A CESRV o que é de CESRV

Com inspirações que vão da Vila Maria a Londres, César Augusto Pierre produziu três lançamentos de peso em 2020; conversamos com ele sobre escapar de “jargões musicais brasileiros”, samplear fita K7 e a tática para não ser engolido por São Paulo

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Quando a ansiedade bate, o que você faz? “Tem quem se sente ansioso e fica maluco, sai brigando, eu faço música – é a minha válvula de escape”, conta César Augusto Pierre. Talvez isso explique o 2020 tão produtivo do DJ e produtor musical paulistano. Logo em março, ele, ao lado de Febem e Fleezus, soltou um dos grandes discos nacionais do ano: Brime!. Em carreira solo, CESRV conta com projetos de cair o queixo e saborear no repeat: o EP Bela Vista, de abril, e o álbum Twenny Twenny, de julho.

Tentar remontar as referências de César é falar da loja de importação de instrumentos do seu pai, dos roles de skate e pichação na adolescência, das primeiras baladas – de uma vida atravessada por ecletismo, curiosidade e muita música. Dos seus 6 anos de idade até os atuais 34, a inventividade inquieta é o combustível que consolida uma abordagem experimental. “Eu tenho uma parte teórica rasa, gostaria de ser muito melhor em teorias do que sou, mas consigo executar quase tudo que quero fazer. Não fico pensando de maneira canônica, se eu ouvir um negócio e gostar, vou colocar na música e pronto”.

Nos anos 1970, a família de César morava em uma casa onde hoje é a Praça Dom Orione e a ligação muito particular com o bairro rendeu o título do EP lançado logo no início da pandemia no Brasil. Há uma série de coincidências que envolvem o vínculo geográfico e afetivo: por exemplo, o primeiro estúdio em que o artista trabalhou, o FLAP C4, que lhe serviu de escola sobre como gravar, produzir e mixar, fica na Bela Vista. Hoje, o estúdio do próprio CESRV, também tem sua base na Bela Vista. É uma dessas coisas curiosas demais para não serem notadas e que provavelmente tem a ver com a cristalização de uma sonoridade contemporânea, ousada e, ao mesmo tempo, leve.

A princípio, César, por influência do pai, foi criado a base de The Beatles e Rolling Stones, até que Marvin Gaye, o som da Motown e o os grooves do Soul entraram em seus fones, abrindo caminho também para o Rap. “Eu sempre gostei muito de Rap também. Foi automático: quando eu ouvi “Diário de um Detento” pela primeira vez na MTV eu tinha 10 anos e foi tipo caralho, o que é isso, isso é louco demais. Então, eu sempre tive uma educação que estava no Rock, tinha um pé no Hardcore, mas sempre estava ouvindo Soul e Rap”, conta.

A loja do pai foi ponto estratégico para que ele se encantasse com a efervescência musical brasileira. Principalmente por conta de encontros como esse: aos 11 anos de idade, César conheceu Sérgio Dias e passou uma tarde tocando guitarra no escritório enquanto ouvia conversas entre seu pai e o guitarrista dos Mutantes. Ainda durante a juventude, veio a mistura entre grafite, música eletrônica e Rap. E, depois, veio skate + Soul + Rap. Gostar de música na era pré-streaming significava desbravar o campo em busca de informações valiosas: ir a festas e colar na galera do som, fazer amizades e angariar mentores. “Você era adotado, alguém chamava ‘Vem aqui em casa ouvir disco’. Você conhecia duas músicas de Drum and Bass e achava que gostava do estilo, o cara te mostrava 50 discos”, relembra.

Para acompanhar a cena Rap, CESRV explorava São Paulo. “Eu colava nas quebradas e ficava quietinho vendo os caras rimarem, aprendendo. Vários que hoje são MCs e são playboys… Isso não existia. O Rap era um negócio muito sério, eu sou um cara branco, então eu não podia fazer Rap na época”, conta. As expedições pela selva de pedra e a primeira vez em que entrou em uma balada – com 17 anos – e viu o mágico DJ Marky nos toca-discos são memórias cravadas em seu desenvolvimento musical e pessoal. Ele descreve esses momentos como lembra (raramente) de seus sonhos: sem muitas ações objetivas, mas com a sensação de existir em algum lugar novo, como “meu deus, que loucura, que lugar incrível” ou “que absurdo, que lugar estranho”.

Para ele, a habilidade de combinar gêneros musicais aparece forma orgânica, um sintoma do amadurecimento de sua produção. César é tão transparente e apaixonado por música que ouvir ele falar faz ter vontade de passar as próximas 48h pesquisando sobre tudo que está acontecendo na cena mundial. Hoje, o mais importante para ele é ser autêntico, desviar-se do próprio ego e pegar mais leve. E mais: tentar não ser engolido por São Paulo, pelo mainstream – e ser simplesmente CESRV, sem muito prefácio.

Eu olho para a sua discografia e tenho a impressão de que você começou a se debruçar mais na música brasileira esse ano, com Brime! e Bela Vista. Faz sentido para você?

Eu sempre gostei muito de música brasileira, inclusive um dos meus primeiros trabalhos como produtor foi mais ou menos pegar samples nacionais e colocar beats em cima, fazendo um negócio meio Trip Hop, lá em 2010, 2012. Eu sou um pouco contra esse lance do óbvio: o brasileiro precisa pegar os jargões brasileiros e colocar em uma música para um gringo olhar e falar Uau, isso é Brazilian Bass. Isso me incomoda um pouco. Acho que por anos eu tentei evitar fazer essa junção de estilos, até porque eu não me sentia confortável com isso. No EP Bela Vista, apesar de ter uma instrumentação e uma bateria de Footwork, quis usar samples brasileiros para contar as histórias daqui. Eu estava vivendo aquelas coisas e fazendo música baseado no que eu estava vendo à minha volta, então o que eu quis dizer com aquele fisco tem muito mais a ver com a resultado final do que com a linguagem dele. Acho que principalmente pelo Footwork não ser um estilo tão popular, não se tornou óbvio.

Não tenho intenção nenhuma de ficar brigando com o mainstream e fazer o que todo mundo está fazendo. Eu quero fazer o que ninguém está fazendo e levar o bagulho para outro lado. Então, colocar música brasileira foi uma questão de conseguir fazer isso sem ser apelativo — e acho que o Brime! foi muito isso também. Me deu essa coragem de fazer essa mistura sem soar clichê.

Como foi o processo de Brime!?

O disco é realmente eu, Febem e o Fleezus sendo amigos. Aquilo é nós, o que a gente é como amigo. Quando a gente fez o Running (2019), do Febem, a gente sabia que haveria em paralelo alguma ação com a Adidas sobre o álbum, não sabíamos que essa ação seria junto com a  Sigilo, que é a marca do Rodrigo TX. No fim, a Sigilo e a Ceia, em parceria com a Adidas, levaram eu, Febem, Fleezus e Rodrigo TX para dar um rolê em Londres e conhecer as pessoas que fazem música lá. A ação era essa: conhecer as rádios, dar um rolê em Londres, música alternativa, Rap de Londres – a gente não é tão vidrado em Trap americano.

Quando a gente ficou sabendo disso, a gente falou: vamos fazer umas músicas para chegar em Londres e mostrar que a gente tem influência do som deles dentro da nossa realidade. O Febem é da Vila Maria, o Fleezus é do Pico do Jaraguá. A cultura do Funk, futebol, as referências de viela, rua, boteco é o que eles vivem todo dia. Então, fazemos shows e vamos para a adega na Vila Maria ficar bebendo com os amigos do Febem, ou a gente fica no boteco do lado do estúdio tomando uma, vendo o jogo. Os gringos gostam de futebol, que é nosso, vamos colocar. Os gringos gostam do Funk, que está na esquina todo dia, vamos colocar. A gente gosta do Grime, do Rap, vamos colocar. A gente gosta da música eletrônica, os gringos também. A gente começou a achar áreas de intersecção entre a nossa cultura e a cultura londrina.

Como o isolamento social tem te afetado?

O começo da quarentena foi muito chocante, porque eu sou o tipo de pessoa que não para em casa, nunca fiquei em casa na minha vida. Quando pequeno, brincava na rua; adolescente, pichava muro; mais velho, ficava na balada e trabalhando – nunca fui caseiro. A gente tinha acabado de lançar o Brime!, nosso plano era sair em turnê, foi um balde de água fria ficar em casa por 3 meses depois disso. Então, eu fiquei em casa fazendo som durante meses, peguei minha coleção de fita, vinil e fiquei sampleando um monte de coisa, fazendo música, produzindo para outros artistas. Em um certo momento, foi frustrante, parecia que nada ia voltar ao normal de jeito nenhum, mas hoje eu mixei o disco do Cesão, já produzi 2 músicas do Febem, estamos fazendo o disco do Fleezus. Os dois primeiros meses foram mais chocantes, hoje em dia a situação está bem triste, bem foda, mas há luz no fim do túnel. A minha ansiedade eu não sinto sofrendo, eu fico fazendo música. O mundo está uma merda? Beleza, vou me trancar no estúdio e ficar fazendo um som.

E, cara, no começo da quarentena eu herdei uma coleção de fita cassete de um tio de um amigo que estava jogada. É uma coleção de fitas da Sade, Soul, Rap anos 80 – vou te mostrar. Olha, 6 fitas que eu peguei aleatoriamente: Stevie Wonder, uma clássica, trilha sonora do Jungle Fever (1991), Done by the Forces of Nature (1989) do Jungle Brothers, A Tribe Called Quest – People’s Instinctive Travels and the Paths of Rhythm (1990) –, Sade rainha — Diamond Life (1984) — , Luther Vandross – The Night I Fell in Love (1985) –, uma coletânea aqui, as melhores da Patrice Rushen. Fiquei o começo da minha quarentena em casa sampleando fita cassete. Tem a discografia do Earth, Wind and Fire, sabe? Tem tudo, muito Rap, muita coisa. Fiquei trancado fazendo som.

"Sempre gostei muito de música brasileira, inclusive um dos meus primeiros trabalhos como produtor foi mais ou menos pegar samples nacionais e colocar beats em cima, fazendo um negócio meio Trip Hop, lá em 2010, 2012. Eu sou um pouco contra esse lance do óbvio: o brasileiro precisa pegar os jargões brasileiros e colocar em uma música para um gringo olhar e falar Uau, isso é Brazilian Bass. Isso me incomoda um pouco. Acho que por anos eu tentei evitar fazer essa junção de estilos, até porque eu não me sentia confortável com isso."
"Não tenho intenção nenhuma de ficar brigando com o mainstream e fazer o que todo mundo está fazendo. Eu quero fazer o que ninguém está fazendo e levar o bagulho para outro lado. Então, colocar música brasileira foi uma questão de conseguir fazer isso sem ser apelativo e acho que o Brime! foi muito isso também. Me deu essa coragem de fazer essa mistura sem soar clichê."
"Existem muitas músicas que eu gostaria de ter feito. Provavelmente alguma do Stevie Wonder, das clássicas, ou até da Sade. Uma das coisas que eu gostaria é ser um cara muito bom de harmonia, eu piro muito nas produções da Motown e Jazz porque harmonicamente é muito rico. Então, apesar de eu gostar de batidas de Trap, eu gosto muito de Jobim, coisas mais orquestradas, sabe? Se eu fosse escolher uma, seria algum clássico. Ah, 'Forget Me Nots', da Patrice Rushen."

E o Twenny Twenny, como ele vem?

Eu estava pensando no Bela Vista esteticamente há um tempo. Nesse processo, fui fazendo outras músicas que flertavam com a ideia, mas não entraram no álbum, não cabia. Quando a gente começou a trabalhar no lançamento do Bela Vista, lançamos na pandemia – um pouco frustrante, o Brime! tinha acabado de sair, a gente queria estar em turnê, nada acontecendo, tudo parado, as pessoas trancadas há tempos. Começou a rolar Bandcamp Friday, eu peguei as músicas do Twenny Twenny, subi no Bandcamp pra fazer um dinheiro. O Jon [merch] ouviu as músicas e falou ‘isso é legal, vamos lançar’. Derrubei do Bandcamp e comecei a tratar como um lançamento mesmo. Fiz uma master decente, levei pro estúdio, finalizei ele.

No fim das coisas, ele é um pouco mais do que eu gostaria de fazer musicalmente, porque flerta mais com Jungle, Drum and Bass – acho que é um projeto em que eu estava me divertindo com as músicas. Não que o Bela Vista não tenha sido assim, mas no Bela Vista eu encostei nos samples que eu nunca encostaria. Foi um momento em que eu decidi: está na hora de samplear tudo que eu não samplearia, porque eu sei que a nova geração já nem pira tanto nesses samples e, no meu caso, é o meu Donuts (2006) – o Dilla estava na cama do hospital e pegou os samples em que ele nunca encostou porque era apelação. Eu me senti pronto para fazer isso. Twenny Twenny tem mais do que eu gosto de tocar em clubs, na pista, som mais direcionado para o que eu gosto de fazer nos meus sets. Uma das músicas, a “SAFE FAM” tocou 5 vezes na BBC essa semana e é isso, quis mostrar que a gente é outra coisa também. Está na hora da gente começar a olhar para outros estilos e fazer outras coisas. O que eu quero ver é os produtores ousando, porque eles são muito bons. Aqui no Brasil a molecada é muito fodida. A gente tem produtores muito fora da curva, quero ver eles fazendo coisas novas.

Quero saber qual é a sua última obsessão, a coisa com que você está obcecado agora.

Eu sempre fui um cara que fumei muito, bebi muito, gosto de festa, discoteco há 10 anos, então nessa pandemia eu dei uma cortada nos meus hábitos ruins. Muito excesso, bebendo demais todo dia. Dei uma cortada em tudo, voltei a ser o que eu era antes de estar trancado dentro da música. Estou andando de skate quase todo dia, parei de beber por uns meses, não estou fumando cigarro há meses. Acho que minha obsessão no momento é não ser a pessoa obsessiva que eu estava sendo nos últimos anos. E eu tenho me sentido muito melhor fisicamente, mentalmente, muito mais calmo. Dormindo melhor. Eu tava bebendo 5 vezes por semana. Voltei a beber e estou bebendo uma vez por semana.

Estou fazendo bastante som, estudando pra caralho, novas coisas. Acho que minha obsessão no momento se tornou estudar e me aprofundar. Minha vida é assim: de tempos em tempos eu paro e falo mano, que porra eu to fazendo com a minha vida? Vamos fazer coisas boas, escolhas saudáveis daqui para frente porque São Paulo é muito cabuloso. A vida noturna em São Paulo é um pouco a mais – bem mais do que o necessário para diversão. Não tenho mais 20 anos, não posso ficar moscando com questões de saúde também. Não deixar São Paulo me engolir de novo.

Sabe quando você vê um filme e fica tipo “porra, queria ter feito esse filme”. Me fala uma música que faz você se sentir assim.

Existem muitas músicas que eu gostaria de ter feito. Provavelmente alguma do Stevie Wonder, das clássicas, ou até da Sade. Uma das coisas que eu gostaria é ser um cara muito bom de harmonia, eu piro muito nas produções da Motown e Jazz porque harmonicamente é muito rico. Então, apesar de eu gostar de batidas de Trap, eu gosto muito de Jobim, coisas mais orquestradas, sabe? Se eu fosse escolher uma, seria algum clássico. Ah, “Forget Me Nots”, da Patrice Rushen.

Me fala um álbum que mudou a sua visão sobre música. Se você não tivesse ouvido esse álbum, sua música não seria sua música.

Double Cup, do DJ Rashad, com certeza. Na verdade, o Rollin que é o EP dele de 2013. Eu ouvi e falei que porra é essa? Nunca tinha ouvido nada parecido: soava como Techno, mas tinha groove de Rap e era sampleado igual Boom Bap, tinha som de MPC. Primeiras reações: não sei o que é isso, não entendi. Me puxou para estudar o Ghettotech, o que veio depois do House e como a música eletrônica pode ser mais agressiva do que o Rap, por exemplo. Foi mais aí que minha cabeça abriu.

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