A Sinceridade Narrada de Jair Naves

Um passeio pelos versos do músico revela humanidade de seu disco “E Você Se Sente Numa Cela Escura, Planejando A Sua Fuga, Cavando O Chão Com As Próprias Unhas”

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Fotos: Patricia Caggegi

E Você Se Sente Numa Cela Escura, Planejando A Sua Fuga, Cavando O Chão Com As Próprias Unhas. Fazia tempo que um nome de álbum não descrevia tão bem seu conteúdo, e fazia bastante tempo também que eu não via um disco que conseguisse soar tão sincero, mesmo quando suas músicas cantam sobre outras pessoas quanto essa estreia solo de Jair Naves no formato de longa duração.

O músico paulistano já havia lançado um EP e um single sozinho, após o fim de sua banda, Ludovic. Em 2012, produziu e lançou o álbum que demonstra de uma vez por todas seu talento como compositor e intérprete.

Das muitas qualidades do trabalho, alguns versos saltam aos ouvidos desde a primeira audição. São pequenas histórias cheias de rimas com reflexões, recados, pedidos e desabafos que sabem mexer com o ouvinte, até com aquele que não se identificar com a música em questão – mas é difícil não se encontrar nas letras de Jair.

Confira alguns exemplos de sinceridade nas narrativas presentes em E Você Se Sente…. Enquanto lê, você pode ouvir todo o disco no stream abaixo.

”O desespero me invade, um choro em meu rosto arde, mas eu não posso me deixar abater, mesmo com o coração partido, amargamente desiludido”

A abertura do disco com Pronto pra Morrer (O Poder de uma Mentira Dita Mil Vezes) possui uma progressão lírica pontuada por três versos no começo, meio e fim que repetem ideia de se estar preparado para o fim da vida do nome da faixa, tudo isso acompanhado de guitarras que confirmam o tom denso que a obra segue a partir dali. Logo antes do clímax da letra, que leva ao fim da música, as frases acima surgem e revelam um certo otimismo que diversas vezes volta a aparecer ao longo do trabalho. Isso confere uma camada a mais na personalidade do disco, como se explicasse a claustrofobia do título como uma inevitável tentativa de se estar bem – o que, pra mim, acaba sendo o grande tema do álbum.

”Vem até mim um senhor de fala lenta, diz que bebendo assim eu nem chego aos quarenta, teima que sabe bem o que deixa um homem no estado em que eu estou e me alerta que a auto-piedade é a seqüela mais comum do amor”

A pequena história que abre No Fim da Ladeira, Entre Vielas Tortuosas entra na música como um argumento para a explicação da sensação após um fim de relacionamento, momento no qual ele ganha “a simpatia dos outros bêbados”. Essas pequenas situações constróem as mais diversas cenas ao longo do disco, como fotografias ou curta-metragens, o que aproxima sua poesia ainda mais do ouvinte. Mais pra frente na mesma música, ele usa das palavras mais simples para continuar expressando o que sente em “Eu só queria poder me redimir com você” e continua com “Me desculpa se eu te deixei assustada, se eu disse alguma coisa muito errada, mas eu nunca fui de pecar pela omissão ou de ignorar o meu coração”, até concluir com um singelo “Não vá se afastar”. Belo e simples, tudo muito verossímil.

”Pra mim, tudo mudou quando começaram a me chamar de senhor e eu me atentei tardiamente que a juventude se vai tão de repente, que eu não vou viver eternamente”

O mais humano dos sentimentos – o medo da morte – também dá as caras no disco, como nesses versos de Covil de Cobras. Em um trabalho sobre como estar bem na vida, é natural que seu fim esteja entre seus temas. Ele surge timidamente no desfecho da faixa que vem logo após ua sombria Vida com V Maiúsculo, Vida com V Minúsculo, que trata de reflexões sobre modos de se viver (“Quando eu era menor, eu me perguntava como deveria ser a vida em uma dessas casas à beira da estrada, tristes e isoladas. Acho que agora eu sei, pelo vazio com que eu convivo há tanto tempo”) com o apoio da pulsante frase “Eu não vejo em mim nenhum medo”. Essa própria aparente discordância entre as duas músicas só reforça o aspecto sincero de alguém que parece não temer nada na vida, a não ser parar de viver (ou vivê-la sem conseguir estar bem).

”Eu posso não estar aqui quando você olhar pra trás, então hoje me abraça como eu te abraçaria no pior dos seus dias”

A Meu Ver é a penúltima música de E Você Se Sente…, mas seu um minuto e meio de introdução, o vocal lamentoso e o final crescente fazem com que ela se pareça mais com uma grande conclusão – e seu título reforça isso. Sendo assim, a impressão que me dá é de um desfecho à la Alexander Supertramp e seu “A felicidade só é real quando compartilhada”. Se desde o início se fala sobre iminentes tentativas de se viver bem, as pistas ao longo das narrativas indicam a necessidade de não estar sozinho para poder estar bem de fato, na grande ironia que nos perturba ao lembrar que grande parte das razões de alguém estar mal vem justamente de outras pessoas. Ainda assim, a tal cela escura é solitária e a tal fuga é para os braços de alguém – e meu palpite é que todo aquele que se relaciona acaba entendendo muito bem o que Jair Naves canta em um surpreendente, e às vezes incômodo, grau de sinceridade.

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ARTISTA: Jair Naves

Autor:

Comunicador, arteiro, crítico e cafeínado.