Amigos de Earl: o renascimento introspectivo do Rap underground

O que um dos filhos mais originais e talentosos do Odd Future tem a ver com esse movimento-ainda-sem-nome que começou em Nova York? Selecionamos 10 discos para explicar

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Fotos: Randy Singleton / Complex

Após um início impressionante e três anos sem um grande projeto, Earl Sweatshirt retornou com Some Rap Songs (2018). Aclamado pelos fãs e pela crítica especializada, o projeto é imbuído de uma aparente despretensão que já se apresentava no título e na capa. O (maior) talento lírico natural do extinto coletivo Odd Future demonstrou um amadurecimento na linguagem que já era tateado em discos anteriores. Pela projeção que já tinha no cenário, Earl acabou sendo visto – de maneira generalizada – como único, ao apostar em algo que ninguém mais estava fazendo.

Artistas que ganham enorme notoriedade e respeito rapidamente muitas vezes ficam reféns das primeiras impressões que criam. Agindo como eles pensam que deveriam agir, fazendo a música que supostamente deveriam fazer, esses nomes, muitas vezes, acabam se tornando uma caricatura de si mesmos, mais do que um artista/ser humano em desenvolvimento. Parecem ficar velhos – em vez de envelhecer.

O terceiro disco de estúdio de Earl seria um projeto diferente se ele não tivesse saído dos holofotes por um tempo, quando viveu a vida de Thebe Kgositsile e se redescobriu. Nesse meio do caminho, ele fez diversos e bons amigos. Influenciado por um novo underground presente principalmente em Nova York, uma novíssima geração de jovens rappers vem experimentando as linguagens e estruturas empregadas em Some Rap Songs – vale dizer, bem antes de Earl. Seja rimando sobre loops sem bateria (a partir de processos de produção caseiros), como Mike, ou contratados pela Def Jam, como é o caso de Maxo (ambos aparecem ao lado de Thebe no clipe de “EAST”), essa leva evidencia um movimento interessante nos Estados Unidos. Além do caráter experimental, é comum que os projetos sejam curtos e de canções diretas, com frequência soando como desabafos. Um diário de pensamentos sobre os mais diversos assuntos, que se insere em uma atmosfera introspectiva. Essa postura também se reflete no visual, seja em capas de discos ou nos clipes. Raras são as superproduções. Aqui, o tom é fazer muito com pouco. É uma mistura entre a liberdade com que produzem suas obras e a valorização da música feita com os recursos disponíveis. Derivação ou não do famoso “faça você mesmo”, o caso é que esses artistas são incrivelmente prolíficos e qualquer ausência de recurso ou linguagem é rearranjada sob uma luz original e cativante.

O underground quase sempre é responsável pelas inovações estéticas e sonoras de um estilo, as quais, depois, são absorvidas pelo mainstream, como foi com o Trap por exemplo. As influências dessa galera podem ser notadas desde a presença de Knxwledge no aclamado To Pimp a Butterfly (2015), de Kendrick Lamar, ou no mais recente trabalho da amiga pessoal de Earl, Solange Knowles, When I Get Home (2019).

“Acredito que o ‘elo’ que conecta o trabalho dessa galera é a mesma coisa que faz eu me identificar, que é o lance da pesquisa, tanto visual quanto musical”, comenta Gustavo Lessa, criador do selo BANAL, responsável por reunir muitos artistas que trabalham em movimento similar aqui no Brasil. Para ele, é importante essa ressignificação consciente das escolhas artísticas. Um sample ser mais do que apenas algo que soe bem, por exemplo, mas, sim, contribuir para o sentido da história que está sendo contada. “É uma coisa que acontece desde o início do Hip Hop, mas essa galera retomou, até a questão do Lo-Fi como técnica. Assumir uma parada feita em casa, a partir de outras coisas. Tem muito a ver com internet e globalização, tá acontecendo no mundo todo”.

Mais do que dez discos que representam e explicam esse movimento-ainda-sem-nome, aqui apresentamos alguns dos trabalhos mais interessantes do Hip Hop americano recente.

MIKE – May God Bless Your Hustle (2017)

MIKE abre a lista por um motivo simples: ele é o prodígio dessa galera. O músico tinha apenas 18 anos na época do lançamento de May God Bless Your Hustle, co-assinado pelo próprio Earl Sweatshirt e que recebeu um 8.3 na Pitchfork (e olha que, por aqui, nem gostamos tanto desse lance de notas). A capa da mixtape é um frame de um vídeo da mãe do rapper, no qual ela está amedrontada atravessando uma ponte na floresta, enquanto o guia diz que “não dá para voltar – você tem que seguir em frente”. Amparado por samples desacelerados e loops de soul (muitas vezes sem bateria), MIKE desfila raps de esperança e luta. Destaque também para a participação do Standing on The Corner, banda de Jazz e Hip Hop experimental que colabora com outros nomes nessa lista.

SLAUSON MALONE & Medhane – Poorboy (2017)

Slauson Malone é um produtor americano de Jazz, Hip Hop e adivinha? Ex-integrante do Standing On The Corner! O primeiro álbum solo do artista, A Quiet Farwell, Twenty Sixteen to Twenty Eighteen (2019) foi bem recebido pela crítica, mas é fruto de uma semente plantada há mais tempo. Em Poorboy, acompanhado de Medhane, a dupla reflete sobre dinheiro, ser um jovem negro tentando a independência financeira e todas as neuroses ao redor disso. O ouro é que eles não se importam se estão fazendo Boom Bap, Trap, Lo-Fi, Grime… Medhane usa um triplet flow em cima de samples distorcidos e as possibilidades são exploradas de maneira livre. Esse som ruidoso meio gutural que sai do estômago dos dois mostra a habilidade de ambos, seja Medhane com a caneta ou Slauson com a MPC. Entre as crias do Standing On The Corner, também vale a pena sacar o disco Under The Shade (2019), de Caleb Giles.

DEEM SPENCER – We Think We Alone (2017)

Com apenas 21 anos, Deem Spencer chama atenção pelo uso da música como um dos vários suportes de sua expressão artística. Também de Nova York, ele é o único dessa lista que até então não havia colaborado com outros que aqui aparecem, o que faz o som dele ainda mais distinto. Spencer aposta numa vibe conceitual para seu trabalho, que se complementa nos vídeos extremamente originais, que se assemelham a trabalhos de artistas de performance. Trabalho de estreia, We Think We Alone é nebuloso e tristemente inspirado na dor da perda de seu avô, que estava doente e sob os cuidados do rapper durante o processo de composição do trabalho. O segundo disco de estúdio do artista, Pretty Face (2019), é uma tragicômica história de amor e também vale a audição.

PINK SIIFU – ensley (2018)

Um dos nomes mais prolíficos dessa lista, Pink Siifu é um rapper natural de Birmingham, no Alabama. Antes de ensley, saíram outros dois trabalhos de estúdio: Twothousandandnine (2016) em colaboração com o beatmaker Swarvy, e BRWN (2017), em parceria com Ahwlee, com quem forma a dupla B. Cool Aid. Apesar da qualidade desses dois trampos, foi seu primeiro álbum solo que realmente marcou um ponto de virada na carreira. Sob batidas robustas e loops de Soul, o disco é como uma obra de colagem sonora, que ganha rimas de Siifu, spoken words e diversos skits e falas. “This album is for the poor black motherfucker living in the goddamn ghetto” – diz o sample na primeira faixa, retirado da canção “Intro”, de Dazzie Dee, presente no álbum Where’s My Receipt? (1995). Durante todo o álbum, Pink Siifu repete frases que soam como afirmações e desejos pela prosperidade negra em uma meditação. Esse projeto também conta com a participação de liv.e, Maxo, Medhane, maassai e Mavi que, juntos, compõem a metade dessa lista – o que mostra o tamanho de Pink Siifu para esse movimento. Se o artista visual Arthur Jafa fizesse um disco, certamente soaria como ensley. Na minha humilde e ousada opinião, é um dos maiores discos da história do Hip Hop. Esse ano, ele lançou outro álbum ímpar: NEGRO (2020) é o irmão mais velho de ensley. Mais afirmativo na temática racial, é embalado principalmente pela sonoridade Punk.

Liv.E – KRYPTONYTE (2018)

E nem só de vozes masculinas vive o underground, ainda bem! Liv.e ainda não tem um trabalho solo, mas participa nos discos de Deem Spencer, Maxo e Pink Siifu, com quem tem o álbum colaborativo de Memphis Rap, Kryptonyte. O lance dela é o canto, mas, nesse projeto, ela assume a persona de Jade Fox e arrisca rimas ao lado de Siifu e Lord Byron. O disco não bebe apenas do sub-gênero sulista dos anos 1990, mas é de fato uma produção completa de Memphis Rap nos anos 2010’s. Recentemente, ela angariou admiradores de um novo público, após Tyler, The Creator postar um story ouvindo um som da artista. Em 2020, Liv.e já lançou três singles – todos em colaboração com os ácidos visuais do coletivo _flatspot. Seu primeiro álbum solo, Couldn’t Wait To Tell You, segue o EP Hoopdreams (2018) e deve sair ainda esse ano.

MAXO – LIL BIG MAN (2019)

Essa galera colabora musicalmente entre si e também trabalha geralmente com os mesmos artistas visuais. Mas, além da amizade, a proximidade é tanta que atinge o coração dos pombinhos do under. Acontece que Maxo é namorado de Liv.e e um dos grandes titãs desse movimento, assinando com a Def Jam para o lançamento do segundo álbum de estúdio, LIL BIG MAN. Assim como em muitos de seus contemporâneos, o disco de Maxo é sobre crescimento e amadurecimento. Um outro aspecto que une essa leva de artistas é o uso da música como terapia e processo de autoconhecimento. LIL BIG MAN, somado aos álbuns de Medhane e Mavi (os próximos na lista), podem ser lidos como uma trilogia não-oficial. Não à toa, os três estavam se apresentando em uma turnê conjunta.

Medhane – Own Pace (2019)

Entre esses artistas, há outra característica notável: eles se fazem ouvir falando baixo. Ao contrário do mainstream do Hip Hop atual, eles não querem soar barulhentos ou extravagantes, pelo contrário. E com Medhane não é diferente. Ele, como o nome do disco sugere, caminha em sua própria velocidade sobre os beats – ou no decorrer da vida que narra. As batidas têm lugar para existirem autônomas, sem a voz do rapper, e abrem espaço para o ouvinte refletir sobre o que ele acabou ou está prestes a dizer.

MAVI – Let The Sun Talk (2019)

No seu aniversário de 20 anos, Mavi lançou o aguardado álbum de estreia e o disponibilizou gratuitamente online. Após ruídos de aparelhagem soarem nos fones, uma voz feminina define o que é ser pro-black: “buscar incansavelmente: dinheiro, terra, armas e conhecimentos úteis / com o objetivo de criar e manter comunidades negras saudáveis ​​e produtivas / significa o cultivo de uma cultura (…)”. É assim que Mavi abre seu disco. Seus versos densos sobre solidariedade negra, depressão e trauma emocional chegam acompanhados de batidas granuladas e nostálgicas, que dão o toque Lo-Fi perfeito. Foi muito comparado a Earl, que esteve envolvido no projeto, produzindo a faixa “sense”. Assim como seus companheiros contemporâneos, Mavi também acredita no fluxo de consciência como forma de reter a atenção do ouvinte.

maassai – C0n$truct!on 1 e 2 (2019)

A segunda mulher da lista também ainda não lançou seu álbum de estreia, mas teve boas e significativas participações nos discos de Medhane e Pink Siifu. Segundo consta no site de maassai, seus dois EPs da série C0n$truct!on formam uma trilogia artística multidisciplinar sobre construir e destruir. A artista explora o que significa para os negros recuperar e/ou ocupar espaço como pioneiros originais neste terreno da arte. Esta série apresentará criativos negros nascidos ou criados principalmente em Nova York e incluirá apresentações ao vivo, instalações, arte performática e muito mais. A curadoria musical de maassai para esse projeto faz com que sua sonoridade combine mais elementos de Trap, Afro-futurismo, Rock, entre outros gêneros. Por conta da pandemia do coronavírus, as datas de lançamento ainda não estão definidas

Ovrkast. – Try Again (2020)

A primeira vez que tomei conhecimento de Ovrkast. foi pela produção do fantástico beat de “El Toro Combo Meal”, no último lançamento de Earl Sweatshirt, o EP Feet of Clay (2019). Segundo o artista, ele começou a escrever rimas antes mesmo de produzir, mas seu estilo de versar dialoga com batidas que remetem ao Jazz suave. Ovrkast. soa confortável em meio às diversas camadas de sons que sampleia, além de notas suaves de um eventual piano. Nesse projeto, o artista também escolheu bem as participações. Apesar de uma timidez e humildade proposital no delivery, ele não fica atrás de competentes rimadores como MAVI e Pink Siifu. Seu estilo também se combina ao de Navy Blue – outro associado de Earl – que aparece no projeto e também fez seu debut recentemente com o disco Àda Irin (2020).

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