A ciranda democrática de Lia de Itamaracá

As belezas do mar inspiram a cirandeira pernambucana a cantar, compor e girar e, ao som do ritmo ao qual se dedica há mais de 50 anos, ela convida todos para a dança

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Fotos: Ravaneli Mesquita

Itamaracá é uma palavra tupi-guarani que significa “pedra que canta”. Na ilha homônima, situada nas costas recifenses, as pedras cantam quando sovadas pelo mar, e Lia de Itamaracá canta quando as mesmas ondas alcançam seus pés. É nas praias de sua meninez, observando as intempéries e belezas do oceano, que a cirandeira de 76 anos encontra inspiração para cantar, compor e girar.

“Vou para a praia, sento na beirada. Escrevo minhas músicas. A onda vem e apaga um verso, vou sendo de novo. A onda vem e apaga, eu torno a escrever. Quando a onda vai, a música está pronta”, divide Lia, em entrevista por telefone. Sua voz rascante, um patrimônio vivo do estado pernambucano.

Os flertes entre a ciranda – ritmo popular ao qual Lia de Itamaracá dedicou mais de 50 anos de carreira – e o mar também estão expressos no jeito de dançar da brincadeira, cuja única regra inquebrantável para a cirandeira é a de começar a dançar sempre pelo pé esquerdo. “Até os passos da ciranda acompanham a onda do mar. Você brinca com o pé esquerdo. A onda vai e a onda vem, a onda vai, a onda vem, no ritmo da ciranda de quem quer dançar”.

As praias, espaços tão democráticos quanto a ciranda, banham as 11 faixas do álbum Ciranda sem Fim, terceiro de Lia de Itamaracá, lançado em novembro do ano passado. As músicas do repertório, presentes de compositores como Ava Rocha, Chico César e Alessandra Leão, contam a história desta peixe-mulher, porém falam também de como Lia se apropria dos aprendizados populares e democráticos da ciranda para expandir seus horizontes musicais sem abandonar suas raízes.

Ciranda, o ritmo que Lia de Itamacará encontrou

Filha de uma família de 18 irmãos, a caiçara Lia de Itamaracá foi a única que se interessou por música. As panturrilhas rijas de tanto dançar, andarilhas de praias fronteiriças de sua ilha natal e da capital Recife, encontraram nas rodas de ciranda um lugar definitivo de expressão pessoal e musical.

“Eu que encontro a ciranda, não ela que me encontra. Me interessei pela música com 12 anos de idade, com 19 para 20 assumo a responsabilidade de me apresentar. Tinha Lia interessada em ciranda, mas não tinha ciranda em Itamaracá. Ia para Recife, para o pátio de São Pedro [espaço público da capital]”, conta a cirandeira.  Desde o primeiro EP, gravado em 1977, e durante toda a carreira, Lia de Itamaracá carimba nos versos e passos sua relação amorosa com a ciranda, ritmo que, embora popular, foi pouco estudado por folcloristas como Mário de Andrade e Câmara Cascudo.

“A ciranda foi categorizada como ‘uma expressão popular’ – uma genuína dança do povo’, praticada por trabalhadores rurais, pescadores de mangue e de mar, operários de construção”, explica a historiadora Déborah Callender, no artigo Histórias da Ciranda: Silêncios e possibilidades. “O ambiente em que se configurava a dança de roda em seus começos restringia-se aos locais populares como as beiras de praia e as pontas de rua”.

Como toda tradição popular, a ciranda foi sujeita a deslocamentos durante o avanço do tempo. Ainda que seu primórdio seja em espaços públicos e terreiros, na década de 1970 foi encerrada dentro de salões e bailes que descobriram o ritmo. Coube a Lia de Itamaracá e outros mestres de cultura, cujas trajetórias pessoais se entrelaçam com a própria história do ritmo, mantê-la no ouvido e na boca do povo, e presente em rodas públicas e acessíveis.

“O bom da ciranda é que ela não tem preconceito. Dança branco, dança preto, dança pobre, dança rico, pequenos e adultos. Só não dança quem não quer, porque a ciranda, ela, em si, começa desde criança e vai para todo mundo”, arremata Lia.

Ciranda sem Fim e a expansão das possibilidades dos ritmos populares

Ciranda sem Fim é uma celebração da ciranda, mas também dos ritos democráticos que se aprendem nela. O disco é um suflê de outros ritmos populares, como marchinhas de carnaval, bregas e cocos, temperados pelo toque eletrônico de DJ Dolores, representante do também popular movimento manguebeat. “Neste álbum tem outros jeitos de fazer música, porque têm só três cirandas, o resto não é. O resto têm músicas como “Relógio”, “Apenas um trago / Bom Dia Meu Amor”, música de Alessandra Leão, Chico César, tudo com embasamento eletrônico. Eu quis mudar um pouco, ver se eu podia ir mais além”.

“O bom da ciranda é que ela não tem preconceito. Dança branco, dança preto, dança pobre, dança rico, pequenos e adultos. Só não dança quem não quer, porque a ciranda começa desde criança e vai para todo mundo”

As músicas são um convite à dança e também à ocupação de espaços públicos – a praia, a praça, a rua – por manifestações culturais diversas. Mas Lia de Itamaracá está, desde o começo da pandemia, em casa. Com muita saudade de sair para cirandar, mas firme quanto a cumprir a quarentena, ela já realizou duas lives desde o início do isolamento, e acredita que logo menos estará de novo nas ruas. “A gente que é mestre, a gente sente muita falta, a vontade de chegar no meio do povo, dançar com eles como era. Tava com muito show para fazer no Rio, São Paulo, com uma agenda legal. O vírus não deixou. Eu tenho que baixar o facho, cumprir as decisões. Com fé em deus logo menos a gente tá na praia, comendo camarão e dançando”.

*Fotos gentilmente cedidas pelo estilista Júlio César NYC. As roupas que Lia veste são de sua criação e as fotografias são de Ravaneli Mesquita. 

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