A ponte entre Hip Hop e stand-up comedy

Duas formas de expressão recheadas de punchlines, timing e entrega precisa, Rap e comédia compartilham muito mais do que um palco e um microfone: são capazes de documentar a experiência negra cotidiana na contemporaneidade

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Fotos: Richard Pryor/The Kobal Collection

Minhas músicas de Rap favoritas muitas vezes são aquelas que conseguem me fazer rir, e sempre são aquelas que conseguem me surpreender. O mesmo com o humor. Como ouvinte de música ou como espectador de comédia, não há nada mais frustrante do que conseguir prever o fim da rima ou o fim da piada. Jay-Z, Dave Chappelle, Andre 3000, Chris Rock, Kendrick Lamar, Richard Pryor, todos esses compartilham esse gene da perspicácia e um domínio das palavras que parece quase um super-poder.

Pensando sobre comédia, e mais especificamente sobre o stand-up feito por pessoas negras, talvez outfit seja o que existe de mais contrastante entre um rapper e um humorista – ainda que nomes como Deon Cole se apresentem quase como Kanye West na lendária noite em que interrompeu Taylor Swift na premiação do VMA em 2009. Em entrevista para a Complex em outubro deste ano, falando sobre seu disco de estreia, o comediante, desenhista e rapper Zack Fox disse que comédia e rap são coisas completamente diferentes. E, porque eu amo o Zach Fox, devo discordar.

Existe um consenso geral de que o Hip Hop nasceu em 1973, em um domingo ensolarado em uma festa comandada por DJ Kool Herc e sua irmã Cindy Campbell. Outros apontam “The Rapper’s Delight”, do Sugarhill Gang, em 1979, como a música responsável por catapultar o Rap nos Estados Unidos. Mas anos antes desses momentos históricos, o comediante Rudy Ray Moore já estava rascunhando o Rap em seu disco Eat Out More Often (1970). Impulsionado por uma banda de apoio que era mais próxima do Jazz do que do Funk – que andou de mãos dadas com o Hip Hop – em sua primeira década de existência, Rudy rimava composições exageradamente profanas sobre um Estados Unidos de prostitutas e bandidos. Suas poesias não eram ritmicamente alinhadas com a música, mas ele possuía um delivery potente, que, combinado com bordões enfurecidos e um dicionário de gírias – gíria não, dialeto – negro, estabeleceu muitos precedentes para o que o Rap viria a ser.

Tanto o Rap quanto a comédia dialogam diretamente com a energia do público. Muito próximos por conta da interseção de arte e entretenimento, ambos exigem escrita extensa, pesquisa e edição dedicada. A dinâmica do ofício é parecida: é preciso usar de palavras para comunicar uma mensagem de maneira lúdica, imaginativa, narrativa e/ou divertida. Para isso, bons rappers e bons comediantes têm de dominar as mesmas técnicas: desde o setup de rima ou texto que prepara para a chegada da punchline até a cadência (leia-se: flow), passando pelo beat (pausa intencional, como empregado em roteiros literários), os trocadilhos, jogos de palavras e a mais importante delas, o timing.

Na comédia, o timing é um guarda-chuva que abriga a entrega de uma piada e sua reação com o público, ou seja, é o resultado de uma complexa equação entre inflexão, ritmo, cadência, pausa e tom de voz. Ritmo é o elo mais forte que liga comédia e Rap. Antes de lembrarmos de uma punchline dos nossos rappers favoritos, lembramos do flow deles, que são fundamentais na potência de uma rima. Da mesma maneira que a cadência de Bernie Mac ou Chris Rock são inconfundíveis e suas piadas certamente teriam metade da graça se contadas por outra pessoa.

Rap e comédia são formas de arte orais, o que significa que o domínio das palavras e do som delas é crucial. Uma palavra a mais pode arruinar a métrica de uma música, resultando em um flow desalinhado com o compasso. Uma palavra a mais em uma piada pode estragar a entrega do que seria uma punchline precisa. Os melhores MCss e os melhores comediantes escolhem com precisão cirúrgica suas sílabas, um traço presente em todos os mestres do ofício.

O pensamento estrutural por trás de uma boa piada é o mesmo por trás de um bom Rap (e até mesmo de uma boa reportagem!): você vê um assunto, reúne os fatos e entrega uma perspectiva (e opinião) sobre o que você espera que as pessoas compreendam e com a qual se conectem. Portanto, não é coincidência que os rappers mais próximos à comédia e mais admirados por comediantes são aqueles rappers que têm algo a dizer. Nomes como OutKast, Snoop Dogg, The Fugees estavam contando histórias importantes sobre o lugar onde viviam e suas vidas, e a comédia sempre achava espaço para agregar a história, principalmente nos skits dos discos – uma herança direta dos álbuns de comédia de Richard Pryor, Bill Cosby e Dick Gregory.

Curtis Sherrod, ex-diretor executivo do Hip Hop Culture Center no Harlem, diz que Rudy Ray Moore proveu uma conexão direta entre Griots – contadores de história e historiadores orais da África Ocidental – e narrativas modernas do Hip Hop. “Ele não sabia que era um griot, mas isso estava no DNA dele”, diz Sherrod em entrevista para a TIME. “Ele era capaz de contar histórias e cativar públicos que estavam enfrentando opressões e precisavam de uma hora da janela para o mundo fabuloso e misterioso que ele estava oferecendo”.

O comediante Roy Woods Jr. abre um de seus stand-ups dizendo que “[…] se você quer saber como as pessoas negras estão se sentindo, ouça as músicas que estamos fazendo. Nossa música diz tudo sobre o que se passa em nossa psiquê. É por isso que você não vê nenhum negro fazendo uma canção patriota”.

“They like ‘damn why you so angry/ That’s a stupid ass question, bitch. Slavery”, rima Zack Fox em “IHY2LN”. Ainda que o comediante e rapper de Atlanta discorde, há, inescapavelmente, muitas similaridades entre Rap e humor. Como ele, é incontável o número de comediantes que usam piadas para comentar, de maneira séria, a respeito de racismo e opressão, ou dar vazão a raiva, angústia, medo, com semelhante poder terapêutico da música Rap. Por outro lado, de Jay-Z em “99 Problems” a Young Dolph em “100 Shots”, MCs, com frequência, usam de um absurdo quase cômico permitido pelo gênero para comunicar um ponto acerca da violência urbana que experienciam – exatamente como comediantes.

Uma vez, assistindo a um especial do Chris Rock, tive a percepção de que algumas piadas teriam menos força em um palco menor. A performance dele é preenchida pelo ritmo em que ele anda de um lado para outro do palco, batendo o fio do microfone no chão e marcando percussivamente seus passos, enquanto enfatiza certas expressões, construindo emoções na plateia, de um jeito muito parecido com rappers em grandes palcos.

Um bom exemplo para essa abordagem está no especial de Chris Rock para a HBO, chamado Never Scared, em que ele define a hipocrisia na qual o privilégio branco é construído. Ele compara crimes de homens brancos com ações cotidianas de homens negros inocentes, enquanto pontua cada exemplo com “but it’s all right, ‘cause it’s all right”. O trecho lembra inevitavelmente o poema musicado de Gil Scott-Heron chamado “Whitey on The Moon”, no qual ele questiona o absurdo que é não ter direitos básicos como pessoa negra enquanto os brancos podem ir à lua. “I can’t pay no doctor bill (but Whitey’s on the moon)/ Ten years from now I’ll be payin’ still (while Whitey’s on the moon)”.

O paralelo entre a piada de Chris Rock e o poema de Gil Scott-Heron demonstra que a relação entre Hip Hop e comédia feita por pessoas negras é muito mais profunda do que punchlines, piadas e outras semelhanças técnicas. É mais profundo do que os skits do Wu Tang-Clan, Dave Chappelle abrindo Quality (2002) de Talib Kweli, Chris Rock, Zack Fox ou Donald Glover. Rap (em seus primórdios) e comédia feita por pessoas negras valorizam a mesma coisa no que tange ao discurso: falar a sua verdade e, por mais clichê que isso seja, ser “a voz daqueles que não são ouvidos”, como disse Martin Luther King. Rap e comédia negra partem da tradição africana da oralidade, e apesar de ramificadas em diferentes direções, ainda se cruzam com bastante frequência, permitindo que temas importantes e dolorosos sejam abordados por meio de entretenimento e diversão. Fazendo-os menos complicados de digerir, enquanto documentam a experiência negra cotidiana na contemporaneidade.

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