A comunidade de Ibrahem Hasan

“Tentar, cometer erros, crescer com meus erros e me divertir no processo”; o multiartista de Chicago fala sobre fotografia, música, colagens, representar os não-representados e as conexões entre tudo isso

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Fotos: Love Is Why (2021)/Reprodução

Eu tava meio mal na tarde em que liguei para o Ibrahem Hasan. Alguns questionamentos sobre meu próprio trabalho com fotografia e uma negociação complicada – que acabou dando errado, como apostar todas suas economias do mês no jogo do bicho, porque teve até um sonho esquisito com um cachorro de três cabeças – anuviavam a minha mente e, justamente naquela tarde, eu precisava falar com um amigo. Mas precisava também trabalhar e efetivamente fazer a (minha primeira) entrevista com ele. Acabei conseguindo as duas coisas.

São muitos Ibrahem Hasan: nascido e criado na zona sul de Chicago, ele passou grande parte da carreira como diretor criativo sênior da Nike e, há cerca de cinco anos, tem a fotografia como principal veia criativa. Desde jovem produz música e atualmente é 50% do duo de Hip Hop experimental Bless The Mad. Em fevereiro deste ano, Ibrahem lançou seu fotolivro de estreia: Love is Why, que teve venda esgotada e toda a arrecadação direcionada à compra de laptops para jovens estudantes da Brooklyn Democracy Academy. Pouco tempo depois do lançamento do fotolivro, Ibrahem foi convidado para fazer um set na NTS Radio, mas decidiu ir além e traduziu as imagens do trabalho para uma áudio-colagem gravada em Chicago, acompanhada de diversos músicos da cidade.

Além das fotos e dos sons, eu não conhecia nada do Ibrahem. No entanto, tive essa estranha sensação de que já nos conhecíamos assim que a ligação do Zoom começou. Ele inclusive perguntou como eu estava antes que eu pudesse fazê-lo. Apesar de nascido em Chicago, Ibrahem tem origem palestina e, já nos primeiros minutos, estávamos conversando sobre os acontecimentos recentes no país, a força da música setentista nos Estados Unidos e sua força motriz na luta racial, além do próximo fotolivro do artista, que poderá se chamar Veins of Stone – e será sobre a Palestina. A conversa também passou por suas influências, os mentores da juventude, a magia única de Chicago e tudo no que os múltiplos talentos de Ibrahem Hasan resvalam.

 

Quem é Ibrahem Hasan hoje?

Uffff… É uma pergunta muito difícil de responder. Hoje, eu vivo com muita empatia, com muita compaixão. Recentemente, comecei a descobrir o que é meu ethos e é assim que eu vivo minha vida. O trabalho que eu quero fazer é basicamente muito simples: representar os não-representados. Então, quando eu penso sobre quem eu sou hoje, estou aqui para servir a minha comunidade. Estou aqui para contar nossas histórias. Estou aqui para me assegurar de que a verdade exista em todas suas formas. Estou interessado em conhecer as pessoas, vê-las, entender o que está acontecendo com elas… Então, quem eu sou hoje? Curioso. Quero muito continuar a aprender e sou muito, muito curioso. Essa é a minha resposta.

Somos naturalmente curiosos quando crianças, mas às vezes isso se perde durante a vida. Como a curiosidade se desenvolveu em você?

Sempre esteve aqui. Até hoje eu tenho uma abordagem de menino pra tudo. Quero aprender, tentar, cometer erros, crescer com meus erros e me divertir no processo.

Eu não sei muito dos aspectos técnicos de uma câmera ou o que é o “certo” e “errado”, só começo a tirar fotos e se me parece certo, eu continuo. Eu vou apalpando a câmera (risos) e ser inocente no processo é realmente bom. Eu gosto que tem características nas minhas fotos que são essencialmente eu. Essa é a coisa que acho mais difícil no processo, seja de fazer música, fotografia… Como você faz algo que transmite sua personalidade e, honestamente, você tem que deixar fluir no processo. Quase como tirar o seu ego, jogar ele fora, se manter muito curioso e aberto e fazer coisas inocentemente. Mesmo que às vezes você faça algo e sinta “puts, essa é a pior coisa que já fiz”, você aprende com isso e fica mais próximo do que você quer fazer.

Você nasceu em Chicago, certo? O que tem de diferente na água da cidade, o que faz dela tão especial?

É uma interseção de vários mundos diferentes e também uma cidade que não tem uma identidade e está tentando descobri-la através do processo. Pensa comigo… Nova York tem uma cena Punk e uma cena de Hip Hop, as pessoas sabem o que é o Rap de Nova York e sabem que é de lá. Los Angeles tem um “feeling”, rap da Costa Oeste tem um “feeling”. Nós em Chicago ouvíamos e pensávamos: o que nós somos? Chicago é tipo “a segunda cidade”, então sempre teve esse sentimento de bater no peito tipo “olha pra mim”. Eu cresci na zona sul de Chicago que é principalmente negra, mexicana e polonesa. Eu ia pra Maxwell Street, que era basicamente uma concentração de negros do sul que migraram pro norte para trabalhar e trouxeram muito da hospitalidade do sul dos Estados Unidos. É uma piada mas também é verdade: em Chicago, a gente vai tomar conta de você. Você encosta, cola num churrasco, geral vai te receber, mas se você vacila a gente é sem massagem. Se você faz algo estúpido, vai levar um soco na boca. Somos gentis, mas não tente tirar vantagem da gente.

Se você olhar para um artista de Chicago, eles falam do coração. A comunidade é muito, muito importante pra gente. Música, arte, é muito baseada em comunidade.

Seu livro é uma homenagem aos mentores que você encontrou na Maxwell St. e também a Malcolm X. O quão importante foram essas pessoas na sua trajetória, especialmente musical?

[Para responder esta pergunta, Ibrahem leu na íntegra o prefácio de Love is Why]

Querido Malcolm X, Djuan Smith, Louis Books, Record Sam e Taco

Esses são meus agradecimentos.

Obrigado por estarem lá por mim, pelos seus ensinamentos, obrigado por ouvirem.

Eu nasci muçulmano em um tempo no qual a fé era algo que você praticava mas não difundia. Isso mudou quando eu descobri Malcolm X. Ele foi um homem que abdicou de seu ego e se submeteu ao Islã com orgulho. Eu procurei por essa força — Eu parei de responder por Abe e passei a abraçar meu nome de batismo, Ibrahem. Eu me encontrei no legado dele. Eu escolho viver minha vida nos passos do profeta Muḥammad (que a paz esteja com ele) e lutar contra o sistema, nos passos de Malcolm.

Djuan Smith — meu irmão muçulmano mais velho. Ele me colocou no jogo — música, produção, equipamento (MPC-3000, 950, SP1200, rhodes) Hip Hop e discos. Ele viu algo em mim quando nem se quer eu via e sempre me protegeu. Louis Books — o vendedor de livros. Ele me apresentou Malcolm X e me deu sua autobiografia, que mudou minha vida. Record Sam — o colecionador/vendedor de discos, que aparecia todo domingo com caixas e caixas de discos e foi o catalisador do meu conhecimento musical. Minha coleção está no nome dele. Taco — uma presença frequente na Maxwell Street. Ele só aparecia com muita alma, amor e vida.

Todos esses homens negros impactaram minha vida quando muito jovem. Eu os conheci na Maxwell Street em um mercado aberto na zona sul da cidade, berço do Blues de Chicago. É onde aprendi sobre Fred Hampton, o Estudo de Tuskegee, Sun Ra, as revoltas de Chicago, Os Panteras Negras… Nossas conversas iam de Basquiat a violência policial, Kahlil Gibran para Coltrane, segregação até OGC. Eles me ensinaram o que a escola não podia.

Esse livro foi feito para eles viverem para sempre. É a visualização de seus ensinamentos e das conversas que tive com eles crescendo na zona sul de Chicago. Inclui minha fotografia e arte ao lado de contribuições de fotógrafos, artistas e escritores que eu respeito e amo, assim como coleções de imagens de domínio público. Distribuído por vozes negras. Não sabemos como a história vai acontecer ou que narrativas serão escritas. Eu quero que essas páginas ressoem em futuras gerações que as encontrem quando estiverem questionando qual história está sendo contada.

Amor é a razão de fazermos o que a gente faz, a razão pela qual lutamos todo dia, “Love is Why”.

“Como você faz algo que transmite sua personalidade, tem que deixar fluir no processo. Quase como tirar o seu ego, jogar ele fora, se manter muito curioso e aberto e fazer coisas inocentemente. Mesmo que às vezes você faça algo e sinta ‘puts, essa é a pior coisa que já fiz’, você aprende com isso e fica mais próximo do que você quer fazer”

Você pode me descrever como era um dia típico na Maxwell Street?

Eu trampava como mecânico no sábado, de 7h às 18h. Depois do trampo eu ia pra casa dormir, acordava por volta de 23h e ia dar um rolé, seja numa festa ou com amigos, e aí depois eu ia direto pra Maxwell Street, por volta de quatro horas da manhã. Lá eu me encontrava com esses mentores, que estavam lá porque vendiam coisas ou negociavam. Era meio que uma família que se interessava por comprar discos. A gente ia bem cedo pra chegar antes de todo mundo. Colávamos nesse lugar chamado White Palace Grill, é um restaurante. Conversávamos sobre vida, todo tipo de doideira – era um lugar meio maluco, que sei lá, o Don King aparecia do nada. Não é um lugar renomado, famoso, é um restaurante meio mocado que a galera vai quando sai da boate. E rolava umas paradas tipo “o que o Michael Jordan tá fazendo aqui?”, e ninguém prestava muito atenção nessas celebridades, porque é um lugar suave. Depois que a gente terminava de tomar café, íamos comprar discos. O interessante é: no período que eu estive com essas pessoas, nunca as vi como meus mentores. Mas quando você passa tanto tempo assim — eu frequentei lá dos meus 16 anos até os 32 quase — eu passei muito tempo indo para esse lugar todo domingo, religiosamente. A influência deles [dos mentores] bateu ao longo do tempo.

Esses caras passaram por várias paradas, não eram pessoas privilegiadas nem nada, eram trabalhadores, operários mesmo. Rolavam muitas conversas densas, que eu precisava ouvir para entender mais sobre como é a experiência negra. Nós palestinos temos nossa própria luta. Então eu me conectei muito com essa comunidade porque foi onde eu achei um lar. Eu encontrei pessoas que estavam passando por coisas que eu estava passando, e essas pessoas me receberam, me confortaram. Às vezes é meio ingênuo dizer “eu sei como você se sente”, porque eu não sei – mas eu sei como é ser palestino lidando com desocupação e todo esse regime. Então eu sempre tive essa forte empatia por qualquer um passando por injustiças e isso se conecta com o meu ethos — não é uma questão só de cor, é uma questão de injustiças — mas quando olhamos para os Estados Unidos de maneira focada, é uma questão negra. E eu não ligo pra o que ninguém diz, não tá melhor hoje em dia, está só reembalada.

Como foi o processo de composição do show pra NTS Radio?

O livro é praticamente uma colagem. É um pouco de feeling e tonalidade, não é uma história linear. Meu amigo Koji ama o livro e ele me queria no show. Ele perguntou se eu queria fazer uma mixtape, eu já tinha feito duas — uma se chama “Poder” e a outra “Paz” e já são longas pra caramba — não tinha necessidade de mais. Eu estava em Chicago gravando e pensei: “Quer saber? Eu vou fazer uma interpretação musical do livro”.

Tem algumas palavras que vêm e vão, outras coisas que são fluxo de pensamento e conversas e em alguns momentos você mal pode ouvir a palavra, é só ruído de fundo. Com a música, eu queria que ela fosse bem abrupta, sinfônica, com orquestração e aí de repente vira um beat de hip-hop. Eu queria que rolasse o mesmo sentimento de quando você olha pro livro, isso era extremamente importante pra mim. Foi uma experiência muito divertida, exceto um músico, todos os outros eram negros ou pessoas de cor. Eu moro no Brooklyn, mas foi muito legal poder fazer isso em Chicago e com músicos da cidade, me fez me sentir conectado.

Você acha que existe alguma equação entre Poder e Paz que resulta em amor?

Sempre temos que vir em paz, e isso é na perspectiva de Malcolm e até mesmo do Islã, mas você tá ligado… Também temos que cuidar de nossas famílias e comunidades e se nosso povo tá passando por injustiças, nós temos que nos posicionar. É onde o poder entra, certo? Nós vamos compartilhar nossas vozes, compartilhar nossas injustiças, mas vamos fazer de uma maneira que seja muito pacífica e nos certificar de que o mundo saiba e entenda. Se agirmos assim, podemos ter uma comunidade mais amorosa.

Na playlist “Poder”, é basicamente rap clássico dos anos noventa. O que você curte nos dias de hoje?

O disco novo do Tyler é insanamente bom. Saba é foda. A nova geração é muito expressiva e talentosa. Aquela mixtape é primariamente rap dos anos 90, alguns sons você conhece e outros não, mas eu não queria ser muito misterioso. Minha coleção de discos é enorme e eu poderia ter colocado umas bolachinhas que ninguém ouviu e blá blá blá, mas eu acho que isso vira elitista e meio pretensioso, às vezes. Como colecionador de discos, a gente às vezes quer se mostrar, né? “Ah, eu tenho um disco que você nunca ouviu e pá…” e é maneiro, eu amo essas mixtapes porque eu já ouvi de tudo. Mas quando você faz isso, você não tá fazendo isso pra geral, você tá fazendo pra você e seus 12 parceiros que conhecem de tudo.

“Chicago é uma interseção de vários mundos diferentes e também uma cidade que não tem uma identidade e está tentando descobri-la através do processo”

Em “Ancestors” (do Bless The Mad), vocês mandam vários salves para produtores de rap, especialmente os caseiros. Qual a importância dessa ideia de lar para a criação do som de vocês?

Para nós, sempre fomos bastante Lo-Fi. Gravamos em fita e vamos pro computador só para adicionar uns sprinkles, mas basicamente é tudo feito em fita. Tem sido um pouco pesado achar um som característico nosso, porque nossas coisas soam meio zuadas, mas também boas ao mesmo tempo. Estar em um home studio tem a ver principalmente com dinheiro, não temos grana pra ficar no estúdio o dia inteiro fazendo sessões com diversos músicos, então a gente sempre dá um jeito. Houve momentos que a gente queria criar um som e pensávamos: e se a gente colocar um som de água? Um saco de açúcar? Num estúdio você não tem esse tempo e essa flexibilidade. Nós só estamos fazendo nosso melhor com o que nós temos.

A presença de Sun Ra também tá em todo seu trampo. Você pode me contar mais sobre sua relação com o trabalho dele?

Nós não queremos fazer um outro disco do Sun Ra, o trabalho dele já tá aí e ele fez coisas incríveis, mas o que ele sempre priorizou foi expandir o som. Criar um novo som. Se conectar com o universo através do som. E obviamente, esse cara não é desse planeta. Ele nos visitou por um tempinho e depois foi embora pra talvez um lugar mais bonito, quando ele começou a ver como a humanidade tava zuada aqui (risos).

Eu comprei meu primeiro disco do Sun Ra na Maxwell Street, e eu fiquei tipo “que porra é essa?”. Eu não gostei, fiquei confuso – mas volta pro que estávamos falando antes: minha curiosidade me disse pra ficar com aquele disco, e aí fui comprando mais e mais. Comecei a perceber sua genialidade e quão livre era seu som. Seus erros não eram erros, eram marcas de humanidade na música – e isso é o que nos conecta a música e arte. Para mim e Mateo, a influência do Sun Ra é muito relacionada a como podemos manter nossa parada o mais humanamente possível e como continuar a expandir o som cada vez mais e mais. Não chegamos lá ainda, não acho que nosso som é tão expansivo assim, mas acredito que estamos vivendo no espírito de Sun Ra em como abordamos nossa música. Meio que uma homenagem a Sun Ra.

“O trabalho que quero fazer é muito simples: representar os não-representados. Estou aqui para servir a minha comunidade. Estou aqui para contar nossas histórias. Para me assegurar de que a verdade exista em todas suas formas”

Qual foi a sensação de entregar os laptops para a Brooklyn Democracy Academy?

Me sinto o cara mais feliz do mundo quando vejo que o que fizemos impactou alguns daqueles jovens. Eu sou muito grato a todo mundo que apoiou o projeto e esses jovens puderam ver que existem outras pessoas que os apoiam, porque elas compraram o livro. O diretor da BDA veio com uma ótima ideia: na turma que estava se formando, tinham cinco jovens que passaram para faculdades, então demos os laptops para eles. Quem sabe o que esses equipamentos podem fazer pelas carreiras deles? Porque agora eles têm as ferramentas. Quando eu olho pras comunidades negras e de cor, nós temos as ideias, a criatividade, só não temos os recursos, as ferramentas. Um computador pode ser essa ferramenta para um jovem começar a fazer música, ou pra ser um escritor, um biólogo. Isso faz meu coração feliz. Poder dar os laptops para esses jovens ultrapassa o livro, as mixtapes, a áudio colagem.

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