André Miquelotti, Ruas e P.L.K: os picaretas de fachada

Celebrando a sagacidade e as pequenas epopeias da noite, EP que reúne o beatmaker e os dois MCs explora as zonas de contato entre o UK Garage e o rap

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Fotos: Gabriel Cavassam

Picaretas de Fachada, EP lançado hoje que une as rimas de Ruas e P.L.K aos beats de André Miquelotti, tem sons para as pistas e, especialmente, sons sobre as pistas. Pistas em um sentido amplo, bem além da limitação do espaço para onde as caixas de som estão prontamente direcionadas. Pista enquanto antes, durante e depois da festa – da fila lá fora ao fervo lá dentro, do balcão do bar à mesa do DJ, da saída do trabalho às 18h à saída da festa umas 12 horas depois. Com 9 faixas (incluindo 2 skits e 1 remix), o projeto mergulha nas vicissitudes e experiências dos rolês pela noite, enquanto a produção coloca a levada do UK Garage a serviço de rimas carismáticas, atentas e ácidas. A engenharia de áudio do EP foi assinada por Marco Caramelli.

O encontro entre os artistas foi propiciado por outro ambiente que, para os três, também é sagrado, imprevisível e inspirador: o estúdio. Os campineiros Ruas e Miquelotti – que, como DJ, é conhecido como Tresk – se conheceram por meio de Paulo, integrante do duo Deekapz,e não demorou muito para que a parceria rendesse Sonhos de Vitrine, disco de estreia do rapper. No vai e vem entre Campinas e São Paulo, os dois já haviam cruzado com P.L.K em eventos na capital paulista e tinham amigos em comum com ele, como Fleezus (que participa do EP na faixa “Kassinão”) e Febem, mas eles nunca haviam, de fato, conversado.  Até que P.L.K, conhecendo o trabalho de Miquelotti como produtor, marcou uma sessão de estúdio em Campinas. E aí que as coincidências e certos empurrõezinhos aconteceram.

Ruas finalizava seu primeiro disco no estúdio com Miquelotti, e P.L.K apareceria lá algumas horas depois. “O P.L.K ia gravar umas coisas mais tarde e eu engatilhei uma fita. Virei para o Ruas e falei: ‘fica aqui’”, recorda André. P.L.K já havia dito ao produtor que queria “fazer um UK” e, com Ruas ali na mesma sessão, veio o convite quase que na espontaneidade. “Eu não tinha noção de que ia fazer um álbum, nem projeto colaborativo. Foi bem no instinto e foi muito interessante, porque foi a primeira vez que eu fiz isso, de chamar alguém para fazer um som sem nem conhecer o trampo”, conta P.L.K. Nessa única sessão, já saíram dois beats (“Kassinão”, “Tipo Sheik”) e uma faixa finalizada: “Não Dá Nada”, o carro-chefe do EP, que também ganhou um remix com versos de OriginalDé e Pety .  “Aí no estúdio, o P.L.K falou da ideia de fazer um EP e que poderia ser nós três. Na hora eu pensei: ‘deve ser brisa de estúdio’. No estúdio, é igual quando você tá bêbado. Mas topei, mesmo pensando ‘ele vai meter marcha para São Paulo e a ideia vai morrer”, lembra Ruas. A ideia não morreu e assim começou de vez a conexão Campinas-São Paulo, entre envios de guias, beats, acapellas e faixas.

Já no fluxo da produção e com o conceito amarrado, veio a ideia do título. Ou melhor, P.L.K já guardava esse nome na manga, antes até de chegar com os versos de “Não Dá Nada” na sessão de estúdio em Campinas. “Picaretas de Fachada é um nome recente, mas era algo muito marcante que eu queria trazer. Isso começou com o nome de um grupo. Eu, Fleezus, o Saulo, meio que o elenco do Tracksuit Mafia Brasil. Antes de fazer música, o Fleezus já era conhecido em São Paulo, ele tinha muito acesso a rolês e festas. E basicamente a função do grupo era descobrir qual o rolê da semana, colocar nossos nomes e dar um jeito de entrar e beber de graça”, explica P.L.K, que ainda lembra que esse foi basicamente o início do Tracksuit Brasil e do Bonde da Cachaça. “Foi assim que a gente começou a fazer conexões com o que a gente tem hoje, e eu guardei esse nome e queria usar isso algum dia”.

A inspiração por trás do título do projeto é o escopo para as histórias que inspiram as faixas – e o bom malandro aparece como voz essencial dos personagens que ressoam pelos versos. “O malandro não é o brigão. É o cara humilde, que desenrola na conversa, que sabe dialogar e se divertir. O Picaretas é você estar ali na noite, sabendo lidar com todas as coisas que a noite traz. Você não passa a perna em ninguém, é ser inteligente e tomar uma atitude”, define Miquelotti.

P.L.K salienta também a dimensão subversiva que esse tipo de vivência abarca – a sagacidade para chegar e sair dos lugares, ser bem quisto e saborear conquistas por meio de personalidade e coragem: “A gente não tem muita coisa, financeiramente falando, e isso não impede a gente de aproveitar, de saber driblar a falta de dinheiro. É a malandragem de estar nos lugares, a inteligência de colar e saber quem é quem. O projeto começou com uma leveza na caneta, mas a gente percebeu que existia uma causa, um conceito que ia muito além das festas. Fazer um som para essa rapaziada, que às vezes não tem muita condição, é uma responsa e é prazeroso”.

Além de histórias vividas pelos próprios autores, as canções também representam um grupo todo de amigos que compartilham vivências pela noite. “Picaretas de Fachada é todo mundo”, diz Ruas, que, inclusive, compôs parte do disco no embalo de um momento pessoal de sagacidade. “Eu tava sem trampo e me inscrevi no Linkedin. Mil candidatos. Falei ‘vou meter o louco’. Liguei na empresa e falei pro SAC que eu era fornecedor e que o e-mail do RH tava voltando. Eles passaram o e-mail e eu enviei o currículo. Eles me responderam marcando entrevista. Falei ‘tô pronto para acabar esse EP’”.

Ruas, por P.L.K

- “O Ruas é a melhor definição do ano lírico. Ele consegue trazer palavras exatas nos momentos exatos, sem soar redundante. E a gente pode falar do mesmo tema, e enquanto eu venho de uma forma mais sarcástica, ele vem de forma mais direta – e fica completo. São dois extremos e a gente vai navegando de um pro outro”
P.L.K, por Ruas

- “O personagem do PLK é aquele mano bem pra frente, chega na festa cumprimentando segurança, sabe aquele cara que conhece todo mundo? Ele tem uma coisa ácida [nos versos] e você sente a malandragem, tem um suingue na parada, bem malandro – no melhor sentido da palavra”

Os dois, por Miquelotti

“O Ruas é pontual, ele sabe ser engraçado e rimar se expressando, mas de uma maneira muito confiante e dando o tom certo. O P.L.K também faz isso e de outra forma, uma maneira única, o flow dele é inconfundível... Quem ia pensar em fazer um aaaah! Em ‘Não Dá Em Nada’?”

Summer Eletrohits

A missão, desde o início, foi criar um repertório enérgico, de levantar a pista, muito por conta de uma impressão de P.L.K, que, além de chegar com a proposta do UK Garage, vinha sentindo uma atmosfera muito pesada e soturna nos shows. Ele apreciava as produções de Miquelotti, mas chegou ao estúdio meio ressabiado. “Quando eu fiz ‘Não Dá Nada’, rimei em cima de um type beat e eu gostava do trabalho do André, em termos de R&B, uma coisa mais chill, aí eu me questionei ‘pô, vou colocar o cara para fazer um bagulho acelerado’, mas no fim deu bom”. Miquelotti, aliás, lembra bem da sinceridade de P.L.K. “Depois que a gente acabou a faixa, ele falou ‘ô, irmão, acredita que eu vim desacreditado que você ia fazer esse beat, achei que não ia conseguir não’ [risos], mas era porque a gente nunca tinha estado juntos em um estúdio”, conta.

Ainda que a proposta de um EP de UK Garage estivesse consolidada, Ruas não se considerava íntimo do gênero, mas soube imprimir estilo próprio e autêntico na levada britânica, além de permanecer atento aos aprendizados que surgiram durante o processo de produção. “Se você me pedir para falar três artistas gringos que fazem UK Garage eu não vou saber dizer. Mas no estúdio foi muito natural, é um lugar onde aprendo muito mais do que ensino e tô bem mais para ouvir do que para falar. Parecia que eu sempre tinha feito UK Garage”. Apreciador do gênero há mais de tempo, PLK diz que no período de composição, colheu referências londrinas, mas percebeu que não precisava dessa espécie de “lição de casa” para escrever. “A referência mais antiga que eu tenho de UK foi uma mixtape de Soundcloud, com vozes de música pop que tocava na rádio em Londres. Mas as referências brasileiras já encaixavam muito. É um projeto bem brasileiro mesmo que soe como UK Garage”.

Com os rimadores a postos, veio a alquimia sonora de Miquelotti, um dos proprietários do estúdio Undersoil, em Campinas. Synths melódicos, baixo martelando e liberdade sagaz para suprimir, evidenciar e manipular a uniformidade da percussão, tão característica nesse primo britânico do house. No meio da equação, Miquelotti afiou a pesquisa de samples para não apenas acertar no som, mas contar uma história – como na faixa-título, que sampleia os teclados de “Os mlk é liso”, de MC Rodolfinho. “Essa era a faixa para levar o nome do disco e pensei que seria legal trazer coisas nostálgicas. Aí eu pensei ‘Picaretas de Fachada… Ao que isso me remete? Só podia ser ‘os moleque é liso’”.

E, como os mais versados em memes e momentos emblemáticos da televisão brasileira podem imaginar, “Kassinão” não tem esse nome por acaso. O sample vem de “Can’t Get Over”, do Kasino, projeto brasileiro que emplacou o hit em meados dos anos 2000. Miquelotti ainda insere, brilhantemente, o apresentador Gilberto Barros berrando o nome do grupo no Sabadaço. A pesquisa e as escolhas para a produção também evidenciam um período da juventude em que os três tiveram contato com a música eletrônica – aquela fase de compilações Summer Eletrohits, baseadas em eurodance, house e adjacências, sempre munidas de um bom refrão pop. Até hoje o nome do grupo do trio no WhatsApp é justamente Summer Eletrohits.

Esse aspecto nostálgico preenche muito do clima de Picaretas de Fachada, que, em resumo, fala de lembranças. Nem sempre deles mesmos, às vezes de amigos, às vezes de personagens encontrados pela noite – ou às vezes é só licença poética e a inspiração que surge com as luzes da pista. “Agora tem que acumular vivência de novo, voltar pras pistas e voltar pro estúdio. Aquele ciclo. E reformar as mentiras [risos]”, sugere P.L.K. “É, esgotei meus estoques de mentira”, Ruas completa. E não dá nada.

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