Amaro Freitas: calmaria e explosão

O ritmo, os silêncios e as vozes ancestrais que inspiraram o estonteante “Sankofa” – e tornam o pianista recifense um astro do Jazz

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Fotos: Jão Vicente

Fazia 26ºC no Recife quando Amaro Freitas atendeu a chamada de vídeo dentro de uma sala de estúdio. Logo nos primeiros minutos de conversa, ele perguntou de onde eu falava e afirmou que pela minha voz podia notar que, onde quer que eu estivesse, fazia frio. Considerando a semana anterior, a temperatura de São Paulo havia melhorado e chegava aos 19ºC, o que levou o pianista a uma risada desembaraçada, do tipo que preenche. Em seguida, Amaro diz que o frio também tem seu charme. Apesar do piano e carisma colossais, Amaro fala com tranquilidade e atenção. Não se perde na elaborada sintaxe das suas frases nem mede onomatopeias para explicar os tipos e tempos musicais de seu repertório. Entre uma piada e uma história, são certas a paixão e consciência que ele tem sobre sua obra. No entanto, é impreciso se Amaro Freitas sabe que já é um astro do Jazz.

No dia 25 de junho chegou às plataformas de streaming o terceiro disco de estúdio de Amaro com o baixista Jean Elton e o baterista/percussionista Hugo Medeiros, Sankofa (2021). Segundo Freitas, trata-se de “um disco que pegou o coração da mídia brasieira”. Mas a popularidade não é exclusividade nacional; revistas de França, Inglaterra, Estados Unidos e Japão entraram em contato com Laercio Costa, empresário de Amaro, almejando uma entrevista com o pianista recifense. Na disputada agenda, fomos a terceira ligação em um dia que previa quatro no total, começando às 12h e terminando às 18h30. A maioria dos dias tem sido assim, com uma atenção da crítica que, curiosamente, o brasileiro que tem no currículo uma apresentação no Lincoln Center não havia recebido até então. A entrevista à revista japonesa foi a que mais cativou o pianista — consideração que ele emendou em uma reflexão sobre os tipos (e a ausência) de críticas musicais especializadas, ponderando sobre as limitações do contexto editorial brasileiro, o que o levou a contar um caso de Elis Regina e Hermeto Pascoal para reafirmar seu amor pelo país e, enfim, retornar ao assunto principal com a mesma facilidade com que desviara dele.

“Hoje a gente vive um movimento mundial atrelado ao ritmo”, sintetiza Amaro. O artista menciona Shabaka Hutchings, Nubya Garcia, Kamasi Washington, Robert Glasper, Vijay Iyer e seu microtonalismo ao piano; o ponto em comum de todos estes ícones brilhantes do Jazz, segundo Amaro, está na tomada do ritmo como pilar principal de suas músicas. “Todo mundo da diáspora africana está dando atenção à ancestralidade e o ritmo é o pilar desses trabalhos”, diz, “Estou me permitindo ser um canal — estudando para tirar um grande som percussivo, mas ao mesmo tempo entendendo o piano como um instrumento rítmico e tentando descobrir como tirar essa rítmica da melhor forma possível. É um trabalho exaustivo e altamente prazeroso que resulta em Sankofa”.

O disco levou três anos para ficar pronto e, das oito faixas, “Baquaqua” foi a primeira a nascer. O percurso extenso faz parte das qualidades de Amaro, que enxerga o estudo severo como caminho fundamental para elaboração de seu som. “Para se chegar em um lugar de excelência é preciso foco e disciplina”, diz. “Eu tento trazer em todo disco uma percepção da vida, eu tenho a vida como principal influenciador; assim, para ter a capacidade de perceber a vida e traduzi-la, com a pesquisa de música que eu estou fazendo, é só com tempo. E muitas colaborações, afinal, eu quero um mundo plural, vários mundos”.

O tempo de produção de Sankofa deu oportunidades: tanto para Amaro mergulhar na narrativa que começou em “Baquaqua”, quanto para o trio amadurecer sonoramente. “A gente está tocando junto há muito tempo”, comenta sobre a parceria com Jean Elton e Hugo Medeiros, companheiros de estúdio e palco desde o primeiro disco de Freitas, Sangue Negro (2016), “Virou uma segunda família. A gente conversa sobre cachorro, música, nossas companheiras, tudo e qualquer coisa, desde uma reportagem que leu até o que comer, entende? Essa intimidade está presente na unidade sonora do trio. A gente está entendendo muito mais sobre sonoridade, como captar, como gravar, tudo está mais aprofundado em Sankofa. O fato do trio girar o mundo junto traz uma outra percepção do mundo através do olhar de cada um. A gente tocou em alguns dos principais clubes de Jazz do mundo, templo do Jazz que é o Lincoln Center, grandes festivais, fomos a primeira banda brasileira a se apresentar no centro cultural de Budapeste, sabe? Viver isso te dá uma leitura muito mais madura do mundo e do teu propósito neste mundo”. Nas voltas do globo, muitas situações marcaram Amaro, mas três delas imprimiram nele uma nova consciência sobre amar, sentir, ser e voltar.

Diário de bordo de Amaro Freitas

Sobre o amor: Alemanha

“Quando a gente conhece o poder do som, percebe por que certos governos não se agradam de música — porque é muito irado. Tocar na periferia ou tocar para classe média ou tocar para rico ou tocar do outro lado do mundo: as pessoas se conectam de uma forma tão rápida! Nós estamos falando do grande ancestral: o som. Antes de existir qualquer coisa no universo, veio o trovão. Uns vão dizer que é a voz de deus, orixás, Big Bang, mas pensa no barulho que foi no céu! A música mexe com a terra, com as frequências do teu corpo.

E, se eu fosse criar uma relação contigo de amizade, vamos supor que a gente trabalha junto. A gente ia falar oi, trocar umas palavras durante o expediente, pegar elevador junto. A gente vai conversando, pede alguma ajuda com o trabalho, ensina uma coisa ou outra. Depois de uma semana, vamos tomar um café juntos? A gente começa a ser amigo. Depois, eu venho te dar um abraço, estar rindo com você até chegar o momento em que eu digo que eu te amo e choro ao dizer isso. Vai levar um tempo. Vai bastante tempo nessa história.

Já a música fez o cara que está na Alemanha, que tem um clima diferente do meu, uma cor diferente da minha, uma vida diferente da minha, um modelo social diferente do meu, pedir quatro bis depois que meu show terminou e vir me abraçar chorando, dizer que me ama, ama minha música, nunca tinha visto nada igual. Eu percebo a força que a arte tem”.

 

 Sobre ser: Suíça

“Quando a gente foi tocar no Montreal Jazz Academy, eu cheguei atrasado porque a gente estava terminando a tour na Europa. Eram seis músicos do mundo inteiro reunidos por cinco dias, de 7 a 12 de julho de 2019, com a mentoria do trompetista Christian Scott. Chego virado, e me perguntam: pô, faltam dez minutos para acabar o encontro, você não quer descansar? Respondo que não, eu quero ver a galera estudando.

Me levam e a diretora me pede para tocar; eu começo ‘Batucada’, Christian me olha e diz: nossa, que demais! Só que, no decorrer dos ensaios, Christian seleciona algumas pessoas — eu sou uma delas — e ele pede pra eu tocar ‘Batucada’ novamente. Quando eu toco, ele diz: Amaro, te olhando tocar eu percebo que essa música reflete muito do Amaro percussivo e como você domina bem o ritmo, é técnico e frenético. Mas, durante nossos ensaios, eu percebi uma Amaro com notas longas e melodiosas, com muito lirismo, que trabalha muito bem a harmonia, que tem calmaria. Fico pensando que você tem um momento seu e, nesse momento, você deveria mostrar um Amaro mais completo. Acredito que essa música representa uma parte do Amaro, mas não ele todo; você não tem uma música que mostre o Amaro mais completo?

Quando ele terminou de dizer isso, eu já estou com vontade de chorar. Como é que o cara em três dias conseguiu uma leitura tão profunda sobre mim? Toquei uma outra música, “Luiza”, que é o primeiro clipe que eu lancei. Quando eu toquei essa música, toquei pensando em tudo isso que ele falou: lirismo, calmaria, percussão e comecei a me dividir em várias coisas, vários momentos da música. Neste momento eu entendi que uma música só não dá conta de mim. Sankofa é produto de viver outros mundos, outras opiniões e ter muita troca. Para Sankofa, comecei a compor sem barreiras. É um disco que me liberta”.

 

Sobre voltar: Brasil

“Todo brasileiro deveria ir a Manaus para entender um outro lado do Brasil. Quando a gente tem a experiência de ver, é diferente. Manaus é um porto, um lugar urbano como qualquer outro centro urbano, mas, quando voce entra no porto, você percebe outro chamado, aquele rio negro, gigante, o encontro das águas super agitado, cidades flutuantes, rio limpíssimo, troncos gigantes, um vale absurdo, casas em cima de três metros de madeira porque todo esse rio sobe. Eu vi um menino com uma sucuri no braço, depois jogando essa sucuri na água e mergulhando. Você entende? Eu lembro de toda aquela beleza e só lembro de Naná Vasconcellos dizendo assim: vamos para a mata. Começo a compor “Cazumbá”.

Fui pra Manaus em abril de 2020, foi o último show que eu fiz antes da pandemia. Sair do lugar urbano, ir transitando pra dentro da mata e depois voltar para esse lugar urbano é também o caminho da música. Por isso inseri os apitos, cuícas, coloco mais reverb no som do piano. E fica o convite de Naná. Manaus me fez entender também que a ancestralidade pode estar no pilar de pessoas que vieram antes de mim, mas a ancestralidade também é a conexão com a natureza. A gente perdeu esse sentir: cheiro da terra molhada, tomar banho de rio, cultivar uma horta, ter uma relação com árvores. São coisas que a gente perdeu, mas faz muito pouco tempo. Meu avô, teu avô tinham o costume de subir uma árvore, pegar uma fruta e descansar na sombra dessa árvore, sabe? São os lugares que mais mexeram comigo no Brasil: Manaus e Belém do Pará”.

Sankofa é um disco de deslocamentos — não somente rítmicos e históricos, mas também filosóficos. Amaro se despe da premissa eurocêntrica penso, logo existo e assume a cosmovisão afrocentrada sinto, logo existo. Ao começar a composição de “Vila Bela”, por exemplo, o artista deixa-se guiar pelo abraço que gostaria de dar em Tereza de Benguela. “Quero agradecer pela grandiosa e poderosa mulher que ela foi para a nossa história, por cuidar e gerir aquele quilombo no Mato Grosso de uma forma tão bonita”, conta, “Quando eu penso nesse abraço em Tereza, penso em um abraço elegante e suave, então fechei meus olhos e comecei a criar essas notas, longas e suaves, e vou sentindo esse cheiro de Tereza, o vento que bate na gente, a vista de Vila Bela. É muito louco isso porque eu fico trabalhando isorritmia, polirritmia, polifonias não convencionais, mas também traz simplicidade, calmaria, ternura”.

“Vila Bela”, “Nascimento” e “Sankofa” estão relacionadas às vivências fora do Brasil, de tocar em pianos que não estão presentes no circuito nacional e, ao voltar, criar formas de obter o mesmo resultado. “Existe um piano chamado Fazioli, que é um piano italiano não disponível em lojas para compra, você só pode comprar esse piano por encomenda e ele custa um milhão de reais. Quando eu chego em Budapeste para tocar, tem um Fazioli e eu reparo como é fantástica a mecânica, os martelos, todo aquele piano. Reparo também que eu só preciso tocar 50% da minha intensidade para tirar um som pianíssimo. É como se a gente estivesse falando do gramado da Champions League e do brasileirão, sabe?”, diverte-se. “Quando eu volto para o meu Pernambuco, tenho meu piano maravilhoso, Yamaha, só que se eu toco 50%, o som não sai o abraço que quero dar em Tereza”.

“Todo mundo da diáspora africana está dando atenção à ancestralidade e o ritmo é o pilar desses trabalhos. Estou me permitindo ser um canal — estudando para tirar um grande som percussivo, mas ao mesmo tempo entendendo o piano como um instrumento rítmico e tentando descobrir como tirar essa rítmica da melhor forma possível. É um trabalho exaustivo e altamente prazeroso que resulta em Sankofa”

Em busca da delicadeza do som pianíssimo, Amaro fica obcecado pela intensidade e a captação. Em “Vila Bela” o pianista toca com um décimo de sua força e aproxima os microfones do piano, além de aumentar o ganho de som do instrumento. “Assim, a gente capta mais os pedais, os martelos e os harmônicos, entende? Vem o som grandão como se fosse um mega abraço”. “Baquaqua” também vem em um abraço, mas também com uma enorme vontade de contar sua história, uma crônica de desespero com um rompante triunfal. Mahommah Gardo Baquaqua foi o primeiro homem escravizado a ter sua autobiografia publicada; ler esse livro é tarefa educativa e dilacerante, que em suas 10 páginas remonta do rapto no continente africano à conquista da liberdade nos Estados Unidos. Para nós, brasileiros, é ainda particular saber que o primeiro lugar em que Baquaqua desembarca do navio negreiro é Olinda. Depois é revendido para o Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, cada destino com seus requintes de crueldade. Atravessado, o jazzista recifense compõe emocionalmente a história de Mahommah Gardo Baquaqua buscando o vocabulário sonoro de sua autobiografia.

A nossa música brasileira é binária. O frevo, o samba, o maracatu, a ciranda, o coco, tudo é binário. Quando eu começo Baquaqua parece que a música vai ser binária, Baquaqua em sua vida de plenitude, com uma única nota: a pureza, a frequência, sem interrupção. E a nota dobrada a uma oitava acima que reflete essa primeira nota”, explica Amaro, “De repente, começam a entrar os contrapontos na vida de Baquaqua, um nove contra oito, em que Baquaqua mostra que não é a música que você pensou que seria. Quando entra a bateria com baixo e piano, a gente começa a tocar em um tom menor, que já carrega a melancolia, em uma escala que traz para mim uma agonia, um pouquinho de desespero. E Baquaqua está ali nos contrapontos, na travessia, vendo gente morrer no subsolo do navio negreiro, sem saber se vai sobreviver. Baquaqua chega ao Brasil e as coisas começam a ser muito rápidas: já é escravizado, joga-se no rio em uma tentativa de suicídio, as coisas ficam lentas…ele é resgatado para continuar seu trabalho compulsório e tudo fica rápido de novo. Essa agonia que é o Brasil. Ele desce para o Rio de Janeiro e aquele caos no porto! A coisa vai inchando, inchando. Quando chega nos Estados Unidos, tudo fica suspenso, esse homem é livre? [“Free” foi a primeira palavra na língua inglesa que Baquaqua aprendeu, um dos momentos mais dramáticos e bonitos da obra] Só que, na época, Estados unidos estava em apartheid, clima tenso, tudo fica sete contra oito, de vez em quando Jean e Elton ficam comigo no sete, de vez emquando vão para o oito e  é essa a sensação de Baquaqua: estou em segurança? Sou livre? Eu sou um homem livre — em tom maior. Chega no Haiti e as coisas vão ficando mais calmas, vai chegando no fim. Ainda assim, voltam os contrapontos, sete contra cinco, e a gente continua batendo na mesma tecla porque até hoje, mesmo depois da história de Baquaqua, a quantidade de jovens mortos pelo estado brasileiro continua altíssima e a pele é negra”.

Estudioso incorrigível, Amaro é, como não poderia deixar de ser, absolutamente hipnotizado pelo poder das 88 teclas. “Estamos trabalhando outros padrões na música que são mais complexos, o processo de ‘Batucada’ é um processo rítmico e polifônico porque aquelas combinações de notas são matemáticas, tem um lado muito mais científico”, declara. Mas, apesar da veia exata do Jazz de Freitas, o maior aprendizado de Sankofa para ele foi aprender a sentir, de uma forma expansiva e nunca limitadora. “Eu quero despir todos esses gargalos que a gente se vestiu, essas regras arbitrárias, preconceitos. Eu quero entender a vida como algo muito mais fluido e quero que essa seja uma mensagem para o futuro: que a gente desacelere. E que a gente possa retomar mesmo nossas origens, nossas conexões”.

Como o significado do conceito que dá nome ao disco, Sankofa, Amaro olha para o passado para desenhar um futuro sonoro, portanto, fatalmente ancestral. Por isso, antes de encerrar a entrevista, perguntei como ele gostaria de ser lembrado. “Eu quero ser visto na História de uma forma humana. Quero ser lembrado como alguém que lutou pelo bem e que estava preocupado com a verdadeira história do povo negro”, respondeu com a certeza de quem já deu algumas noites de insônia ao tema. Amaro fala também sobre a luta indígena, a atenção que se precisa dar à comunidade LGBTQIA+ e ao sério cenário de feminicídio. Fala sobre o poder da arte e como gostaria que todos, todas e todes pudessem viver em plenitude — como pulsa o Jazz instrumental, o qual, através de seus estimulantes improvisos, inspira-nos a ser.

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ARTISTA: Amaro Freitas