“A Vida Me Ensinou a Caminhar” mergulha nas crônicas musicais da carreira de MV Bill

Em quarto livro (o primeiro solo), o rapper revela bastidores de histórias conhecidas e revisita sua trajetória pessoal e musical; aproveitando o clima autobiográfico, pedimos para MV Bill montar uma Playlist da Vida

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Fotos: Ignacio Fariña

Há poucos rappers no Brasil com leque musical tão amplo e categórico quanto MV Bill. Do disco de estreia Traficando Informação (1993), inspirado no G-Funk de Dr. Dre e Too $hort, ao EP Monstrão (2013), de influências do dirty south e flertes com dub reggae e samba rock, o MC segue construindo seu legado como um dos artistas mais relevantes do hip-hop brasileiro. Com seu notório storytelling como uma das armas mais afiadas desse cinto de utilidades, MV Bill lança seu quarto livro, o primeiro focado em música. A Vida Me Ensinou a Aaminhar (2022), publicado pela Editora Age, reúne 27 crônicas que percorrem os mais de 30 anos de carreira de Bill.

Nascido na Cidade de Deus, Rio de Janeiro, Alex Pereira Barbosa vivenciou seu primeiro impacto do rap por meio de “Colors”, do Ice-T, quando tinha 14 anos de idade. Se apaixonou pela arte de juntar batida e rima e, desde então, não parou mais. São 12 discos, além de quatro livros, um documentário e a Central Única das Favelas (CUFA), ONG que ele fundou e comandou em parceria com Celso Athayde durante um longo período.

A Vida Me Ensinou a Caminhar é um fascinante mergulho nessa jornada, que ainda conta com QR Codes ao final dos capítulos, com músicas de cada período – auxílio interessante que, além de aprofundar a história, localiza o ouvinte pelo tempo, uma vez que a ordem dos capítulos nem sempre segue a cronologia dos fatos. Com ponto de vista único e perspicaz, Bill passa por bastidores de histórias conhecidas, como sua canônica apresentação no Domingão do Faustão, ou o encontro com Lula no Planalto Central (que rendeu aquela famosa foto do então presidente com o boné hip hop), até relatos pessoais – a relação com a irmã Kmila CDD ou a vez em que tentou explodir uma bomba caseira em uma sessão de cinema.

Trocamos uma ideia com MV Bill e, para coroar o lançamento do livro com tons biográficos, pedimos que ele montasse sua Playlist da Vida, com os sons que marcaram sua formação musical:

Ice T – “Colors”

“Embora não tenha sido a primeira música de rap que eu ouvi, o que me remete a meu início no rap é “Colors”. Eu e o Adão (personagem do livro) tínhamos o vinil do filme [homônimo] e ficamos fascinados. Quando a gente descobriu – através  das revistas brasileiras – que as gangues Bloods e Crips visitavam o set de filmagem, eu achei que era muito foda e daí começou”.

Os Metralhas – “Rap da Abolição” e Thaide & DJ Hum – “Corpo Fechado”

“São sons de duas coletâneas: Hip Hop – O Som das Ruas e Hip-Hop – Cultura de Rua, respectivamente. Os Metralhas era uma dupla de gêmeos cantando em programas infantis uma música que falava sobre abolição da escravatura nos anos 1980, muito foda. E Thaide e DJ Hum são fundamentais”.

Sugestão do repórter: Too $hort - "I Aint Trippin’"; a versão instrumental da canção foi usada na primeira música que MV Bill escreveu e cantou na vida, com seu antigo grupo, “Geração Futuro”.

Bone Thugs n’ Harmony – “Creepin on Ah Come Up (1994)

“Na época de Traficando Informação (1999) eu tava ouvindo muito Bone Thugs n’ Harmony. O rap teve muitos momentos de mudança, né? Quando o Dr. Dre lançou The Chronic (1992), ali foi uma virada no hip-hop. NWA, Public Enemy, teve uma mudança mais militante, Nas, o próprio Snoop. O Bone Thugs era diferenciado com o speed flow e uma melodia”.

Sugestão do repórter: Dr Dre – “A N**** Witta Gun”, que inspirou a canção “Um Crioulo com uma Arma”

DMX – “The Convo”

“Quando eu cantei no festival Free Jazz (1999), tava ouvindo muito DMX. O G-Funk era do caralho, Warren G e tal, mas era mais suave, né? Agressivo e suave. Quando aparece o DMX, com essa agressividade que às vezes eu sentia falta, foi legal pra caralho. Uma perda gigante também. “The Convo” é uma das minhas músicas preferidas”.

O que você colocaria fora do rap nessa playlist?

Eu herdei mais de 1500 vinis dos meus pais. Quando descobri que rap você fazia a partir de sample, eu passei a dar muito valor a essa herança musical, e comecei a usar mais isso no segundo disco, Declaração de Guerra (2002)”.

No Declaração de Guerra eu estava ouvindo muito samba rock. Para compor uma música tipo “Marginal Menestrel”, que traz a frase que é o nome do livro, eu ouvia muito Bebeto, que é considerado aqui no Rio de Janeiro o “rei do balanço”. Mas eu só conhecia Bebeto por causa da minha mãe, que ela ouvia pra fazer comida aqui em casa, era um hábito dos mais velhos, se reunir para ouvir vinil. Cada um trazia seu vinil de casa, botava a cerveja pra gelar, alguém ficava responsável por fazer a comida e ficavam ouvindo vinil, lendo a capa, encarte.

 

Minha casa também era muito musical. Algumas vezes vi o meu pai beijar minha mãe pela casa, ao som de Tim Maia, Agepê, Roberto Carlos, Benito di Paula, Maria Bethânia… Eu sabia que meus pais tinham tido uma bela noite de amor quando de manhã tocava Geovana, “Quem Tem Carinho me Leva”. E sabia também que a chapa estava quente quando ele punha “Quando será?”, de Zé Rodrix.

– Trecho retirado de A Vida Me Ensinou a Caminhar e reproduzido integralmente.

Quais suas comidas favoritas, que te levam para esse tempo?

Tudo comida que eu não posso comer hoje. Antigamente a gente comia tudo aquilo e não dava nada (risos) Lembro da minha mãe fazendo rabada, um tio das antigas fazendo churrasco, carne de porco pra caralho, feijoada. Se eu quero trazer essa memória afetiva através do paladar e da música, só ir na casa da minha mãe. Provavelmente vai tá tocando Alcione ou Zeca Pagodinho, isso já me leva lá nos anos 1980, e ela tá fazendo uma carne seca com abóbora, viro criança. Eu encontrei a Alcione e eu disse a ela: “você já sabe disso, mas eu queria te dizer. Você canta o lamento feminino”. Às vezes a mulher não tem como dizer, ela põe uma musica da Alcione.

AC/DC – “Back in Black”

“Na época do Falcão eu comecei a dar mais atenção pra umas paradas de rock, curtir Rage Against The Machine e já tinha gravado com Chorão. Colocaria nessa playlist “Back in Black”, do AC/DC, apesar de eles terem brigado com o Beastie Boys por causa do sample (risos)”.

Trick Daddy – “Let’s Go” (feat. Big D, Twista)

Antes da entrevista estava ouvindo Gerry Mulligan, sempre fui muito eclético. Quando fiz Monstrão (2013), eu não sei se já estavam chamando de trap (no Brasil), mas eu ouvia muito dirty south. Trick Daddy era um cara muito diferenciado pra época, o Twista e os beats mais redondinhos. Sempre achei que o BPM dobrado ia conseguir dialogar com funk, o boom bap não dava. O trap coube certinho, sempre fiquei imaginando que os beats rasteiros do dirty south cabiam ali. Hoje tem artistas de funk flutuando no trap e do trap flutuando no funk.

E hoje, como você finalizaria essa playlist?

Penso muito no Tim Maia, uma música chamada “Lábios de Mel” que não tem nas plataformas na voz dele. Não tem a ver necessariamente com a minha vida, mas hoje em dia estou um cara mais de boa, mais celebrando a vida do que batalhando por ela. Essa música do Tim Maia com a gata do lado ficaria muito bom.

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ARTISTA: MV Bill