Adorável Clichê: entre o conforto e a melancolia da nostalgia

Segundo álbum da banda blumenauense, “sonhos que nunca morrem”, contrasta peso e contemplação, mesclando sintetizadores e o peso das guitarras

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Fotos: Jean Affeld

Rodeado de expectativa, sonhos que nunca morrem, segundo e mais recente álbum da Adorável Clichê (lançado pela Balaclava Records), expande a introspecção explosiva que marca o dream pop/shoegaze da banda blumenauense. “Vejo como uma evolução, no sentido de ser uma coisa nova, mas com a energia daquela época. Porém, muita coisa mudou”, introduz a vocalista Gabrielle Philippi. Dentro dessa “muita coisa”, além das consequências da pandemia, outras mudanças importantes moldaram o período que sucedeu O Que Existe Dentro de Mim (2018). A mais significativa delas foi a saída do então baterista Diogo Leal. “Sem o baterista, mudou muito a dinâmica de criação das músicas. Acabamos fazendo as músicas aqui em casa, na frente do computador, o que não costumávamos fazer, era mais no ensaio”, contextualiza o guitarrista e produtor Marlon Lopes. Na nova configuração, a composição teve um ritmo de elaboração mais distante da dinâmica ao vivo. “Eu comecei a compor mais longe dos garotos, no quarto do Marlon — que é o nosso estúdio. No outro álbum nós escrevíamos nos ensaios, então tudo saía mais rápido, mais orgânico”, adiciona Gabrielle.

Em meio às mudanças, o processo de desenvolvimento de sonhos que nunca morrem foi resultado das possibilidades exploradas em singles lançados de forma ‘solta’ pelo quarteto — completo pelo guitarrista Felipe Protski e o baixista Gabriel Geisler. Foram sete singles lançados pela banda entre 2020 e 2023, como “Cadência”, “Papel de Trouxa” e “Gelo Fino”, que mostraram um lado mais ambiente e contemplativo da estética alternativa do grupo. Apesar de manter a liga criativa ativa, os singles se tornaram uma ponte para as ideias cristalizadas no segundo álbum, e não necessariamente parte dele. “Me coloquei na perspectiva do público. Estávamos esse tempo todo sem um álbum novo, daí quando lançamos ele é cheio de músicas que já foram lançadas? Eu, como fã, ficaria chateado. Por isso, queríamos trazer coisas inéditas”, reflete Marlon. O intervalo de seis anos entre os discos colocou a Adorável Clichê, mesmo em meio a contratempos, foi fundamental para que ideias se solidificassem. “Diferente do primeiro, nesse, acabamos pensando mais no que estávamos fazendo”, complementa Gab.

O dilema do segundo álbum – romper ou seguir a caminhada dos primeiros passos? – pode ser um cenário desafiador para algumas bandas, especialmente quando um espaço de tempo considerável expande as possibilidades e, na mesma proporção, as expectativas. Com a Adorável Clichê, o ímpeto criativo não surgiu dessa relação, mesmo que naturalmente ela traga reflexões sobre os trabalhos. “Quando pegamos para fazer esse álbum (sonhos…), eu estava querendo fazer muita coisa de guitarra, colocá-la numa posição central. Não em volume, mas em composição e arranjo. Nesse sentido, entendo ele como uma evolução do primeiro”, elabora o guitarrista.

Ao longo de 34 minutos de música, sonhos que nunca morrem traz diferentes timbres que definem os trejeitos do elo que junta rock alternativo, dream pop e shoegaze. Entre a reverberação e a densidade, o peso ganha contornos e características descritivas mais ligadas à dinâmica do andamento das músicas. Mesmo que escolhidas a partir de técnicas específicas, o resultado é um prisma de distorção, com aplicações estruturais no peso denso e vaporizado do álbum.

“Eu compus e gravei quase todas as guitarras. E foi um processo de ir adicionando ferramentas para diferenciar a parte mais limpa da mais pesada — com crunch, big muff, dois ampli em linha e etc. Isso mirando em como direcionar e ter mais ataque, mais mega-agudos”, explica Marlon.

“Ao compor, você nunca está só triste ou feliz. Várias coisas formam esses sentimentos e emoções. Adoro o clichê de músicas melancólicas com clipes e sonoridades felizes. Enriquece a experiência de se relacionar com arte. Ao mesmo tempo, ir para um extremo é impactante, requer propriedade, um repertório muito acurado” – Gab

As faces da nostalgia

Se o som potencializa as origens noventistas da banda, as letras ecoam a inquietude e o descontentamento geracional do indie rock da virada do milênio. Partindo das ‘etiquetas’, título e capa, o álbum conversa com o sentimento relacionável de revisitar tempos mais simples, em contraste com as responsabilidades do presente. Na arte de capa, a vocalista Gabrielle, fotografada pelo pai durante a manhã, antes de ir para escola, remete tematicamente ao otimismo que permeia o título. O outro lado da moeda é lidar com a passagem de tempo. A faixa que abre o álbum, “como era antes”, introduz as implicações emocionais que marcam o início da vida adulta, entre o conforto e a melancolia. “Compor me ajuda a processar esses sentimentos. Ajuda a botar para fora pensamentos mais obsessivos, a entender como me sinto sobre eles e também como digerir e seguir em frente”, infere Gab, compositora da banda.

A carga emocional dos conflitos internos do amadurecimento é inserida no álbum através dos relacionamentos, confissões e despedidas trazidas nas letras de músicas como “um sorriso que se vai” e “as coisas mudam para melhor”. Mesmo com uma concepção pessoal, as canções ganham novas perspectivas quando expostas. “Cada um reage e vê de uma forma. Acho que tem mais a ver com o background de cada um. O sentimento geral das nossas músicas é sim uma melancolia, mas cada pessoa entende isso de uma forma diferente”, complementa Marlon.

A carga emocional dos conflitos internos do amadurecimento é inserida no álbum através dos relacionamentos, confissões e despedidas trazidas nas letras de músicas como “um sorriso que se vai” e “as coisas mudam para melhor”. Mesmo com uma concepção pessoal, as canções ganham novas perspectivas quando expostas. “Cada um reage e vê de uma forma. Acho que tem mais a ver com o background de cada um. O sentimento geral das nossas músicas é sim uma melancolia, mas cada pessoa entende isso de uma forma diferente”, complementa Marlon.

Longe de ser uma reprodução do estereótipo de ‘música triste’, o indie rock distorcido da banda é preenchido com a autoconsciência sufocante de lidar com o medo e o sentimento de falta. “Eu não gosto de fazer música que é só triste. Até porque isso limitaria muito, né?”, comenta Gab. Dessa forma, mais do que estados emocionais, músicas como “medo” e “as coisas mudam para melhor” trazem a tristeza mais como possibilidade descritiva do que como fator determinante do som da banda. “Ao compor, você nunca está só triste, ou só feliz. Várias coisas envolvem e formam esses sentimentos e emoções. Por isso, eu adoro o clichê de músicas melancólicas com clipes e sonoridades felizes. Acho que enriquece muito a experiência de se relacionar com arte. Ao mesmo tempo, ir para um extremo é algo impactante, requer propriedade, um repertório muito acurado”, comenta a vocalista.

“O Beach House foi uma referência para os synths. Tenho um synth que chamo de dream house, que aparece em ‘devagar’ e ‘como era antes’. Mas, de modo geral, trazer o mesmo timbre e repetições nos sintetizadores em diferentes músicas foi para criar uma conexão de fundo entre elas” – Marlon

Referências como caminho, não destino

Ao se aproximar e trocar com a obscuridade onírica que marca álbuns clássicos dos anos 1990 como Souvlaki (Slowdive, 1993) e Nowhere (Ride, 1990), o quarteto catarinense traz em seu segundo álbum um redirecionamento que bebe da reinvenção proposta por bandas como DIIV e Wild Nothing. Ao invés de se fechar ao que é lido como dream pop ou shoegaze, ou os dois, sonhos que nunca morrem conversa com outras facetas da junção do rock alternativo com o pop, mediado pela música eletrônica. “Algumas referências direcionaram, não conscientemente, mas de forma comparativa. O New Order foi uma referência não no sentido de que queríamos fazer algo igual, mas que através do nosso caminho, chegamos a algo parecido. Muitas bandas são influenciadas por New Order, e consequentemente isso chega na gente”, reflete o guitarrista e produtor da banda, Marlon Lopes.

O processo de arranjo e produção das músicas do disco foi tocado por Marlon, que escreveu boa parte das linhas de guitarra, e mixou todo o material em seu estúdio caseiro. Processo igual ao do primeiro álbum, mas com novas ferramentas, e consequentemente, possibilidades que otimizaram as texturas idealizadas. “Eu usei muito delay de fita, modulações do space echo. Mas o que trouxe diferença na hora de produzir foi ter equipamentos mesmo. No outro álbum, eu mixei num fone de ouvido. De resto, foi até que igual, no mesmo lugar, mesmo armário”, explica o guitarrista e produtor.

“Valorizo muito quando a música te faz perceber algo que está dentro de você. Quando desperta algo que você não estava entendendo sobre a sua vida” – Gab

Entre as nove músicas que formam a tracklist do trabalho, mesmo com o protagonismo das paredes de guitarra, o sintetizador molda a vaporização reverberada das melodias. Se em momentos como “amarga” as guitarras têm um peso mais ‘triturado’, com uma chuva de distorção, o sintetizador condensa e desenha o ataque dos riffs como pano de fundo primitivo. “Por exemplo, em ‘um sorriso que se vai’ eu usei o que achei que funcionaria. Que era trazer o synth como desenho de uma forma para a entrada da guitarra. Em “as coisas mudam para melhor”, a parte de synth era algo que eu estava trabalhando em algumas jams e que fez muito sentido quando transposta para essa música”, ilustra o guitarrista.

No caso das teclas, ter um referencial específico trouxe clareza sobre a função do sintetizador para cada música. Se os vocais de Gabrielle lembram a introspecção ecoante de Victoria Legrand, os sintetizadores acompanham a ambientação cósmica. “Conscientemente, o Beach House foi uma referência para os synths do álbum. Eu tenho um synth que chamo de dream house, que aparece em ‘devagar’, como arpejo, e em ‘como era antes’. Mas de modo geral, trazer o mesmo timbre e repetições nos sintetizadores em diferentes músicas foi para criar uma conexão de fundo entre elas”, destaca Marlon.

Mesmo partindo de temáticas e sonoridades esteticamente consolidadas, em sonhos que nunca morrem a banda amplia perspectivas sobre como olhar para os próprios sentimentos. “Gosto de deixar espaço para a experiência pessoal de cada um. Valorizo muito quando a música te faz perceber algo que está dentro de você. Quando desperta algo que você não estava entendendo sobre a sua vida”, conclui Gab.

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