências do Soul da década de 1970, sem, entretanto, perder de vista a atmosfera envolvente do R&B dos anos 1990.

Com batidas mais lentas do que em seus antecessores, Mary talvez seja o disco “menos Rap” de seu catálogo e abre espaço para participações estelares: George Michael (na versão de “As”, de Stevie Wonder, incluída na edição japonesa do disco e lançada com single para além de terras americanas), Aretha Franklin (!) (no belíssimo dueto “Don’t Waste Your Time”), Eric Clapton (na guitarra da slow jam “Give Me You”), Lauryn Hill (“All That I Can Say”, escrita e produzida por Hill), além do célebre percussionista brasileiro Paulinho Costa (na explosiva “The Love I Never Had”). Com produção polida e a mais orgânica de sua carreira até aquele momento, Mary estreou em segundo lugar da parada de álbuns americana e demonstrou que a cantora já era madura o suficiente para assumir o posto de uma diva moderna do Soul. E mantendo as emoções afiadas – como disse uma elogiosa resenha da Q na época: “Blige vai de atrevida a agonizante a vulnerável no espaço de uma única frase (…) a Rainha do Hip Hop Soul permanece elegante e invencível”.

Destaques: “All That I Can Say”, “Don’t Waste Your Time”, “The Love I Never Had”

No More Drama (2001)

Aos 30 anos de idade, Mary J. Blige entrou no novo milênio com os dois pés na porta – confiante e pronta para um novo momento emocional. Como o título anuncia, No More Drama é um manifesto de perseverança e a poderosa faixa-título – com sample certeiro do tema da soap opera The Young and The Restless (1973) – sintetiza essa purgação. A faixa é mais do que um suplício, é uma catarse, uma purificação capaz de emocionar, mas especialmente de renovar o espírito frente a desafios internos e externos. Mary, sempre intensa e transparente, demonstra tudo isso em performances ao vivo da canção. Mas, ainda que a faixa sirva de amostra para essa cicatrização que perpassa tematicamente o repertório, em termos sonoros, No More Drama é mesmo mais solar, enérgico e dançante. Vide o estrondoso hit “Family Affair”, produzido por Dr. Dre, que chegou ao topo do disputado Hot 100 – o primeiro e único número 1 da cantora.

Conectada aos bangers do Rap que despontavam no início dos anos 2000, Mary convocou, fora o próprio Dre, nomes de peso para a produção: The Neptunes (“Steal Away”, com canja de Pharrell), Swizz Beats (“Where I’ve Been”, com participação de Eve), Rockwilder (“Keep It Moving”) além de Missy Elliott, que contribuiu nos backing vocals de “Never Been”. No More Drama conquistou a medalha de prata na parada da Billboard, foi indicado ao Grammy de Melhor Álbum de R&B e, segundo a Rolling Stone, mostrou Blige soando “mais saudável do que nunca”.

Destaques: “No More Drama”, “Family Affair”, “Never Been”

 

Strength Of a Woman (2017)

Outros discos poderiam completar essa seleção – especialmente The Breakthrough (2005), do hit “Be Without You”, e o vencedor do Grammy de Melhor Álbum de R&B Contemporâneo Growing Pains (2007), da endofirnada “Just Fine” –, mas Strength Of a Woman funciona como a coroação de uma carreira que, três décadas depois, segue sólida e efervescente. Mais do que isso: é uma demonstração de como Mary J. Blige está, enfim, muito bem. A abertura “Love Yourself”, com (épica) produção e versos de Kanye West, dá o tom redentor do repertório, que ainda conta DJ Khaled, Quavo e Missy Elliott na ligeiramente Trap “Glow Up”, e KAYTRANADA e BADBADNOTGOOD na dancinha-lenta “Telling The Truth”. Mary soa moderna, renovada e, ao mesmo tempo, a mesma de sempre.

A fantástica “U + Me (Love Lesson)” e “Thank You” (composta em parceria com Jazmine Sullivan) mostram como as canções sobre términos continuam no ponto, e a sexy “Set Me Free” é daquelas que comprovam que a voz e a entrega de Mary sempre serão inimitáveis. Arrematando, “Hello Father” presta tributo a Mary da época de My Life e What’s The 411?, com a levada típica do R&B Pop da década que a revelou. “I’ve been broken for a long time, now I’m standing in the sunshine”, entoa a canção “Smile”, colaboração com Prince Charlez. Strength Of a Woman soa exatamente assim: um banho de sol, relaxado e aliviado, de uma artista que colhe os frutos de sua honestidade para enfrentar o mundo e a si mesma. E que, justamente por ser tão sincera, humana e visceral ao repassar sua vida, carrega experiências e resoluções que parecem universais.

Destaques: “Love Yourself”, “U + Me (Love Lesson)” “Glow Up”

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ARTISTA: Mary J. Blige