“A música é um mundo infinito”, diz Caio Muratore. Fundador do estúdio criativo Solo.etc, o produtor, DJ e compositor tem íntimo e incessante contato com a música a partir de múltiplas possibilidades – do experimentalismo eletrônico, passando pela trilha sonora na publicidade até a curadoria de programas de rádio online como Veneno e a rádio palestina Alhar. Além disso, Caio vivencia diferentes experiências pela cena eletrônica, como participações nas transmissões da festa CapsLock e do coletivo Metanol. Em meio a tantas frentes de atuação, ele traz ao mundo o seu primeiro disco – uma espécie de ópera-eletrônica-distópica baseada no mundo real.
Lançado pelo selo brasiliense Nice & Deadly, Buraco é resultado de anos de experimentação eletrônica e de uma reflexão acerca da atualidade. O trabalho conta com a refinada mentoria de Zopelar e viaja por diferentes nuances e facetas da house music – em especial as vertentes de Nova Iorque, Chicago e Detroit. Em um papo com o Monkeybuzz, Caio relembrou as pesquisas para a composição do disco e explicou sua distopia sonora, na qual sons do passado constroem um futuro que já se evidencia no presente.
Você é um cara envolvido com diferentes recortes da arte – entre projetos gráficos, publicidade e, agora, lançando um disco autoral. Conta um pouco sobre sua trajetória artística e sua relação com a música….
Comecei com a música na infância, adolescência, fazendo aula de violão e de guitarra. Mas era uma coisa que não estava no meu dia a dia. Como vim de uma família não tão ligada em arte, era algo que eu via bem como um hobby, um pouco mais distante. Me formei em publicidade e comecei a trabalhar em uma área que é muito criativa, pois acho que sempre me vi com esse olhar mais criativo em relação a meus amigos e família. A partir de 2017, depois de trabalhar bastante com este mercado e começar a frequentar festas e eventos de música eletrônica, comecei a conhecer um lado da música que nunca havia visto antes. A Solo, um estúdio criativo/multidisciplinar que eu tenho, sempre me serviu muito como laboratório de ideias e foi nela que comecei a desenvolver e me aprofundar com a música. Foi o lugar que eu mais me aprofundei, é um mundo infinito.
Você mencionou que em Buraco “busca por sons que dialoguem com o meio ao redor e funcionem na pista de dança”. Como funciona essa busca, considerando os diferentes meios que você percorre?
Sempre tive um lado muito experimental – é quase natural para mim. Principalmente no começo das minhas produções, eu fazia coisas muito experimentais – faixas de 30, 40 segundos, 1 minuto. Era o jeito que a música saía, que acontecia. Era como eu conseguia produzir música. Era um negócio meio que de mim para mim mesmo. Eu entendia, gostava, foi importante durante uma época, mas não me entendia muito dialogando com as pessoas, sabe? Me senti às vezes muito isolado. E aí foi esse meu processo de transição, de tentar colocar aquela experiência que eu tinha de produção, mas com um olhar um pouco mais voltado para a club music. Para soar bem na pista tem que ter um certo jeito, assim. E o house, ele tem certo padrão. Apesar de Buraco ser experimental e diferente, eu exploro bastante esses elementos padrões do house. Aos poucos, eu fui me apaixonando por esses padrões. Entendendo isso como uma forma de diálogo, de cena, né?
O house é um elemento central do álbum? Como surgiu esse interesse?
É um estudo do house. Um estudo desse jeito de fazer música que já existia. E eu, de certa forma, tentei dialogar com isso. Sempre me envolvi muito com pesquisa musical – tinha um programa quinzenal na Veneno que me colocava muito para pesquisar. Durante uma época, me apaixonei por esse começo do house – principalmente referências do Jack House, como Ron Hardy. Gostava de pesquisar essa parte mais agressiva do gênero, mais crua e quase punk, principalmente da cena de Nova York e Chicago. Até mesmo nomes mais atuais que revisitam essa estética, como Delroy Edwards. E a partir disso, fui tentando emular essas sonoridades a partir de plugins digitais. Então, o disco no final é uma grande curadoria. Dá um prazer imenso terminar as faixas e pensar “esse é o som que tava buscando”. Nessa parte de identificar timbres específicos, o Zopelar me ajudou bastante.


“Apesar de Buraco ser experimental, eu exploro bastante elementos padrões do house. Aos poucos, fui me apaixonando por esses padrões – e entendendo isso como forma de diálogo”
E como foi este processo de composição e mentoria com o Zopelar?
Ele foi muito gênio! Ele conseguiu entender quais eram os sistemas que essa galera do house usava. Tipo, ele tinha drum machines da Pearl que a galera usava lá no começo. A famosa bateria 707 da Roland. Ele foi meio que mapeando e a gente construiu um template digital no Ableton que pudesse imitar isso. Mas o Zopelar também veio me dar uma afirmação de que o que eu estava fazendo era música e que tava tudo bem, sabe? Ele é um multi-instrumentista e músico – não é um cara exclusivo da música eletrônica. E eu achava minha música pouco musical, acho que muito por conta de pensar a música de uma maneira mais intuitiva. Quando ele pegou minhas faixas (aquelas experimentais também) e me disse que aquilo também era musical, funcionou como um guia para me aprofundar ainda mais naquilo que eu queria fazer. Comecei a perceber a música eletrônica como algo muito mais complexo – a música é um mundo infinito, né?
Como foi o contato com o Nice & Deadly para fazer o lançamento do disco?
Queria que o primeiro álbum que eu fizesse, mais autoral e de debut, fosse por um selo musical. E aí, separei uma listinha de selos que eu gostava e, entre eles estava a Nice & Deadly. Conversei com o Stênio (aka Data Assault). E, pô, eu adorei eles. Eles são muito organizados, muito profissionais, saca? Muito bom trabalhar com gente assim, porque as coisas vão andando, eles são super organizadinhos e eles me ensinaram, sabe? E é ótimo poder contar com gente assim, porque realmente eu precisava dessa ajuda, sabe? Sei de algumas coisas pelas vivências que tive com meus projetos da Solo, mas é muito mais difícil fazer sozinho. Quando é sobre você também, é mais difícil você fazer sozinho. O selo tinha lançado muita coisa que eu gostava, só que mais focado em drum n bass e bass music. Mas eles estavam querendo coisas novas, olhar para outros lugares e aí casou de eu fazer um disco house.
O disco tem relações bastante anacrônicas. Buscar sons do passado para lidar com a incerteza do futuro, tudo com angústia do presente. Por que você acha que as sonoridades e estéticas passadas ainda se comunicam?
Acho que elas são recortes de coisas que já aconteceram lá atrás. E aí, nessa mescla de diferentes sonoridades, você junta linguagens de diferentes épocas. Talvez muito dessa nossa tentativa de encontrar um tempo pra gente, eu acho. Parece que a gente vive hoje num mundo que não é uma época tão definida como os anos 1970 foram. Por isso que a gente fica tentando pegar pedaços dessas épocas. Mas de uma forma geral, acho que confio muito no meu interesse e na forma como ele me guia por esses diferentes recortes.
A criação de um universo distópico está envolta deste disco. Como foi esse processo de representar uma distopia, a partir de timbres e gêneros de música eletrônica?
Eu tinha uma ideia na cabeça de produzir algo bem real. Mas, ao mesmo tempo, de passar isso de uma forma um pouco mais lúdica. Foi quando pensei: e se eu pudesse criar uma história assim na minha cabeça, sabe? Algo como: uma pessoa que vivia num buraco, numa cidade distópica e era um produtor musical que usava só tecnologias do passado, vindo de outros lugares para fazer o seu som. Imaginava um lugar bem degradado. Eu criei esse mundo na minha cabeça, mas ele nada mais era do que uma representação do mundo real, infelizmente. O que eu fiz nesse disco foi pensar na trilha sonora desse mundo. Não comuniquei essa história específica para todo mundo, mas ela transparece através de sons e imagens. Eu conversei com Kakubo e Puiupo [responsáveis pela arte gráfica] para tentar comunicar a estética do HQ – muito relacionada com as distopias. Mas, de uma forma geral, acho que foi um processo que surgiu a partir das minhas referências. Elas me levaram a construir esse mundo. Eu amo Drexciya e MF Doom, e eles já fizeram essa mistura distópica. Mas acho muito bonito isso de você poder criar um universo paralelo que conversa com a realidade de diferentes maneiras.
A tracklist do disco apresenta nomes de diferentes naturezas: Férias, 40Graus, 23/10/23, 32 Filtros, 18GBRAM. Há algo bem enciclopédico e randômico na escolha desses nomes – quase como a escrita de David Foster Wallace. Como você pensou a nomeação das faixas nesse disco?
Sempre tive dificuldade de nomear as músicas e os projetos de produção. Eu colocava só data e número. Só que, a partir do segundo ano produzindo assim, você fica maluco! Aí eu comecei a salvar os projetos com as primeiras coisas que me remetem àquela faixa específica. Fica mais fácil quando você conecta a música com alguma ideia ou com algum nome. E aí eu simplesmente tentava fazer isso, assim. Eu terminava o projeto e era a primeira coisa que me via na cabeça. Ou então era algum dia específico, era algum momento marcante… Então a “23/10/23” tem esse nome porque eu, provavelmente, fechei essa música nessa data. “18GBRAM” foi a primeira música que eu fiz com um computador novo que tinha 18 giga de RAM. São as primeiras coisas que eu vejo ao meu redor, de certa maneira. Deixo a intuição me guiar muito nesse processo. E, enfim, não ligar muito para isso, e também poder me desapegar também, sabe? Porque é só um nome, é só jeito de categorizar e de nomear. Tento fazer de um jeito leve. No final fica criativo divertido. É um pouco diferente, mas vem disso: de uma primeira ideia.