Afinal de Contas, Quem é Lewis?

Dois discos dos anos 1980 e um mistério musical em pleno 2014

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É mais uma tarde fria em Montreal, Canadá e o homem na casa dos sessenta anos de idade está saboreando um copo de café bem quente. Seu pensamento está solto, acompanhando carros e pedestres que se alternam em seu raio de visão. Até que dois sujeitos se aproximam do bebedor de café. A princípio, distraído que está, ele nem nota a chegada dos estranhos, mas estes o abordam respeitosamente. Falam alguma coisa sobre gravadora, discos e tal. O homem não entende, mas percebe uma luz acendendo em sua mente, bem no meio daquele setor que já não se ilumina há um bom tempo. Aos poucos ele vai se tornando presente na conversa e percebe que os sujeitos já estão falando com mais cadência, identifica as palavras “royalties”, “relançamento”, “disco”. Esta última acende uma Broadway na mente do sujeito, que, finalmente presta a atenção necessária. Os dois rapazes são donos de uma gravadora independente, a Light In The Attic, e dizem que encontraram o velho depois de um bom tempo consumido entre cidades como Los Angeles e Honolulu. Finalmente estavam ali, haviam encontrado quem buscavam. E o chamam pelo nome: Randall.

Esta cena, devidamente romanceada pelos arroubos literários do articulista é bem próxima do que realmente aconteceu em algum momento do primeiro semestre deste ano, quando executivos da Light In The Attic encontraram o autor de dois álbuns lançados no início dos anos 1980. Seu nome: Randall Wulff, mas que costumava assinar como o misterioso Lewis. Só isso, sem prenome, sem sobrenome, apenas Lewis. As capas dos tais álbuns não deixava espaço para dúvidas: Lewis era o autor das duas bolachas, chamadas L’Amour, lançada em 1983 e Romantic Times, de 1985. Ambas gravadas em Los Angeles e prensadas com recursos próprios, não se sabe com que intenção mas com cuidados e apuros na concepção sonora e produção. O som que vem dos álbuns é bem diferente do Pop comercial que se praticava na época, tampouco tangencia cenas nascentes como New Wave, Hard Rock ou o Hip Hop. O que se ouve é uma intrincada cama de sintetizadores e pianos, com ocasionais violões e guitarras acústicas dedilhadas. Como uma assombração gentil, a voz de Lewis paira pelo ambiente murmurando frases, versos e palavras às vezes ininteligíveis, mas tudo parece fazer sentido, se parecer com algum lado-B experimental de gente como Bryan Ferry ou Talk Talk. E é tudo bem bonito.

Essa foi a impressão de nerds musicais garimpeiros que deram com um exemplar de L’Amour numa feira de discos no Canadá. Ouviram, gostaram e o álbum virou objeto de culto. Aos poucos, com a facilidade das cópias digitais, o conteúdo do disco chegou aos ouvidos do pessoal da Light In The Attic, que foi atrás da história por trás de L’Amour. Descobriram que a foto da capa havia sido tirada por Ed Culver, um fotógrafo de Los Angeles que informou que Lewis havia contratado seus serviços para as capas dos dois álbuns. Na primeira, há um close do rosto do galã, com tons de cinza e branco, enfraquencendo os contornos e apontando para uma impressão acrílica de limpeza e monotonia. De alguma forma há uma total ressonância entre capa e música, que se equivalem e completam. Para a foto de Romantic Times, que só seria descoberto no meio deste ano, num porão de um armazém em Montreal, Lewis aparece com um elegante (mas canastríssimo) terno branco, cercado por um automóvel Mercedes e um jatinho executivo, ambos igualmente brancos, apontando para uma preferência do misterioso cantor pela tonalidade mais clara.

Enquanto empreendia a busca pelo misterioso personagem, a Light In The Attic lançava L’Amour em CD remasterizado em maio deste ano. A recepção da crítica foi entusiasmada, uma vez que já havia certo hype em torno do mistério sobre os discos. Cinco meses depois foi colocada à venda uma versão equivalente do segundo trabalho, que ainda é mais sutil que o antecessor, com um clima pastoral/synth quase ambiente. Como fio condutor está a voz sussurrada em algum idioma próprio, mostrando alguma vida por sobre as tonalidades e nuances de branco que tomam conta de todo o resto. Tudo corria bem até que os detetivões encontraram Randall tomando o café, lá no nosso primeiro parágrafo. As conversas foram amistosas, ele, de branco, para variar, ouviu com atenção o relato dos executivos e abriu mão de qualquer royalty pelo lançamento das versões em CD de seus trabalhos. Disse estar surpreso com o interesse por aqueles álbuns depois de trinta anos e que já não pensava mais neles. Pelo menos, não com essas intenções. Os executivos insistiram, mostraram um cheque assinado para o sujeito que, gentilmente, recusou a oferta. Até disse que está compondo novas canções mas que não tem qualquer ideia do que vai fazer com elas e em quanto tempo. Por conta da reação de Randall/Lewis, os donos da Light In The Attic decidiram não mais prensar os dois discos, restringindo os exemplares disponíveis às primeiras tiragens. “Não achamos justo faturar com o trabalho de Lewis enquanto ele abre mão de sua parte”, dizem os executivos, com razão.

A questão em torno do mistério de Lewis é um dos destaques da construção da memória musical neste ano. Mostra como é possível reinterpretar artefatos artísticos e entendê-los de forma distinta da que havia quando foram criados, além de permitir a reavaliação de dados e fatos, que levam ao real conhecimento e à compreensão de um lugar ou sociedade. No caso de Lewis, é possível entender que ele deve ter feito seus discos de forma inconsequente e que talvez almejasse sucesso rápido ou apenas expressar seus sentimentos diante de alguém ou não. O que nos interessa – a música – está muito bem representada nos dois trabalhos. Se você gosta de sintetizadores mas acha que eles são bem melhores criando batistas e climas para música dançante, Lewis vai te mostrar que há como deixá-los leves como penas que flutuam ao vento. E você vai gostar

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ARTISTA: Lewis
MARCADORES: Redescobertas

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.