A História de “Tommy” Narrada por The Who

Hoje, obra considerada por muitos a primeira Opera Rock completa seus 45 anos

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45 anos se passaram desde que chegava às lojas uma das obras mais importantes e basais do Rock & Roll. Há exatamente quatro décadas e meia, o público conhecia o que ficou imortalizado como de fato a primeira Opera Rock, gênero de obras que apresentava uma narrativa e construía arcos de história com de personagens através das canções baseadas no Rock. Sim, estou falando de Tommy, uma das obras-primas do quarteto inglês The Who e principal “culpada” por popularizar ainda mais a banda no fim dos anos 60 e começo dos 70.

O ano era 1969 e o quarteto já tinha um nome bem presente no meio roqueiro da época. Até então, o grupo já havia se aventurado com discos conceituais, porém mais brandos. The Who já havia apresentando uma transmissão pirata de rádio (com direito a propagandas e tudo mais) em The Who Sell Out (1997) e mostrado, um ano antes, o começo a da ambição de criar uma narrativa com a faixa-título de seu segundo álbum, A Quick One (1966). Por mais que a banda tivesse emplacado alguns hits (My Generation, I Can’t Explain, Substitute), ela ainda não tinha sua marca registrada ou algo que a destacasse de outras tantas bandas Mod [para saber mais sobre mods, ler este artigo sobre o ótimo Quadrophenia) ou daquele Rock tipicamente inglês feito durante toda a década de 60 – e que seguia os preceitos criados por outro quarteto, aquele de Liverpool e também conhecido como Fab-Four.

Diferente de uma obra conceitual, uma Opera Rock levava esse tal conceito ainda mais além e realmente contava uma história, construída a partir personagens, cenários situados no tempo e espaço, e um foco narrativo bem estabelecido. Esse tipo de álbum começou ser embrionado pelo menos três anos antes do lançamento de Tommy por vários artistas e pelo próprio Pete Townshend (guitarrista e principal compositor do The Who), mas de maneira informal e quase como uma brincadeira. O resultado dessa incursão de Pete nunca chegou a conhecimento do público, mas parte dessa narrativa pode ser vista na ótima A Quick One, While He’s Away. Uma ambiciosa faixa que, mesmo na época em que The Beatles era exaltado pela lisergia de Revolver (1966) ou The Beach Boys pelo resultado extremamente apaixonante de Pet Sounds (também de 1966), conseguia chamar a atenção pelo seus diversos momentos e pela progressão de “atos” – quase como músicas diferentes dentro de uma só.

Voltando a Tommy. A obra surgiu depois de tentativas (algumas muito bem sucedidas) de criar narrativas através de álbuns – nomes como Small Faces (1968) e The Pretty Things (1968) também lançaram as suas, que de certa forma influenciaram Townshend e companhia -, porém, certamente, foi a mais bem sucedida delas, seja do ponto de vista comercial, de aceitação de público e crítica ou mesmo no sentido de se tornar uma obra artística completa. Em 1969, nascia não só um dos grandes clássicos Rock, mas também da Cultura Pop – e que não à toa ganhou forma em outras representações da arte, incluindo cinema (em um filme realmente grotesco lançado em 1975 e interpretado pelo próprio grupo e por uma série de convidados, como Elton John, Tina Turner e Eric Clapton) e algumas versões no teatro.

A história de Tommy tem como seu personagem principal quem dá nome a trama. Filho de um capitão do exercito britânico, Tommy Walker nasce enquanto seu pai desaparece em combate (talvez durante a Primeira Grande Guerra Mundial). Ao voltar, o Capitão Walker vê sua mulher com um amante e o mata. Para tentar encobrir o crime, seus pais o mandam não contar nada do que ouviu ou viu naquele dia. Traumatizada, a criança de apenas sete anos perde a audição, visão e a inteligência, porém aprende a sentir o mundo através de suas vibrações e também através música – metáfora explicada por Pete como a própria representação de Tommy aos ouvintes, que ganhava forma pela música.

Depois de uma infância difícil (sofrendo nas mãos de seu sádico primo Kevin e sendo molestado por seu tio Ernie), o garoto passa por uma série de tentativas de cura, sendo levado aos experimentos mais curiosos (incluindo o uso de prostitutas e de alucinógenos) e mesmo os tratamentos mais convencionais (agora, com um médico de verdade). Ao mesmo tempo, o menino se torna o Pinball Wizard, um gênio no pinball e acaba atraindo a atenção de muita gente por jogar tão bem mesmo estando nessa condição quase catatônica. Esta faixa é um dos maiores hits não só deste álbum, mas de todo o catálogo da banda.

Conforme a narrativa avança, Tommy, apesar de cego, ele descobre conseguir se ver através do espelho e acaba ficando obsecado por seu próprio reflexo. Sua mãe, irritada por ver o filho assim, quebra o tal espelho e, sem querer, junto o bloqueio do garoto. Ele estava curado. Tommy recupera sua habilidade de fala e audição e é declarado um milagre pela imprensa (“Extra, extra, read all about it! / Pinball Wizard in a miracle cure!”). Por algum motivo, ele se torna uma figura messiânica e arrebanha uma série de discípulos, que por fim o abandonam por não concordarem com a mensagem que Tommy passava em seus “cultos” (que mais estavam ligados ao seu período pré-cura e as suas visões internas enquanto estava catatônico). Ao fim da história, sem mais nenhum seguidor, ele volta ao seu estagio inicial de introspecção e continua sua vida como era quando criança.

Esta é uma história cheia de absurdos e repleta de pequenas nuances e detalhes que só são descobertos após uma atenciosa audição à obra. O mais importante, porém, é que fantástico conto de Tommy Walker reflete a época em que foi criada, a época em que a psicodelia estava em alta e o movimento Hippie já se estabelecia como uma realidade, ganhando cada vez mais força após o chamado “Verão do Amor”, em 1967, também ano de lançamento de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, obra importantíssima para a causa. Esse tempo de espírito de livre experimentação deu a Townshend e companhia a possibilidade de ousar em sua narrativa e quebrar paradigmas, seja no formato de apresenta-la ou mesmo no teor incrível dela.

E por falar em movimento Hippie e psicodelia, o álbum foi apresentado quase na íntegra durante o famoso festival de Woodstock, em 1969 – ano que inaugurou a fase de maior sucesso da banda, que saía da cena o grupo Mod, com seus ternos de corte italiano, e reaparecia com aquelas roupas largadas e coloridas bem típicas dos hippies – não só as roupas mudaram, mas também atitude, agora inspirada nos ensinamentos do guia espiritual indiano Meher Baba. Mesmo que essa apresentação tenha sido de extrema importância para o The Who, foi nos shows em Leeds (Live at Leeds e na Ilha de Wight (Live at the Isle of Wight Festival 1970) que o álbum foi imortalizado ao vivo – e foi neste segundo show que o baixista John Entwistle iconizou o macacão de caveira que algumas décadas depois seria usando também por Flea, do Red Hot Chili Peppers em um outro grande festival.

Apesar de ganhar filme próprio (em que tudo parecia exagerado demais e um teor demasiadamente lisérgico), outras obras cinematográficas souberam tratar com mais delicadeza o disco, como é caso de Quase Famosos (Almost Famous), de 2000. Nele, o protagonista, uma criança que no futuro se tornará um jornalista musical, é apresentado ao álbum com um bilhete que diz “Ouça Tommy com velas acesas, você verá todo seu futuro” – uma referência a libertação que ele teria durante sua adolescência, período de sua vida retratado no longa.

Quase Famosos

Anos mais tarde o quarteto voltaria a encarar mais uma Opera Rock, Quadrophenia, porém com um intuito bem diferente, se tornando quase um “auto-exorcismo” de Pete e da própria banda ao encarar um personagem que sofria de esquizofrenia e cada uma de suas personalidades “representava” um membro da banda. Uma ótima obra, quanto isso não há a menor dúvida, porém não há a mesma verve e objetividade vista em Tommy, isso pra não citar um personagem tão “carismático” quando o jovem Walker.

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ARTISTA: The Who
MARCADORES: Aniversário

Autor:

Apaixonado por música e entusiasta no mundo dos podcasts