5pra1: Tom Zé

Um passeio pelas múltiplas faces do baiano de Irajá que, no fim dos anos 1960, foi peça essencial do Tropicalismo e, com mais de cinco décadas de carreira, é uma das figuras mais inclassificáveis e instigantes da música brasileira

Loading

Fotos: Acervo Tom Zé

A série 5pra1 apresenta e destrincha cinco discos que servem como primeiro mergulho na obra de um artista.

 

Para Caetano Veloso, Tom Zé não apenas fez parte do Tropicalismo como ainda “realizou as obras mais ambiciosas no sentido de caracterizá-lo”. Mas o fato é que, embora sua carreira tenha sido impulsionada ao integrar o grupo tropicalista, desde muito cedo as intenções do baiano da pequena cidade de Irará extrapolavam quaisquer projetos estéticos bem delineados. No documentário Fabricando Tom , a esposa e produtora Neusa Martins comenta: “Tom Zé já fazia um tipo de canção que não tinha abrigo na época. Veio o Tropicalismo falando sobre modernidade, cotidiano, assimilando linguagens… Ele já estava fazendo isso e ficou sob esse guarda chuva do tropicalismo um certo tempo (…) o tropicalismo passou e pegou o Tom Zé no que ele já estava fazendo”.

Dentre aquele grupo de artistas, Tom Zé é talvez o que mais mostrou compromisso com uma radicalidade artística, indo sempre em direções inesperadas quando qualquer tentativa de limitar e classificar a sua música era imposta. Entre 1962 e 1967, ele estudou na Escola de Música da Universidade da Bahia com dois mestres da música moderna: o suíço Walter Smetak e o alemão Hans-Joachim Koellreutter, que lhes apresentaram as vanguardas europeias da música concreta, música eletrônica e incorporação de ruídos. Ao mesmo tempo, nunca abandonou — ou melhor, sempre partiu — do baião, do frevo, do samba e toda “cultura pré-aristotélica”, como costuma dizer. Essa recusa aos lugares estabelecidos lhe rendeu um longo período de ostracismo entre os anos 1970 até a sua “descoberta” por David Byrne, em 1986, quando o líder do Talking Heads viera ao Brasil divulgar o seu filme True Stories e topou com o LP Estudando o Samba.

No Livro do disco: Estudando o Samba, o crítico Bernardo Oliveira aborda essa posição ambígua e inclassificável de Tom Zé ressaltando um neologismo criado pelo próprio músico.  “Ao exercício egoico da chamada ‘Criatividade’, Tom Zé opõe uma tendência marginal, a ‘procuratividade’, uma maneira poética de se referir à experimentação continuada, refratária a quaisquer intervenções externas, sobretudo as corporativas”, propõe o autor.

Essa lista é um passeio pelas múltiplas facetas do artista. Para além dos cinco aqui reunidos, vale a pena investigar também os discos de sua primeira fase (mais popular em termos de vendas e sucesso de público), especialmente Grande Liquidação (1969) e Se o Caso é Chorar (1972).

 

Todos os Olhos (1973)

Na noite do dia 9 de dezembro de 1968, Tom Zé subiu ao palco do IV Festival de Música Popular gripado e com um par de olheiras. Mas saiu de lá consagrado: sua música “São São Paulo, Meu Amor” ganhou o primeiro lugar no júri especial — e a noite de consagração tropicalista ainda teve Gal Costa com “Divino, Maravilhoso” em terceiro lugar e Os Mutantes com “2001” na quarta posição. Embalado pelo sucesso do festival, Tom Zé entrou na década de 1970 na crista da onda. As canções “Jeitinho Dela” e “Se o Caso é Chorar” faziam um sucesso expressivo no Brasil inteiro (esta última ele diz ter sido primeiro lugar na parada da Rádio Nacional). Mas o destino do músico foi outro.

“Eu esperava que esse ia ser o disco que ia me botar pra frente, mas com Todos os Olhos eu desapareci”, contou em entrevista ao programa Som do Vinil. Ao percorrer as menções a Tom Zé nos jornais dos anos 1970, o crítico Bernardo Oliveira confirma: “Outros artistas eram classificados como malditos, mas ele foi simplesmente interditado”.

Em 1972, um ano antes do lançamento de Todos os Olhos, Caetano Veloso e Gilberto Gil retornavam ao Brasil após quatro anos de exílio na Europa. O Tropicalismo deixava de ser uma bandeira a ser defendida publicamente e suas proposições estéticas, então reavaliadas pela classe média, ajustavam-se paulatinamente ao gosto médio. Assim, expoentes tropicalistas deixaram de ser vistos como ameaças escandalosas e foram adentrando o panteão “refinado” da MPB. Mas não Tom Zé, que radicalizou mais ainda a sua experimentação.

Incorporando procedimentos oriundos das vanguardas europeias do século 20 (como o ruído, o acaso, o minimalismo e experiências eletrônicas), Tom Zé abre este icônico álbum com “Complexo de Épico”, afirmando: “Todo o compositor brasileiro é um complexado”. Bernardo Oliveira ressalta que a discussão sobre este complexo é um momento chave na obra do baiano. “Apesar do tom de escárnio, a detecção do complexo de épico parecia distinguir-se do tropicalismo ao reivindicar a radicalização da singularidade e da experimentação. Esses fatores abriam ainda mais as perspectivas culturais, tanto a do conservador aferrado como a do burguês intelectual”. Em seu livro Tropicalista Lenta Luta, o próprio Tom Zé escreve: “Era o que eu precisava fazer: fugir desse corpo-cancional e tentar uma cantiga feita de outra matéria, de outra substância”.

Os ritmos fraturados e cíclicos (os chamados ostinatos) de “Complexo de Épico” e da faixa-título antecipam as levadas tortuosas do pós-punk, mas Tom Zé ainda toma a canção como seu território de atuação — mesmo que para desmontá-la. Os drones sombrios de “A Noite de Meu Bem” (clássico do rádio brasileiro de Dolores Duran) são um bom exemplo, somando-se ainda com a pungente reflexão sobre o peso da fama, a solidão, e o mercado das imagens disseminadas pela mídia de massa em “Brigitte Bardot” (A Brigitte Bardot está ficando velha/ Envelheceu antes dos nossos sonhos (…) A Brigitte Bardot está se desmanchando e os nossos sonhos querem pedir divórcio”).

Todos os Olhos foi o disco que mostrou de vez Tom Zé como um artista dos desvios, do inclassificável, avesso a quaisquer expectativas impostas por terceiros. E para quem o quer como um vanguardista super erudito, ele canta a singela “Quando Eu Era Sem Ninguém”. Quando todos os olhos se voltam para ele, de lá do fundo da escuridão, esperando e querendo um herói, Tom Zé exclama: “Mas eu não sei de nada!”

Destaques: “Complexo de Épico”, “Augusta, Angélica e Consolação”, “Dodó e Zezé”.

Estudando o Samba (1976)

“Um professor de português da TV Cultura me pediu pra cantar Tom Jobim, ‘A Felicidade’. E por acaso eu tinha uma porção de sambas, então falei: vou fazer esse disco colocando somente sambas e vou botar [o título] Entortando o Samba“, narrou Tom Zé ao Canal Brasil. Achando pretensioso, ele logo abandonou o título e chegou ao derradeiro Estudando o Samba. O álbum era uma tomada de posição ousada e inovadora diante do gênero. “O samba está mais aprisionado pelos seus próprios cultores que não querem que nada de estranho entre no samba. Uma forma viva, vítima de seu tempo”, afirmou.

“O estudo não se propõe simplesmente a alargar os sentidos do samba para reconfigurá-lo enquanto gênero, como seria o caso de Paulinho da Viola os Novos Baianos”, analisa Bernardo Oliveira no livro sobre o clássico álbum. “Aqui o samba é matéria de uma exploração sonora que desafia os ditames rigorosos do ambiente musical brasileiro, desviando-se das formas consolidadas por uma certa perspectiva da tradição. Para Tom Zé, o samba tem tradução”.

Executando o que chama de “descanção” (isto é, a provocação de um misto de intimidade e estranheza no ouvinte), Tom Zé imprime um caráter percussivo aos instrumentos melódicos e repensa as possibilidades do samba a partir de outros procedimentos. A instrumental “Toc” é talvez o exemplo mais instigante: a batida do tamborim é transposto para as cordas de aço da viola, enquanto vão surgindo recursos da música concreta, como gravações de ruídos, sons de rádio de pilha e gritos. Mas novamente Tom Zé continua movendo-se, driblando as rotulações fáceis e dando voz a canções redondas de refrãos fortes, como o acalanto “Só (Solidão)”, a pungente parceria com Elton Medeiros “Mãe (Mãe Solteira)” e a contagiante “Hein?”, que conta com participação de Vicente Barreto (que depois iria compor “Morena Tropicana” com Alceu Valença).

Na análise de Oliveira, Tom Zé não despreza a tradição sambista, porém “lança uma suspeita sobre os procedimentos consolidados como portadores de uma predisposição para oferecer ao público o que ele já conhece”. Eis aqui a síntese da carreira de Tom Zé: “Te explicando para te confundir”, como nos versos imortais de “Tô”.

Este foi o álbum que fisgou David Byrne, que tomou contato com o LP quando passou no Rio de Janeiro em 1986. De início, o americano foi atraído pela singular capa de arames farpados e cabo de aço e logo se apaixonou pela musicalidade desbravadora do álbum. Em 1989 o vocalista do Talking Heads fundou o selo Luaka Bop e Tom Zé foi um dos primeiros artistas lançados. Esse fato trouxe notoriedade internacional e reergueu a carreira do baiano, que vivia em ostracismo. No programa Roda Viva, ele comentou: “Imagino eu que ele [Byrne] estava no Rio malandreando, entrou numa loja de discos e disse: ‘Me dá todos os discos de samba que eu tô interessado em saber o que é’. Então eu devo a um arrumador de loja desastrado que pegou meu disco, que não tem nada a ver com pagode e tal, e honrosamente botou ele lá junto dos pagodes na cesta do David Byrne”.

Destaques: “Hein?”, “Toc”, “Mãe Solteira”

 

Nave Maria (1984)

Este é um disco menos conhecido e comentado do que os primeiros álbuns de Tom Zé, mas é também um dos seus trabalhos mais curiosos e fora da curva. Lançado entre os grandes clássicos dos anos 1970 e redescoberta por David Byrne, Nave Maria volta a muitos elementos apresentados em Estudando o Samba — a faixa título, por exemplo, é a mesma música de “Mã”, só que mais acelerada e com uma nova letra. Ainda assim, o álbum tem uma sonoridade lo-fi cheia de eletricidade que dialoga com o pós-punk paulista daquela década de 1980 — sem deixar de lado, claro, suas influências e da música experimental e da canção popular brasileira.

Listada como uma das melhores músicas dos anos 1980 pela Pitchfork, “Nave Maria” abre o álbum narrando o épico nascimento de um Cristo alienígena: “Quando eu cheguei das estrelas/ Entrei na terra/ Por uma caverna/ Chamada Nascer”. Nas artes do álbum, produzidas por Elifas Andreato (designer responsável por capas icônicas de Martinho da Vila, Paulinho da Viola, Clementina de Jesus e outros), Tom Zé aparece enrolado em um plástico, como se estivesse envolto na bolsa amniótica produzida por um “orgasmo invertido”, tal qual a letra.

Daí em diante o músico vai desfilando cantigas “no colo quente da bomba nuclear”, como diz no samba “Acalanto Nuclear”. Inspirada pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, “A Terra, Meus Filhos” (que viria a ser regravada no disco Tropicália, Lixo Lógico) fala do planeta que lentamente envelhece em maus tratos, revelando seus assassinos em um apocalipse frio e paciente. Mais atual do que nunca, “Identificação” é uma visão distópica da vida automatizada entre impulsos de medo e sintomas neuróticos: o cidadão como uma máquina com obsolescência programada pelo “consumo de alimentos envenenados”, pelo “salário amarrado, suado, apertado” e pelo “medo de doenças incuráveis”. Nave Maria é a epopeia de  Tom Zé para o fim do mundo.

Destaques: “Nave Maria”, “Mamar no Mundo”, “Conto de Fraldas”

Com Defeito de Fabricação (1998)

Neste álbum Tom Zé constrói uma análise aguda sobre o terceiro mundo e sua condição de pobreza perpetuada pelas desigualdades globais oriundas do colonialismo. No encarte do CD, ele escreve: “O terceiro mundo tem uma crescente população. A grande maioria se transforma em uma espécie de ‘androide’, quase sempre analfabeto e com escassa especialização para o trabalho (…) Esses androides são mais baratos que o robô operário fabricado em Alemanha e Japão. Mas revelam alguns ‘defeitos inatos’, como criar, pensar, dançar, sonhar; são defeitos muito ‘perigosos’ para o patrão primeiro mundo. Aos olhos deles, somos androides com defeito de fabricação (…) No umbral da história, o projeto de juntar fibras vegetais e criar a arte de tecer foi uma grande ousadia. Pensar sempre será”.

Essa temática é trabalhada por Tom Zé a partir de um novo referencial conceitual e uma nova metodologia: a plagicombinação. Para o artista, vivemos um esgotamento das combinações dos sete tons da escala diatônica que desencadeou uma “estética do plágio, uma estética do arrastão”: “Terminou a era do compositor, a era autoral, inaugurando-se a era do plagicombinador, processando-se uma entropia acelerada”, anota no encarte. Neste sentido, as músicas do álbum utilizam a sinfonia cotidiana e o lixo civilizado como matéria sonora: brinquedos, ferramentas de construção, apitos, orquestras de hertz, ruídos da rua etc, combinados ao “alfabeto sonoro de emoções” contido nas canções. “O aproveitamento desse alfabeto se dá em pequenas células, citações e plágios deslavados”.

O xote concretista “Xiquexique” mostra como Tom Zé se aproveita de vocabulários consolidados pelos gêneros musicais e adiciona doses de inquietação, curiosidade e dúvida. Cada faixa nos traz um dos nossos defeitos de programação, que são, na verdade, formas de driblar os destinos do capitalismo de dados e resistir na máquina: “Esteticar”, “Dançar”, “Curiosidade” e por aí vai. As músicas do disco são descritas como arrastão de um artista, estilo ou ideias. O samba minimalista eletrônico “ONU: Vendem-se Armas”, por exemplo, é creditado como um “arrastão de Martinho da Vila e do estilo pagode”. Já “Emerê” é um “arrastão dos cantos de trabalho de uma escravatura anterior, conforme o Brasil bucólico que as esquerdas queriam”. Em “Curiosidade”, Tom Zé nos provoca: “Quem é que tá botando dinamite na cabeça do século?” O verso acabou dando título ao ótimo documentário dirigido por Carla Regina Gallo Santos. Com Defeito de Fabricação foi eleito um dos dez melhores discos do ano por dois críticos de jazz e música pop do The New York Times.

Destaques: “Xiquexique”, “Emerê”, “Curiosidade”

Tropicália Lixo Lógico (2012)

Com frequência Tom Zé afirma que sempre fez um “jornalismo cantado” e Tropicália, Lixo Lógico parece ser o exemplo mais contundente dessa verve. Numa análise crítica permeada por certo teor autobiográfico, Tom Zé elabora uma interpretação muito original sobre o movimento que redefiniu a música brasileira nos anos 1960. Para ele, a Tropicália apresentou uma nova maneira de pensar e, diferente do que usualmente apontam os críticos, este pensamento não foi exatamente originado do modernismo de Oswald de Andrade, do rock internacional ou do teatro de Zé Celso — embora a influência destes seja inegável. Para o baiano de Irará, a questão é mais complexa e antiga: as culturas moura, provençal e oral pré-aristotélicas do interior nordestino (o tal “lixo lógico”) formaram a mentalidade dos jovens nordestinos, que, ao colidir com a terceira revolução industrial, “cria um gatilho disparador e provoca em Caetano e Gil o vazamento do lixo lógico, esse sim, fez a tropicália”, como defende no encarte do CD.

“Aquilo que os meninos do Nordeste jogavam fora quando travavam contato com Aristóteles escapulia do córtex, se alinhava no hipotálamo e ali adormecia. Tornava-se lixo, só que um lixo dotado de lógica própria – a lógica dos árabes, do Oriente, do interiorzão. Um lixo lógico”, afirmou em entrevista a Revista Bravo.

Essa visão tortuosa vai sendo esculpida em faixas como “Apocalipsom A (O Fim no Palco do Começo), que conta com a participação de Emicida e abre o álbum anunciando o nascimento do Tropicalismo: “Diabo e Deus numa sala/ Firmou-se o acordo solene/ De unir em casamento/ A fé e o conhecimento/ Casou-se com muita gala/ O saber de Aristóteles/ Com a cultura do mouro/ Para ter num só filhote/ O duplicado tesouro”.

Dizendo assim, pode parecer mais um TCC do que um disco de música. Mas Tom Zé combina e balanceia sua erudição a canções radiantes, de refrãos lapidados, como “Capitais e Tais” (uma deliciosa exaltação às cidades do Nordeste) e “Não Tenha Ódio no Verão” (que anos depois seria virada de ponta cabeça por uma interpretação genial de Juçara Marçal).  O disco conta ainda com participações de diversos nomes da MPB indie, como Mallu Magalhães, Rodrigo Amarante e Pélico. Em sua coluna no jornal O Globo, Caetano Veloso cravou: “Tropicália, Lixo Lógico é o melhor disco de Tom Zé desde que ele renasceu artisticamente, convidado a sair do esconderijo para onde nós o empurráramos nada menos do que por David Byrne, o mais elegante de todos os roqueiros”.

Destaques: “Apocalipsom A (O Fim no Palco do Começo)”, “Tropicalea Jacta Est”, “Não Tenha Ódio no Verão”

Loading

ARTISTA: Tom Zé