Álbum de figurinhas: as memórias de Marília Aguiar com os Novos Baianos

A produtora cultural escreveu sobre os anos de convivência com a banda no livro “Caí na Estrada com os Novos Baianos”

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Fotos: Arquivo Pessoal

Se tem algo que a estrada ensinou para a produtora cultural Marília Aguiar, foi escolher bem a sua companhia. “Um produtor de shows precisa saber montar uma equipe competente, harmoniosa, bem-humorada e paciente”, conta em entrevista ao Monkeybuzz. O início de sua jornada na música foi documentado no livro Caí na Estrada com os Novos Baianos (Editora Agir), lançado no final do ano passado.

Durante quase uma década, Marília fez parte da comunidade formada por Moraes Moreira, Baby Consuelo, Luiz Galvão, Pepeu Gomes, Paulinho Boca de Cantor, seu ex-marido e pai dos seus três filhos, entre outros. Ela se lembra da data exata em que conheceu a trupe hippie em São Paulo –na festa após a estreia do filme A Mulher de Todos, de Rogério Sganzerla, em 15 de dezembro de 1969.

Na pista de uma boate no bairro dos Jardins, logo reconheceu os músicos baianos, como conta no capítulo de abertura: “pessoas diferentes e interessantes, vestiam roupas estranhas sobrepostas por peles, usavam cabelos compridos e desgrenhados, falavam muito e riam ainda mais”. Na época, a banda estava na cidade para participar do Festival da Música da TV Record, e Marília cursava jornalismo na USP e era estagiária no estúdio do editor Massao Ohno.

Paulinho Boca ligou no dia seguinte, ela foi encontrar os novos amigos, e assim, de forma inesperada, saiu da casa dos pais sem grandes expectativas. Mesmo com os inúmeros imprevistos, a produtora nunca pensou em abandonar a trupe: “Adorava a minha vida tão intensa, repleta de amigos e música. Estava feliz, não pensava em desistir nem nos maiores perrengues, que acabavam sendo até divertidos”.

Inquieta e curiosa por experiências fora dos padrões, a estudante de jornalismo desejava novas aventuras. “Apesar do clima assustador provocado pelas restrições e incertezas impostas pela ditadura, havia uma grande efervescência cultural”, lembra sobre o período. Quando era adolescente, admirava o estilo de vida livre e criativo do seu primo, Flávio Imperial, artista plástico, arquiteto e cenógrafo. “Eu adorava ver a sua vida de perto. Desde criança, sabia que o Flávio era a pessoa mais interessante da família. Ele despertou em mim o desejo de procurar as coisas que realmente me fascinam”, conta.

Realidade alternativa

Para o leitor conseguir identificar os protagonistas dessas aventuras, a autora fez questão de colocar fotos de cada um dos mais de 20 integrantes e seus respectivos filhos. Desde o início do processo do livro, Marília sabia que queria começar a sua história com um “álbum de figurinhas” para apresentar a formação fixa do seu time de craques. Entre as diferentes casas, eles costumavam receber novos e velhos amigos constantemente.

“Depois fui selecionando algumas do começo da carreira dos Novos Baianos, da nossa primeira casa em São Paulo, do apartamento de Botafogo, do sítio de Jacarepaguá, dos jogos de futebol, dos palcos e ensaios”, comenta sobre a curadoria de imagens. Recheado de lembranças e fotografias, a produtora cultural queria contar histórias loucas, mas reais, sem grandes análises e contextualizações.

“Nem tudo era discutido de maneira democrática, cada um falava e agia como queria. O receio do julgamento não ficava tão explícito e ninguém falava sobre isso, mas todos sabiam quando estavam sendo considerados ‘por fora’”

Segundo a escritora, entre os 18 capítulos, a história mais complicada de abordar foi “PRA ONDE PENDE O MEU CORPO (Sem Moreira)”. “Foi o mais difícil de concluir porque mexe em algumas feridas”, explica. Nele, Marília aborda algumas questões da vida em comunidade no “Cantinho do Vovô”, em Jacarepaguá, que levaram ao afastamento de Moraes Moreira da banda, em 1975. Mesmo pregando liberdade e amor, como em qualquer família, havia certas regras explícitas ou veladas.

Por exemplo, o crivo das coisas que eram “caretas”, “por fora” ou “quente”. A lista do “por fora” contava com conta em banco, babá, autorização para música entrar na trilha sonora de novela, filhos na escola, entre outros exemplos. A questão de andar e pensar em mais de um é alcançar algum tipo de consenso, então dividir o dinheiro e as roupas era óbvio, assim como jogar futebol.

“Nem tudo era discutido de maneira democrática, cada um falava e agia como queria. O receio do julgamento não ficava tão explícito e ninguém falava sobre isso, mas todos sabiam quando estavam sendo considerados por fora”, lembra Marília. Havia exemplos de atitudes homofóbicas e machistas, mas que incomodavam poucos no grupo: “Nenhum convidado jamais foi expulso ou criticado. Quem não gostava, como eu, ficava em outro canto”.

“A forma espontânea de compor era maravilhosa e os shows seguiam a mesma linha. Não havia necessidade de ensaiar porque eles já faziam som o dia todo”

Encontros musicais

Como parte do Novos Baianos, a produtora viveu anos intensos de shows, carnavais e viagens. Presenciou a criação de diversas músicas, além de apresentações memoráveis. “A forma espontânea de compor era maravilhosa e os shows seguiam a mesma linha. Não havia necessidade de ensaiar porque eles já faziam som o dia todo”, fala sobre o clima da banda.

Outra presença marcante no livro, João Gilberto era convidado frequente do apartamento Botafogo. Antes de conhecê-lo pessoalmente, Marília não sabia quase nada sobre o músico: “Eu gostava de outro tipo de som. Já tinha ouvido ‘Desafinado’ e ‘Chega de Saudade’, mas sem dar muita atenção. Só quando vi de pertinho e de conviver com ele, é que passei a amar a pessoa e o artista”.

Nos anos seguintes ao desligamento de Moreira, o coletivo precisou entregar o Cantinho do Vovô, voltaram para São Paulo e moraram juntos pela última vez em uma casa no Pacaembu, no ano de 1977. Cada um seguiu o seu caminho em carreiras solo, já Marília encontrou no trabalho uma nova maneira de se sentir livre. Em 1983, começou no setor de divulgação da Embrafilme, e nunca mais parou.

Desde então, foram 23 anos na estrada como produtora da cantora Simone, além de muitos outros anos com Capital Inicial e Ratos de Porão. Alguns dos seus projetos favoritos: “idealizar o CD do Osmar Macedo, o inventor do Trio Elétrico, o projeto Mestres Navegantes, que gravou representantes da cultura popular no Cariri e na Bahia, ter feito a campanha do Brizola a presidente com shows do Gilberto Gil, Sandra de Sá, e de muitos outros”.

Além de acumular histórias inusitadas, a produtora também registrava as turnês em fotografias, mas não só dos palcos. “Tenho aquelas hilárias das equipes passando o som, dormindo no ônibus, babando nos aeroportos e trocando de roupa no camarim”, conta sobre o seu acervo. Inclusive, a ideia do livro surgiu despretensiosamente em um momento entre apresentações.

No ano de 2017, Marília acompanhou a tour do disco Amigo É Casa (2008), das cantoras Simone e Zélia Duncan, em Portugal. Como o trio passava muitas horas nos camarins, para descontrair, ela contava uma história da época com os Novos Baianos. “Elas riam muito. Foi a Zélia que insistiu que eu escrevesse sobre esse tempo, mas demorei até mandar as primeiras histórias”, lembra. Mesmo fã de biografias, nunca havia cogitado escrever um livro, foi com o incentivo da amiga que o projeto se tornou possível.

Para a produtora, não há nada como o desafio de acordar cada dia em um lugar e buscar o mesmo padrão de apresentação em qualquer lugar. Marília também não descarta um novo livro com mais anedotas musicais: “Estar na estrada com uma equipe de músicos e técnicos é bom demais. Sinto o maior orgulho quando sou lembrada com amor por quem trabalhou comigo. Talvez eu escreva outro livro contando as histórias louquíssimas dessas pessoas todas que estiveram na estrada comigo”.

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ARTISTA: Novos Baianos
MARCADORES: Marília Aguiar

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