Afrofuturismo e a coragem de abraçar o caos

Organizamos 12 discos essenciais para entender e apreciar o movimento trilhando um caminho paralelo à jornada do herói

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Capturado por aliens, você é levado para outro planeta. Lá, você será mão-de-obra em trabalhos compulsórios. Você tem certeza que, se descrevesse seu dia a dia para qualquer outro humano, eles validariam a sua dor, entederiam seu sofrimento e considerariam os tais aliens absolutamente desumanos. Mas, nesse momento, ninguém te ouve. Sua vida, longe dos seus ancestrais, língua e cultura, longe dos seus próprios, é uma vida à deriva, à espera da nunca presente nave-mãe. Como você se sentiria?

Entre eu e o outro mundo existe sempre uma pergunta não dita: por uns, verem-me frágil; por outros, pela dificuldade de verbalizá-la. Todos, sem exceção, gravitacionam em torno dela. Eles se aproximam de mim de forma meio hesitante, olham-me curiosa ou piedosamente, e então, em vez de dizerem diretamente, Como se sentem sendo um problema?, eles dizem, Eu conheço um excelente homem de cor da minha cidade; ou, Eu lutei em Mechanicsville; ou, Essas ofensas sulistas não fazem seu sangue ferver? Para esses eu sorrio, ou finjo interesse, ou amenizo o fervor, conforme a situação exigir. Para a real pergunta, Como se sente sendo um problema?, eu raramente dou uma resposta.

O trecho acima é do livro As Almas da Gente Negra (1903), do W. E. B. Du Bois, sociólogo, historiador e ativista. Por mais bizarro que seja espelhar o processo da diáspora africana e escravidão a uma invasão alienígena, não é ainda mais bizarro o fato de que o excerto acima não faz parte dessa suposta ficção, mas sim de uma verdade cruel e inacreditável? As Almas da Gente Negra é um livro de sociologia. Uma pesquisa sobre o real, sobre maneiras de existir no mundo. O afrofuturismo é como uma proposta de afastamento dessa realidade para a criação de um mundo em que “o jogo virou”. Assim, tudo nele é hipérbole. Ainda mais quando se assume que, em um sistema estrutural de racismo, a perspectiva negra é per se uma forma surrealista de compreender a vida.

O movimento tem sido mais difundido na contemporaneidade por nomes como Janelle Monáe e George Clinton, mas ele, na verdade, teve sua introdução ao mundo da música no final dos anos 1950 e começo dos 1960. O responsável por esse abre-alas é a controversa figura do Jazz Sun Ra, mas o afrofuturismo não limita ao gênero a que seu pioneiro se dedicava. Tanto é que a maioria dos discos listados aqui datam da década de 1970. Provavelmente, porque é a partir dali que surgem os primeiros sintetizadores polifônicos, o que pode ter influenciado organicamente a produção e experimentação criativa dentro dessa estética. Para selecionar os álbuns abaixo, atravessei um mosaico de mentes brilhantes ancoradas em suas tristezas. Ouvi a ousadia de quem estava/está verdadeiramente mil anos à frente, ou… só pode ser de outro planeta. No fim das contas, o afrofuturismo é também um convite para uma viagem que, em certos momentos, é perturbadora, mas que, ao mesmo tempo, oferece a possibilidade avassaladora e corajosa de abraçar o caos. Faça as malas, estamos partindo…

O MUNDO COMUM

Aquemini (1998), OutKast

O primeiro passo da jornada do herói é a apresentação do universo, o mundo mágico em que a aventura acontece. Assim, o icônico álbum do OutKast parece ser a escolha perfeita. Principalmente por sua capacidade de ornar com maestria o Soul, o Funk e o Hip Hop. Seguindo a estética afrofuturista de seu antecessor (ATLiens [1996]), Aquemini se assume como um retrato da experiência negra na faixa que dá título ao disco. “Aquemini é mais uma experiência negra do OutKast, ok / Até o sol de põe. Heróis eventualmente morrem / Horóscopos geralmente mentem e às vezes “por que?” / Nada é garantido, nada é certeza e nada dura para sempre”, traduz-se de alguns de seus versos. O destaque fica por conta de “SpottieOttieDopaliscious” – seus inesquecíveis instrumentos de sopros serviram como sample em “All Night”, faixa do Lemonade (2016) de Beyoncé – “Rosa Parks” e para a mais avant-garde entre as selecionadas “Synthesizer” com vocais de George Clinton. De qualquer forma, ainda assim, um disco te ganha desde os sussurros hipnóticos de “Hold On, Be Strong” e até a guitarra de “Chonkyfire”.

CHAMADO À AVENTURA

Pathways to Unknown Worlds (1975), Sun Ra

Para além dos 23 anos que separam este disco de Aquemini, os dois projetos, evidentemente, são bons representantes de dois pontos importantes da linha do tempo do afrofuturismo. Enquanto o LP do OutKast mergulha no Hip Hop, o Jazz de Sun Ra funciona como a base em que registros como Aquemini vão se apoiar. Apesar da distância temporal, o OutKast não deixou de reverenciar o antecessor. Nesse sentido, vale notar as referências ao antigo Egito na capa do álbum de 1998. Mas, voltando a Pathways to Unknown Worlds trata-se de um disco primordial para entender a contribuição (e a desconstrução) proposta por Sun Ra no Jazz. Por diversão, vale a pena dar o play em qualquer faixa do LP e tentar contar o tempo… É quase impossível. Os temas variam entre cosmologia, pseudociências e espiritualidade. A Arkestra – orquestra dirigida pelo artista desde os anos 1950 –, aliás, continua se apresentando com um repertório formado por uma seleção da vasta obra de Sun Ra. Lembrando que a pluralidade instrumental e os vocais caóticos não foram são as únicas ferramentas usadas aqui. Em PUW, entra em cena o sintetizador Moog que proporcionou um salto nas possibilidades de combinações entre órgão e teclado elétrico. Para checar se Sun Ra é mesmo do Alabama, nos Estados Unidos e não de Saturno, ouça de olhos fechados “Intrinsic Energies” e “Of Mythic World”.

BARGANHA

Atomic Bomb (1978), William Onyeabor

Teoricamente, o terceiro passo na jornada do herói é a recusa ao chamado à aventura. Mas, se a negação fosse a palavra final, morria o resto da história (e da matéria). Então, ficamos com a “barganha”: o momento da reconquista. Sun Ra não é simples e desafia o ouvido de qualquer um que se debruçar sobre sua obra. Levando o caminho até aqui em consideração, vamos de William Onyeabor, diretamente da Nigéria, pai do Electro Afro-Funk. Influenciado por Fela Kuti, o artista foi capaz de encontrar uma linguagem única que, em seu caldeirão, mistura Reggae, Disco e R&B norte-americano. É o fundamento do que será o Funk nigeriano – tudo sob uma ótica futurista, com intervenções sonoras espaciais, quase lúdicas. Fascinado por sintetizadores e drum machines, o músico teve sua formação no piano e no órgão, desde muito criança já se dedicava às teclas. No começo dos anos 1970, durante a Guerra Civil Nigeriana – causada pela tentativa de separação das províncias do Sudeste do país (Biafra) –, ele foi estudar cinema da Rússia. Ao voltar, construiu sob seu próprio selo (Wilifilms Label) um legado de oito álbuns. O segundo é Atomic Bomb que sai em 1978, época em que o Yo-Pop e o Reggae nigeriano eram os gêneros mais influentes no país. Não à toa, o disco reflete o fervilhar desses ritmos. Os melhores momentos ficam a cargo de baladas românticas como “I Need You All Life”, a faixa que dá título ao LP e “Better Change Your Mind” com sua letra política: “América / Você pensa que o mundo é seu? / E você, Rússia? / Você pensa que o mundo é seu? / Você, China? / Você pensa que o mundo é seu? / Se vocês estão pensando isso, meus amigos, melhor mudar de ideia”, traduz-se.

ENCONTRO COM O MENTOR

The Shape of Jazz to Come (1959), Ornette Coleman

É preciso dizer que o afrofuturismo nunca dependeu dos sintetizadores para existir. Prova disso é que, lá em 1959, um homem de vanguarda já estava lançando The Shape of Jazz to Come, traduzindo, “O Tipo de Jazz do Futuro”. Foi exatamente o que aconteceu. Anos depois, Sun Ra se apoiaria na sonoridade aqui desbravada para criar suas insanidades estilísticas. Com esse trabalho, Ornette Coleman mudou o que se entende por Jazz. Ele tirou o piano de cena e desistiu das composições pré-determinadas de modo que ele e Don Cherry, seu parceiro musical, ganhavam muito mais espaço para seus solos 100% livres. Existe uma sinergia total no disco: parece que todos os instrumentos seguem as deixas de Coleman. “Lonely Woman” – sampleada em “U-Informe” do Black Alien (Babylon By Gus Vol. 1 [2004]) – está entre as melhores do LP. Ela senta ao lado de “Eventually” e “Congeniality”. Também merece atenção “Focus on Sanity” que, não por menos, é a mais melancólica do registro. Ornette Coleman é o Jazz em seu brilho rebelde, mais sofisticado que nunca. Radical e fiel à sua própria concepção musical, ele ganhou fãs leais e críticos de uma vida inteira. Com uma riquíssima produção entre 1959 e 1961, o artista passou, na sequência, por um hiato de uma década. Em 2006, de quebra, lançou Sound Grammar que ainda rendeu um Pulitzer.

TRAVESSIA DO PRIMEIRO LIMIAR

Why Black Man Dey Suffer (1971), Fela Kuti

Depois de adquirir conhecimento com o mestre, chegamos no ponto em que não há mais volta. Uma vez atravessado o primeiro limiar, a aventura é uma realidade incontornável. Fora do mundo clássico de Coleman, e ainda muito antes de um Aquemini, longe da Arkestra e contemporâneo a William Onyeabor, emerge uma mente pioneira – tanto para música quanto para os direitos humanos. Senhoras e senhores, eis Fela Kuti. Nigeriano, em 1958 foi para Londres estudar música aos 20 anos de idade. Para fazer isso, mentiu para os pais dizendo que ia fazer medicina. Cinco anos depois, retornou trazendo para o país um híbrido musical. A mise en scène de Fela Kuti tem a percussão africana permeada pelas referências vocais de James Brown. O álbum Why Black Man Dey Suffer foi gravado dois anos depois que ele entrou em contato com Malcom X e a militância dos Panteras Negras. Assim, sua música tornou-se decididamente política e combativa. O LP em questão conta somente com duas faixas – cada uma com aproximadamente 15 minutos – recheadas de líricas que oscilam entre inglês e língua falada da Nigéria. As letras chegam ácidas, melancólicas e profundamente transformadoras como “Alguns povos vêm de longe / Eles lutam conosco e tomam nossa terra / Eles tomam nosso povo e estragam nossas cidades (…) Eles tomam nossa cultura de nós / Eles nos dão uma cultura que não entendemos / Pessoas negras, nós não nos conhecemos / Nós não conhecemos nossa ancestralidade / Nós nunca estamos juntos, nós nunca estamos juntos de alguma forma / É por isso que o povo negro, ele sofre hoje”, traduzindo. E mais dois fatos curiosos sobre Kuti: o primeiro é que, assim como Alice Coltrane, ele mudou seu nome do meio. Abandonou Randsome (que é um nome escravo) e adotou Anikulapo, que significa “aquele que carrega a morte no bolso”. O segundo é que, em 1979, durante seu exílio em Gana, ele mudou o nome da sua banda de Africa 70 para Egypt 80. Talvez, todos esses artistas retornam, de alguma forma, para o Egito – uma vez que, dentre as civilizações da Antiguidade, ela a única em território africano. De qualquer forma, Fela Kuti e seu trabalho funcionam quase como uma convocação para a luta. As percussões ornam perfeitamente com suas poderosas letras e toda a angústia resignada causada pelo racismo é verbalizada com uma interpretação quase teatral. Kuti é um artista para se descobrir cada vez mais: com duas décadas de produção, todo disco dele é um desafio e uma entrega (sozinhos, um resumo da jornada do herói).

TESTES, ALIADOS E AMIGOS

Mothership Connection (1975), Parliament

Chegamos ao auge do Funk: os anos 1970. A cultura do ácido ainda viva e as performances mais malucas de todos os tempos acontecendo a torto e a direito. Extremamente cativante, o álbum de quase 40 minutos é garantia de pistas lotadas. Psicodélico e ousado, essa é uma das obras primas de George Clinton, a mente por trás do Parliament e do Funkadelic – que são o mesmo coletivo de músicos, com propostas semelhantes, mas com duas discografias separadas. É sobre o Funk que o Parliament se debruça: namoram a estética política da ficção científica e abusam da inovação tecnológica dos sintetizadores sem deixar James Brown e Sly Stone para trás. As apresentações da banda eram megalomaníacas: muitas pessoas no palco, figurino extravagante e até simulações de uma suposta invasão alienígena já pintaram pelo palco do grupo. Aliás, antes de seguir em frente, um recado da música que abre o Mothership Connection: “Boa noite / Não quero mudar a sua rádio, não há nada errado / Tomamos o controle para te trazer um show especial / Voltaremos com a programação normal assim que você estiver vibrando” – eis aqui um exemplo do deslocamento da realidade que torna o álbum contemporâneo. Ouça “Mothership Connection (Star Child)” e “Give Up The Funk (Tear The Roof Off The Sucker)”.

O FUNDO DO POÇO

Ptah, The El Daoud (1970), Alice Coltrane

Estamos de volta ao Egito. No entanto, o guia da viagem, desta vez, é a brilhante Alice Coltrane. A compositora, pianista e harpista (de nome espiritual Turiyasangitananda, começou a brincar no órgão da igreja local ainda pequena e, coincidentemente ou não, dedicou toda a sua pesquisa e obras à busca por espiritualidade. Ptah, The El Daoud foi lançado três anos após a morte de seu companheiro e esposo John Coltrane, dois anos após o assassinato de Martin Luther King Jr. e cinco anos depois do assassinato de Malcom X. É daqueles que se faz para que a tristeza não te engula. Foi um dos primeiros álbuns de sua carreira sem John, uma vez que ela foi parte das bandas dele desde que se casaram, em 1965. É difícil falar de Alice sem mencionar seu marido. Quando ele morreu, ela tinha apenas 29 anos e a missão cruel de criar os quatro filhos, todos menores de dez anos. A harpa, reconhecidamente um instrumento em que ela inscreve seu estilo, foi um presente de John. Quando a encomenda chegou, ele já tinha perdido a luta contra o câncer no fígado. O disco, então, é uma experiência catártica. O nome, por isso, do egípcio, quer dizer “Ptah, o deus amado”. Trata-se de um deus criador e, dependendo da literatura, é considerado também um filho de Ra (o deus Sol [entendeu o Sun Ra, agora?]) ou ele mesmo o responsável por criar Ra. De qualquer forma, um deus ligado a concretização, ao poder da concepção. Em entrevista à NPR, Alice fala sobre como ela e John tinham a meditação como uma prática diária e como, com ela, buscavam a elevação da consciência. Toda sua obra, depois da morte do marido, girou em torno de ideias complexas do mundo oculto. Ptah, The El Daoud é, assim, uma combinação de duas excelências: a base impecável da música clássica que sustenta uma dissertação emocional a respeito do sentimento universal do luto. Para além da faixa que dá título ao disco, ouça também “Blue Nile”.

PROVOCAÇÃO

Danger (1976), The Lijadu Sisters

Para sair do fundo do poço, é preciso encarar a realidade da escalada. Mesmo com a tristeza batendo à porta, com o luto presente e recente, com o peso do racismo, é preciso manter os olhos abertos. Há mentiras sendo ditas sobre pessoas negras a todo o tempo. Desde muito tempo. Mentiras construídas no derrame das lágrimas, no verter do sangue, mentiras que ainda hoje encarceram e matam. Não podemos mais ouvi-las e permitir-nos a escolha mais fácil, a omissão. As irmãs gêmeas nigerianas Taiwo e Kehinde, conhecida como The Lijadu Sisters, não caem mais nessa armadilha: estão sempre acordadas. Junto com William Oryeabor, a dupla fez muito sucesso durante os anos 1970 e trouxeram aos Estados Unidos intervenções do Pop nas construções de Funk e Afro-beat. As duas vozes se harmonizam para cativar e envolver e Danger (o primeiro dos cinco discos que produziram) é um belo exemplo disso. O highlight fica para “Lord Have Mercy” – que não escapa ao sentimento de solidão pungente, com linhas sensíveis e o som de ondas quebrando no mar. Destaque também para “Amebo” que tem um belíssimo solo de guitarra e a própria “Danger” que já traz uma pegada Pop mais firme.

RECOMPENSA

Maggot Brain (1971), Funkadelic

Finalmente, a recompensa chegou: um som fino, não tão distante do que a gente já ama. Na busca por um denominador comum, voltei para dentro da cabeça de George Clinton, em Nova Jersey. Enquanto o Parliament foi seu projeto para livre experimentação do funk, o Funkadelic seguia a tendência do Rock Progressivo. A ideia era desenvolver o Rock Negro: um mix de Blues, Funk, Groove e a psicodelia dos anos 1960, marca do trabalho de Clinton. Dois anos antes de surgir o clássico Dark Side of the Moon (1973) do Pink Floyd, Maggot Brain já expandia os níveis de percepção do Rock. O solo de guitarra da primeira faixa do é o tipo de música que faz as pessoas irem baixando o tom de voz até as conversas cessarem. Um silêncio humilde e confortável se esboça para que a guitarra de Eddie Hazel possa preencher o espaço em paz. “Can You Get To That” faz um caminho parecido, mas pelas vozes Gospel. “Hit It And Quit It” também merece sua dedicação.

A VOLTA PARA CASA

Planet Rock: The Album (1986), Afrika Bambaataa

Após a recompensa, estão restabelecidas as forças do herói e chega a hora de voltar para casa. O caminho já não é um desafio desconhecido, mas uma distância a ser apreciada, como uma viagem de carro. Dê o play sem dó em Planet Rock: The Album. Espaçonaves, Disco music e a presença de vários MCs: esteticamente falando, esse é um clássico muito curioso. Para fins de contextualização, em 1986, Prince estava lançando Kiss e Janet Jackson lançava Nasty. Planet Rock, portanto, chega para dar o tom da popularização do Hip Hop. O afrofuturismo, por vezes, parece uma linha que costura ideias e experimentações musicais para dar espaço a novos movimentos musicais negros, autênticos e destemidos. Nesse álbum em específico, o fundamento criado foi o do que viria a ser o Hip Hop dos anos 1990. Posteriormente, o trabalho de Bambaataa influenciaria, inclusive, o surgimento do Techno de Detroit e do Miami bass. O Afrika Bambaataa já movimentava o Bronx antes de Planet Rock sair, organizando festas locais e promovendo dança e rimas nesses encontros de jovens negros dentro de suas comunidades. O disco é quase um registro físico das movimentações do bairro no começo da década de 1980. As qualidades de Bambaataa como DJ se destacam com facilidade ao lado do grupo de MC’s The Soulsonic Force, trazendo como resultado um álbum dançante e hipnótico. Meus highlights vão para “Don’t Stop…Planet Rock”, “Looking for the Perfect Beat” e “Renegades of Funk”.

RESOLUÇÃO

Disco Devil (1979), Lee “Scratch” Perry e outros artistas

Nossa resolução vem em tom de Reggae – de um dos alicerces da construção da estética afrofuturista na Jamaica: Lee “Scratch” Perry. Influente produtor, seu estúdio – Black Ark – foi palco de muitas experimentações musicais e do surgimento do Dub. A faixa mais famosa, “Disco Devil”, é uma versão do hit “Chase the Devil” de Max Romeo, de 1976, que é um Reggae. A comparação traz o questionamento sobre o não-lugar do gênero da produção de Lee Perry, com sua voz carregada de eco e reverb. Ao lado de The Upsetters, sua banda por duas décadas sem membros fixos, Perry trabalhou com todos os artistas da Jamaica da época, inclusive com Bob Marley. Um fato curioso é que o Black Ark terminou quando Perry, em uma crise emocional causada pelo uso exagerado de LSD, colocou fogo no estúdio dizendo que o demônio teria feito dali seu lar. Nesse momento, Perry deixou a Jamaica e foi produzir no exterior. A essa altura, Lee já tinha se agarrado à estética afrofuturista e traduzia isso na sua aparência, muito similar ao próprio Sun Ra. Atenção máxima, obviamente, ao ouvir “Disco Devil”, mas também em “Free Up the Prisioners” com versos diretos sobre a legalização da maconha. Traduzindo: “Libere a maconha, deixe as crianças comerem agora / Eles precisam de pão e água / Ela estava aqui desde a criação, é para a cura da nação”.

O RETORNO COM O ELIXIR

O Futuro Não Demora (2019), BaianaSystem

Por fim: Brasil, 2019. Estamos de volta e com a sabedoria de 11 álbuns que construíram, aperfeiçoaram e se dedicaram à música negra. Com ouvidos treinados para achar e redescobrir o afrofuturismo em todo e qualquer gênero musical. Daí, basta reouvir o Baianasystem para sentir o afrofuturismo vertendo dali. Donos dos graves mais violentos e acertados da atualidade, a banda se destaca ainda mais com seu novo projeto, extremamente sensível, que abarca também uma análise profunda da Bahia: O Futuro Não Demora. Ornando muitos ritmos para compor uma ideia complexa do estado – e em um plano maior o Brasil – o álbum conta com a produção de Daniel Ganjaman em co-produção com próprio BaianaSystem, assim como no último trabalho do grupo Duas Cidades (2016). Falando sobre gêneros, consegue alcançar um pouco de tudo que falamos acima, o Reggae de Lee “Scratch” Perry em “Sonar”, os instrumentos de percussão como Fela Kuti em “Melô do Centro da Terra”, o uso dos sintetizadores que lembra William Onyeabor… Isso sem falar na lírica ácida e direta de Russo Passapusso. “Redoma” não abre concessões, é ambiciosa e vale ouvir. “Navio” e “Arapuca” também merecem atenção especial. Se sozinhas elas brilham, no contexto do disco, a proposta só cresce. O álbum é coeso da primeira à última música e pede uma audição completa e aberta.

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