5pra1: Zeca Pagodinho

Com foco apenas nos álbuns de estúdio, selecionamos as pérolas de um gigante da música brasileira, que, ao mesmo tempo, atualiza seu som e mantém as raízes do Samba

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Fotos: José Doval / Agência O Globo (1986)

A série 5pra1 apresenta e destrincha cinco discos que servem como primeiro mergulho na obra de um artista.

 

Zeca Pagodinho ocupa uma posição ambígua na cultura brasileira. Ao mesmo tempo em que é um dos cantores mais populares do país, sua obra ainda é pouco analisada e discutida em toda sua grandeza. Em mais de 35 anos de carreira discográfica, Zeca não foi tema de nenhum documentário e apenas um livro foi publicado sobre ele: o breve (mas valioso) perfil biográfico escrito pelo jornalista Luiz Fernando Vianna — que, por sinal, tem poucas entrevistas com o próprio Zeca.

Assim como Jorge Aragão, Arlindo Cruz e Fundo de Quintal, o cantor e compositor do Irajá se firmou como um dos principais nomes da turma do Cacique de Ramos, movimentação de artistas que renovou a poética e a sonoridade do Samba com a introdução de instrumentos como banjo e tantã. Segundo recorda, sua primeira ida ao Cacique teria sido com Arlindo Cruz e Cláudio Camunguelo. Ele cantou “Amargura”, samba que seria gravado pelo Fundo de Quintal em 1981. Mas as primeiras aparições de Zeca impressionaram mesmo foi pela sua capacidade de improvisação no partido alto. “Eu olhei para ele: ih, esse garoto aí… Já chegou dizendo ao que estava se propondo. Vi logo que ia se tornar um grande nome”, contou Bira, presidente do Cacique e fundador do Fundo de Quintal.

“Era um grande versador, com uma forma de cantar só dele, um jeito e uns gestos de malandro. Tinha um brilho próprio”, reforçou Beth Carvalho. Zeca, que nunca imaginou ser um músico profissional, contou com o apoio da madrinha para chegar onde chegou. Em 1983, Beth o ouviu cantando “Camarão que Dorme a Onda Leva” e não titubeou: “Vou gravar esse samba e você vai gravar comigo!” Daí em diante, a vida foi levando.

Essa lista é uma panorâmica de uma obra muito, muito vasta. Sem discos ao vivo ou coletâneas, focamos apenas nos álbuns de estúdio, cobrindo diversas décadas, que mostram como Zeca Pagodinho atualizou o seu som sem tirar os pés do chão que o formou.

 

Zeca Pagodinho (1986)

Em 1985, após uma série de percalços, o produtor Milton Manhães finalmente conseguiu assinar um contrato com a editora Sigem (Sistema Globo de Edições Musicais, ao qual estavam vinculadas as gravadoras RGE e Som Livre) para lançar um álbum com cinco promissores talentos das rodas de pagode: Raça Brasileira, que reunia as vozes de Zeca Pagodinho, Jovelina Pérola Negra, Mauro Diniz, Elaine Machado e Pedrinho da Flor. O primeiro disco de Zeca foi um compilado com outros cantores.

Gravado nas madrugadas (único horário disponível), a RGE nunca montou um bom esquema para divulgar o LP. Ainda assim, as conexões de Manhães fizeram o disco chegar nas rádios, vender mais de 100 mil cópias e gerar uma série de convites para shows no Rio e em São Paulo. Em Raça Brasileira, Manhães apostou contra tudo e contra todos — e venceu. Cheio de moral, ele então convenceu Marcos Silva, diretor da RGE, a produzir o álbum solo do garoto Zeca. “Um cara como ele só surge de vinte em vinte anos, é um Noel Rosa”, argumentou.

Recheada de sucessos, a estreia solo de Zeca é definitivamente um dos maiores álbuns da música brasileira. Em “Quintal do Céu” e “Judia de Mim”, ele mostra sua personalidade em encontrar divisões rítmicas originais e imprevistas para os versos. “Quando Eu Cantar (Iaiá)” é uma crônica imaginativa e divertida sobre a desigualdade social e o pout-porri de partido alto com “Hei de Guardar Teu Nome” mostra o talento versador de Zeca. Ainda há espaço para o mais fino e apaixonado lirismo de “Cheiro de Saudade”, com Ana Clara (“Qual um jardim onde o beija-flor/ Sente o perfume das flores/ Entre sussurros de amor).

Mas as faixas mais emblemáticas são “SPC” (uma parceria com Arlindo Cruz baseada em história real) e “Coração em Desalinho”. Escrita por Ratinho e Monarco, baluarte da Velha Guarda da Portela, esta última música seria ofertada para Martinho da Vila. Ao ouvir o samba, Manhães o convenceu na hora a passá-lo para Zeca — vale lembrar que Mauro Diniz, amigo de Zeca, é filho de Monarco e já tinha pedido ao pai para ajudar o jovem cantor.

Destaques: “Coração em Desalinho”, “Cheiro de Saudade” e “Quintal do Céu”.

Patota de Cosme (1987)

Após o estrondo do ano anterior, Zeca preparou um álbum que trilhava o mesmo caminho, com os mesmos compositores parceiros. Sem mudanças, é um álbum de afirmação que brilha com um repertório de ouro. A faixa-título, com participação de Luis Carlos de Pilares, em homenagem a Cosme e Damião, é uma mostra vigorosa da espiritualidade das ruas que é típica da obra — e vida — de Zeca. Mas a capa alto astral carrega um fundo triste. “Todos esses meninos da capa morreram ou foram presos”, contou em entrevista a Veja.

A caneta de Monarco volta em “Feristes um Coração”, parceria com Ratinho que é uma candente reflexão sobre mágoas e ressentimentos amorosos. Neste disco também foi lançada “Tempo de Don Don”, que foi tema da novela da Rede Globo Mandala, e 16 anos depois, voltou a ser tema da novela Celebridade, desta vez na voz de Dudu Nobre. “Maneiras”, de autoria de Silvio da Silva, é um hino de voracidade e fome de vida, tornou-se uma das canções mais icônicas da carreira de Zeca em uma interpretação dolosa que transborda sabedoria da rua: “Na vida a coisa mais feia/ É gente que vive chorando de barriga cheia”.

Destaques: “Maneiras”, “Feristes um Coração” e “Patota de Cosme”.

Samba Pras Moças (1995)

Depois de Patota de Cosme, Zeca Pagodinho mudou de gravadora. Foi para a RCA, onde, entre 1988 e 1993, produziu seis álbuns, começando com Jeito Moleque. Apesar de sempre emplacar algum sucesso, as vendas não foram tão altas quanto esperadas e a relação com a empresa não era boa — há rumores de controle do processo criativo.

Por isso, quando migrou para a PolyGram em 1995 Zeca estava à procura de uma nova direção. E ela veio sob a batuta de Rildo Hora, responsável por produzir  os principais trabalhos de Beth Carvalho e Fundo de Quintal e todos os discos de Martinho da Vila, entre outros artistas de relevo. Deixando de lado os teclados e sintetizadores, Rildo investiu em uma abordagem sonora grandiloquente, quase sinfônica. A faixa-título, por exemplo, é inspirada na obra do tropicalista Rogério Duprat e conta com 17 músicos e orquestra de cordas, convergindo samba de roda baiano com flautas, violas, violinos, violoncelo e oboé.

“Essa música é muito importante na minha vida de arranjador. Devido ao sucesso, eu pude seguir aquele raciocínio, aquela mistura de erudito com popular”, contou o maestro em entrevista ao biógrafo Luiz Fernando Vianna. “Se a música culta de Villa-Lobos, Guerra Peixe e Radamés Gnattali bebe na fonte popular, nós que somos arranjadores da música popular, ao bebermos na fonte da música erudita, estamos trazendo de volta o que já foi mandado daqui pra lá. Eu sempre pensei assim, mas o trabalho com o Zeca é o ápice desse processo de trinta anos”.

Seu último disco lançado em vinil, Samba Pras Moças também marca a primeira parceria de Zeca com o jovem cavaquinista Dudu Nobre: “Eu Vou Botar Teu Nome na Macumba”. Zeca assinou 7 das 14 músicas do álbum, incluindo aí uma parceria com Martinho da Vila em “Se Eu Sorrir Tu Não Podes Chorar”. Nunca mais um disco seu teve tantas músicas de sua autoria. Zeca prefere dar espaço aos amigos compositores, para fazer o dinheiro do samba circular.

Destaques: “Samba Pras Moças”, “A Distância”, “Vou Botar Teu Nome na Macumba”.

Zeca Pagodinho (1998)

Embora não seja tão comentado, o “álbum branco” é um dos trabalhos mais apaixonantes na longa discografia de Zeca. Dedicado a Heitor dos Prazeres, o disco abre com dois dos maiores sucessos do músico: a levada de samba de roda de “Seu Balancê” e “Vai Vadiar”, outra canetada de ouro da dupla Monarco e Ratinho sobre o desprendimento e a liberdade. Um salve às crianças e aos orixás Ogum e Xangô, “Minha Fé” é um retrato radiante da fé e ancestralidade brasileira: “Nas mandingas que a gente não vê/ Mil coisas que a gente não crê/ Valei-me, meu pai, atotô, Obaluaê”.

Repleto de baladas sobre desilusão, o álbum também se destaca ao mostrar o lado mais romântico de Zeca Pagodinho em faixas como “Pra Você, Menina” e “Papel Principal”. Zeca ainda leva “Pra Afastar a Solidão”, de Dona Ivone Lara e Décio Carvalho, para patamares estratosféricos. E o dueto com Beth Carvalho em “Ainda É Tempo Pra Ser Feliz” logo entrou no rol dos sambas mais lindos já feitos, uma presença obrigatória em qualquer roda de pagode.

Destaques: “Ainda é Tempo Pra Ser Feliz”, “Seu Balancê” e “Pra Afastar a Solidão”.

Deixa a Vida Me Levar (2002)

Faltavam poucos ajustes para Zeca Pagodinho fechar o repertório do seu próximo disco. Parceiro de longa data, Serginho Meriti já havia garantido vaga com “O Daqui, O Dali, O de Lá”. Mas o amigo Claudinho Guimarães, sentado ao lado de Meriti, insistia: “Mostra aquela, Serginho. Mostra aquela”. Ele se deu por vencido e cantou a música que planejava mandar para o grupo Toque de Prima: “Eu já passei por quase tudo nessa vida/ Em matéria de guarida espero ainda a minha vez”… Ao final, Zeca levantou-se: “Porra, e você não me mostra essa?! Olha como que eu tô todo arrepiado! É essa, vai ser o maior sucesso!”.

Como todos sabem, “Deixa a Vida Me Levar” foi mesmo um dos maiores sucessos de Zeca, embalado pelo pentacampeonato da seleção brasileira de Ronaldo, Ronaldinho e Rivaldo, que adotaram a música como um hino informal do time. Mas o álbum ainda conta com outro arrasa-quarteirões: “Caviar”, um sátira debochada e cheia de humor — como só Zeca poderia cantar — sobre as desigualdades sociais brasileiras.

Deixa a Vida me Levar renovou a influência de Zeca Pagodinho e o firmou no início do novo milênio, mas não deixava de olhar para as tradições do samba. “Calangueei”, por exemplo, resgata o calango, dança ancestral que nutriu as origens do samba. E a homenagem à Velha Guarda da Portela volta à tona com “Amor, Não Me Maltrate”, outra composição de Monarco e Ratinho.

Destaques: “Deixa a Vida Me Levar”, “Caviar” e “Meu Modo de Ser”.

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