Aaron Dessner, o acaso e a química do Big Red Machine

No embalo do ótimo “How Long Do You Think It’s Gonna Last?”, o músico conta como funciona a parceria com Justin Vernon e analisa os tantos encontros que redundaram no disco

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Fotos: Josh Goleman

A palavra inglesa serendipity, serendipidade em tradução para o português, é um termo que se refere a descobertas afortunadas feitas, aparentemente, por acaso. O projeto Big Red Machine é fruto dos elementos que permeiam essa ideia: perseverança, inteligência e senso de observação. Em 2008, os caminhos de Aaron Dessner (The National) e Justin Vernon (Bon Iver) se cruzaram no MySpace e, logo depois, Dessner convidou Vernon para participar do álbum Dark Was The Night. O trabalho, feito também com o Bryce Dessner, irmão de Aaron, teve seus lucros destinados a Red Hot, organização que se dedica à luta contra a AIDS. Do encontro surgiu um rascunho criado por Dessner chamado Big Red Machine, apelido do Cincinnati Reds, time de baseball campeão da world series no ano em que o músico nasceu. Dias depois, Vernon devolveu o rascunho com uma música pronta, que levava o mesmo nome – só que agora a interpretação do título falava mais sobre coração.

A amizade se fortaleceu durante 10 anos e, em 2018, veio o primeiro álbum da colaboração entre os músicos, que flerta com elementos eletrônicos e orbita mais no experimentalismo que o Bon Iver apresenta em algumas faixas de 22, A Million (2016). Há duas semanas o duo colocou na rua o confortante How Long Do You Think It’s Gonna Last?, álbum cheio de colaborações (e corações) que vão de Taylor Swift e Fleet Foxes a Sharon Van Etten, Anais Mitchell e Ben Howard. “Minha vida toda como músico tem sido colaborativa, eu cresci dividindo um quarto com meu irmão e estávamos sempre juntos tocando. Eu sinto que encontro o meu melhor quando toco com pessoas. Tem gente que diz que sou meio um ventríloquo, como se eu cantasse por meio de outras pessoas, fazendo música com ou através de pessoas, sabe? É o que eu curto fazer, é a coisa mais poderosa que tenho em mim: criar com pessoas. Se você voltar no tempo e ver experiências tipo o Dark Was The Night, é o jeito que eu trabalho”, nos conta Aaron Dessner, em entrevista ao Monkeybuzz.

Voltar à casa em que você cresceu e espiar, por uma porta semi aberta, lembranças felizes e até as adversidades que impulsionaram a jornada talvez seja a analogia mais pertinente sobre a experiência de ouvir esse álbum. A sensação de efemeridade, da face transitória da vida, como o título anuncia, nos acompanha ao longo das 15 faixas, entre resoluções emocionais que apontam saídas, seja na busca eterna pela cura ou na beleza de compartilhar fardos e alegrias com outras pessoas. “Ao ouvir o álbum, talvez você sinta que tenha muito de voltar à infância ou às experiências que você teve ao longo da vida, seja com depressão, traumas na família, lidando com a pandemia, seja o que for, mas procurando por significados no passado e soluções. Mas é esperançoso, acho que tem algo de terapêutico no álbum porque para mim fazer música é um processo terapêutico. Fazer música que pode ser ‘pesada’ e cheia de luz ao mesmo tempo, que vem de um lugar sombrio, mas é catártica ou alegre. Até mesmo o sentimento de fazer música com seus amigos é um processo alegre mesmo que o assunto seja triste. Isso fica claro na faixa ‘Hutch’ que é sobre meu amigo que se suicidou, mas no fim é uma faixa estranhamente celestial”, define Aaron.

“O importante da música é saber que quando você menos espera grandes coisas acontecem, é aí que coisas importantes ganham vida. Fazer música pelo simples fato de você amar fazer música, sabe? Acho que é quando você faz seu melhor trabalho é o oposto de sentar e falar ‘vamos fazer um álbum de hits’, não vai rolar, pelo menos não no meu caso. Na real, ficaria bem zoado. Acho que as melhores coisas que fiz foi quando eu não estava realmente pensando, ou quando me coloco na posição de tentar algo diferente, tentar com pessoas que você conheceu e deixar a química rolar  para ver o que pode sair disso. Esse projeto é sobre isso”, completa. Não apenas o novo álbum do BRM nasceu dos encontros despretensiosos, mas também folklore (2020), de Taylor Swift, que ganhou vida graças a um contato via DM durante a pandemia. Neste caso, a química funcionou tanto que o trabalho arrebatou o Grammy de Álbum do Ano.

“Minha vida toda como músico tem sido colaborativa, eu cresci dividindo um quarto com meu irmão e estávamos sempre juntos tocando. Eu sinto que encontro o meu melhor quando toco com pessoas. Tem gente que diz que sou meio um ventríloquo, como se eu cantasse por meio de outras pessoas, fazendo música com ou através de pessoas, sabe? É o que eu curto fazer, é a coisa mais poderosa que tenho em mim: criar com pessoas”

O Long Pond Studio, estúdio construído por Dessner, funcionou como incubadora do novo trabalho, e, além de Taylor, Robin Pecknold passou por lá para começar Shore, mais recente disco do Fleet Foxes. Da mesma forma que HLDYTIGL, Shore também fala de companheirismo, honrar amigos e músicos e celebrar a vida. Aqui, Robin aparece na estonteante “Phoenix”. “A música que Robin faz é muito bonita e muito inspiradora – o processo criativo, a presença. Acho que ele teve grande influência no álbum. Essas músicas tem aquele sentimento de aquecer a alma que é uma coisa da música dele e acredito que eu tenha trazido isso para outras músicas. Fazer parte de uma comunidade e ser aberto ao que outras pessoas tem para oferecer é uma parte importante do processo. Penso que para ele foi legal se juntar com a gente e cantar com o Justin, coisa que eles ainda não tinham feito e sei que foi especial pro Justin. Foi um sentimento muito bom”, reflete Aaron.

Durante a audição algumas músicas saltam aos ouvidos por serem tão diretas em letra e intenção, como é o caso de “Brycie”, faixa que Aaron escreveu para seu irmão gêmeo e parceiro no The National. “Ele (Bryce) ficou muito comovido com isso. A gente se ama, claro, mas se você está com a gente pode ficar na dúvida se a gente se gosta, porque não falamos muito, na real nem precisamos, sabe? Tem até uma parte da música que fala You know my thoughts before I know, e é tipo esse profundo centro de gravidade de coisas não faladas que a gente tem, mas é uma coisa especial. Eu estava pensando que não existem muitas músicas feitas para irmãos ou irmãs, agradecendo seu irmão por ter te tirado de momentos sombrios. É uma coisa bem sentimental, mas eu sou sentimental, então tá tudo bem. Essa música me lembra de focar nas boas memórias, bons sentimentos. É uma música agradecendo meu irmão por ter me salvado várias vezes e me manter vivo”. O trabalho é, sim, fruto da parceria entre dois músicos e inúmeras colaborações, mas é Dessner que assume um maior destaque seja produzindo, escrevendo ou cantando – e assume muito bem essa posição. Como mostra na balada-elliott-smithiana “Ghost Of Cincinnati”.

“Acho que tem algo de terapêutico no álbum”

“Essa música soa como eu toco um violão acústico. Se você ouvir ‘Slow Show’, do The National, antes dos outros instrumentos entrarem… E mesmo depois que entram, você continua ouvindo o mesmo ritmo. Eu sigo assim até o fim, e em ‘Ghost Of Cincinnati’ é meio isso. Eu não consegui tornar em uma música para banda tocar, sabe? Ao invés disso ficou só eu e o violão. A Taylor, o Justin e outras pessoas disseram, ‘Não, é isso. Tá bonito assim’ e é muito significativo e especial para mim, mas não foi uma coisa que eu pensei muito antes”.

Com tantas participações, encontros e acasos bem utilizados, pergunto se houve algum momento que tenha lhe colocado um sorriso especial no rosto, daqueles que Dessner vai se lembrar sempre com carinho “Nossa, tem tantos momentos. Mas acho que quando o Robin mandou ‘Phoenix’, eu e o Justin ficamos tipo ‘wow’ ouvindo aquilo saindo do autofalante, foi um momento tipo ‘ok, isso é legal, com certeza tem algo aqui’, foi um sentimento maravilhoso. O Ben Howard, eu produzi o álbum dele, ele estava aqui no estúdio e acabou me ouvindo trabalhando na música ‘June’s a River’ e perguntou se poderia cantar algo. Ele sentou na frente do microfone e cantou toda a música em um único take e nunca fez de novo, foi bem especial. Esses tipos de coisas me lembram de por que faço música, o por que eu comecei a fazer música lá atrás, esses são os momentos que o acaso e a química se juntam e é ‘wow, ok, é isso'”.

Em entrevistas, Aaron comentou que o espírito que ele queria trazer ao trabalho seria algo como o The Last Waltz, icônico último show do The Band em 1976, com participações de Joni Mitchell, Van Morrison, Neil Young e Bob Dylan – e eternizado em filme por Martin Scorsese. A faixa “Phoenix”, segundo o músico, talvez seja o melhor exemplo da essência celebratória que o álbum encarna e que tem Robin, grande fã da música brasileira, como peça fundamental. E não é lá um grande esforço traçar paralelos entre nossos tantos sons e HLDYTIGL. O aspecto solar e quente, talvez. Ou a força de uma dupla plenamente sintonizada, como Milton & Lô ou Caetano & Gil. Falo então para ele sobre Clube da Esquina e Tropicália. “Até conheço bastante de música brasileira, mas não conheço esses álbuns quero ouvir. Ao longo dos anos, absorvi muito de música brasileira, acho que no jeito com que eu toco menos em termo de harmonias e mais no jeito de dedilhar. Tem algumas músicas do The National que são tiradas diretamente do jeito do Caetano Veloso tocar. Se você ouvir ‘Wasp Nest’, é literalmente uma coisa do Caetano que eu experimentei. Mas é engraçado porque tocamos no Brasil várias vezes, mas sinto que não fizemos o suficiente. Estávamos para ir, mas a pandemia enrolou tudo”.

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