Às vezes, o tempo é mais do que uma linha reta. Para Patrícia Polayne, ele se torna circular, quase mágico, criando espaços onde a vida e a arte dançam em uma única coreografia. Após 15 anos de hiato desde seu álbum de estreia, Circo Singular – As Canções de Exílio (2009), a cantora e compositora sergipana retornou com O Comboio da Ilusão, trabalho que une elementos da música brasileira e estéticas globais de forma onírica e sensorial. “É um hiato longo, de fato, e, ao mesmo tempo, O Comboio da Ilusão é a sequência do Circo Singular, ele dá continuidade. O tempo, na verdade, quando a gente fala de arte, esse tempo/arte, ele é elástico, porque a minha vida nesse intervalo de tempo teve tanta coisa que mais tarde eu fui entender que já era o álbum sendo feito”, introduz a cantora e compositora.
Patrícia Polayne, nascida em Aracaju e criada no Rio de Janeiro, carrega em sua história a dualidade de quem vive entre os mundos. Ela cresceu entre trilhas sonoras para teatro, turnês com trupes de palhaços e estudos esotéricos, até consolidar uma carreira que a levou a festivais internacionais. Durante o hiato de 15 anos, ela se dedicou a projetos como a gravação de um disco com as Catadoras de Mangaba, grupo formado por mulheres de Sergipe. “Foi um trabalho incrível, de resgate cultural e fortalecimento de vozes femininas que me inspiraram profundamente”. Além disso, Patrícia passou por reviravoltas em relacionamentos que, no período pandêmico, foram ressoando nas músicas, parte já escritas, parte em composição. “Na verdade, eu estava me tratando para voltar, porque eu vivi relacionamentos, eu não fiquei casada com uma pessoa só esse tempo todo, então eu vivi, né? Casei com homem, casei com mulher… Um ecossistema passou pela minha vida, e deixou suas marcas. Eu estava em tempo suspenso, traduzindo essa melancolia”.

“Cada canção é pensada como um arcano. Tem uma mensagem, uma sensação que ela quer transmitir”
Em O Comboio da Ilusão, ela reflete sobre esses tempos vividos, apresentando uma obra que, como descreve, “é um tarô sonoro, um jogo de arquétipos que convida à decifração”. O conceito, inspirado pelo I Ching, o mito do eterno retorno e o tarô, ganha corpo em 13 faixas divididas entre os elementos terra, água, fogo e ar. Cada música funciona como uma carta que ativa no ouvinte o inconsciente coletivo. “Cada canção é pensada como um arcano. Tem uma mensagem, uma sensação que ela quer transmitir”, conta. A primeira faísca criativa surgiu em uma fazenda isolada no interior de Sergipe, onde Polayne se debruçou sobre a relação entre a natureza, o tempo e os ciclos humanos. Com produção de Dudu Prudente e coprodução de Allen Alencar, durante a pandemia, o álbum foi lapidado entre Aracaju, São Paulo, Rio de Janeiro e Bruxelas, em um processo que uniu tecnologia e afeto. “A gente fez o disco num processo onde cada um trouxe algo. Sempre num contato constante, mesmo à distância, com o Dudu na Bélgica, o Allen em São Paulo, e eu estava no Rio nessa época, mas a gente manteve uma sincronia no nosso contato”, relembra Patrícia. A produção do álbum foi um processo intenso e colaborativo. Algumas canções, como “Fogueira (O Dragão da Maldade)“, já existiam antes da pandemia, mas ganharam novas camadas durante as gravações. “Eu sou muito detalhista no estúdio. Gosto de experimentar, de testar os limites das músicas”, revela a artista. Além da produção colaborativa entre Dudu e Allen, o disco conta com participações mais que importantes, como os sintetizadores de Donatinho e o sax de Cuca Ferreira (Bixiga 70, Terno Rei), entre outras aparições. “Uma vez vi a Björk falando que ela gosta de dar uma parte do disco na mão de um músico, outra parte na mão de outro e ver no que dá. Pensei em fazer algo parecido com as colaborações que temos no disco e ficou ótimo, manteve sua unidade”.
No coração de O Comboio da Ilusão, Patrícia Polayne tece uma conexão visceral com Nadir da Mussuca, mestra quilombola de Laranjeiras, Sergipe, cuja ancestralidade enraíza o samba de pareia presente no álbum. É com ela o único feat. do álbum, na música “A Roda”. “A dona Nadir é uma força da natureza, nossa Elza Soares. Ela lidera os ritos no quilombo da Mussuca”, explica Patrícia. Relação essa que vai além da música. “Ela me leva para o terreiro, para comer um pirão de camarão. É minha amiga, minha inspiração”. Para Patrícia, quando Nadir empresta sua voz à faixa, o impacto transcende. “A presença dela fecha todo um raciocínio. É como se dissesse: ‘Aqui estamos, carregando séculos de história e resistência’”. Nesse diálogo entre o passado e o presente, Polayne transforma o samba de pareia em um eixo universal, misturando batidas eletrônicas e sintetizadores ao rito ancestral, em uma alquimia que ecoa tanto a tradição quanto a contemporaneidade. “O álbum ao ser montado é como se fosse uma casa. Um vem com a planta, outro com o projeto, outro com os interiores… Adiciona aqui, muda ali, mas de algum jeito tudo se conversa”.
“Esse disco é um renascimento. Ele é o retorno dessa heroína que passou pelo exílio e volta ao mundo para tentar se reencontrar”
A integração de ritmos brasileiros como samba de pareia e taieira com texturas eletrônicas, chamber pop, psicodelia e pós-punk é uma marca do álbum. Para Polayne, essas camadas sonoras não são apenas artifícios, mas “argamassas” que sustentam o conceito e o lirismo. “Quando construímos cada faixa, eu perguntava: qual é o arcano aqui? Que sensação queremos evocar?” explica. Quanto à parte eletrônica, o toque refinado, que dialoga com os arranjos dos sopros, faz parte de uma abordagem particular da produção de Dudu Prudente, que mesmo à distância, deu o tom na ambientação do disco. “Dudu foi um grande engenheiro musical desse álbum, porque ele conseguiu fazer exatamente isso — juntar o eletrônico ao orgânico. Eu o conheço há muito tempo, mas comecei a perceber que ele era o cara quando vi que ele tava apaixonado pela estética Acoustimatique, que é algo que rola lá na Bélgica, onde eles vão para galpões, fábricas abandonadas, para fazer esses concertos”, explica Patrícia.
Com produções que atravessam o Brasil e a Europa, O Comboio da Ilusão é um mosaico de influências e experimentações, onde estética e discurso andam juntos. “O samba de pareia que tá no disco, é algo que só existe aqui, na Mussuca, e é um rito. O samba de pareia é tocado no povoado sempre que nasce uma menina, e aí as mulheres dançam o samba para celebrar a chegada dessa menina. Então tem um fundo feminista também”, comenta Patrícia. Essa fluidez sonora se reflete em faixas como “O Abismal”, que mistura percussão e sintetizadores, e “Diadorim“, de atmosfera etérea e paisagens oníricas que evocam nomes como Kate Bush e Cocteau Twins — tudo isso numa abordagem barroco-acústica com a adição de instrumentos como craviola, bandolim, flauta e violino.

“Existe um etarismo muito forte na música pop, que cobra juventude e descartabilidade. Uma coisa é lançar seu segundo álbum com 25 anos, outra coisa é lançá-lo perto dos 50. Mas eu acredito no tempo como maturidade, não como prazo de validade”
Na sétima faixa do disco, “O Rio”, por exemplo, a cantora explora o arquétipo da metamorfose: “Nunca ser o mesmo quando se entornar o mar”, canta, refletindo sobre o ciclo de renascimento. Já “Carneiro de Fogo” traz a introspecção da bossa nova enquanto “Fogueira (O Dragão da Maldade)” mistura percussão e elementos cinematográficos. Cada música parece dialogar com uma multiplicidade de espaços internos e externos. “Acho que o disco é como um labirinto; você entra e descobre novas passagens a cada audição”, reflete Patrícia. Se em Circo Singular o exílio era literal e emocional, O Comboio da Ilusão traz um sentimento de reencontro e ressignificação. “Esse disco é um renascimento. Ele é o retorno dessa heroína que passou pelo exílio e volta ao mundo para tentar se reencontrar”, afirma.
Patrícia também não foge do papel que a idade e o gênero desempenham na recepção de sua arte. “Só porque sou mulher e assertiva, dizem que sou difícil. Nesse mercado, tenho que lutar para ser ouvida. Mesmo assim, lanço um disco progressivo, fora dos padrões rápidos e palatáveis do streaming. Quero que ouçam com o ouvido de dentro”, defende. Mesmo com a solidez do trabalho, o lançamento e a divulgação podem trazer desafios à recepção do álbum ao que Patrícia não mede palavras para classificar como uma realidade difícil. “Existe um etarismo muito forte na música pop, que cobra juventude e descartabilidade. Uma coisa é lançar seu segundo álbum com 25 anos, outra coisa é lançá-lo perto dos 50. Mas eu acredito no tempo como maturidade, não como prazo de validade”.
A estrutura conceitual do disco também é marcada pela integração entre palavra e som. A abertura com “Amor ao Difícil”, poema de Maria Cristina Gama, estabelece um diálogo que atravessa o álbum. “Esse poema é um convite a enfrentar as dificuldades com coragem. Ele prepara o ouvinte para o que vem a seguir,” explica Patrícia. Já o fechamento com “Vaidade”, faixa que leva o nome do poema de mesmo nome de Florbela Espanca, cria um arco narrativo que ressoa com os temas abordados ao longo do álbum, como a passagem do tempo, o medo e a transformação pessoal. “Se você reparar nos dois poemas, eles dialogam entre si. Faz sentido abrir com ‘Eu Vivo Orando’, e no final entra Florbela Espanca e diz, ‘Acordo do meu sonho e não sou nada’. Como se o álbum inteiro fosse um sonho — aqui está a ilusão. No final, acordo do meu sonho e não sou nada. A realidade”. A ideia central em torno do título vem do clássico filme de Ingmar Bergman, O Sétimo Selo (1957), no qual vida e morte são divididas por uma linha tênue. “O filme me impactou profundamente. Essa ideia de questionar a morte e a ilusão me ajudou a construir o conceito do álbum. E o comboio da ilusão vem daí, daquela cena clássica que é aquele comboio, aquela galera indo no topo da montanha, dançando, e eles não percebem que a morte está levando-os ao precipício” ilustra a cantora.
O Comboio da Ilusão é um universo vasto. Suas músicas oferecem uma leitura por camadas sensoriais e emocionais, em que o local se torna universal, e a ilusão é o caminho para um despertar. “Eu espero que as pessoas se deixem levar pela experiência, que se percam e se encontrem dentro dessas canções”, diz Patrícia. Como no tarô, cada faixa é um convite à interpretação, deixando claro que o álbum não é apenas para ser ouvido, mas para ser sentido. “Esse disco é meu arcano, minha forma de brincar com o mistério e decifrar códigos”.