Anos 1980, sintetizadores e as reconfigurações da MPB

Por que escantear nossa produção oitentista é apagar a história e a complexidade de movimentos múltiplos em nome de uma suposta brasilidade “autêntica”

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Em 2017, a coletânea Outro Tempo: Electronic And Contemporary Music From Brazil, montou um intrigante recorte da música nacional. Ao mesmo tempo em que dialogava com uma linhagem da MPB, desviava-se de seu período canônico dos anos 1960 e 1970 para focar na década de 1980, período em que emergiram sonoridades eletrônicas — conectando-se com elementos da música de povos indígenas, new age, minimalismo e computer music.

“Eu pensei que [focar nos anos 80] era muito interessante politicamente porque parecia ser uma década esquecida”, contou-me o pesquisador britânico John Gómez, o curador da Outro Tempo, numa entrevista em 2017. “Minha impressão após minha pesquisa e após conversar com os artistas é de que você tinha um inimigo em comum (a ditadura militar), mas nos anos 1980 a paisagem política muda gradualmente e isso muda um pouco. Não é que houve uma crise de identidade, mas houve uma redefinição da identidade”, comentou, elencando o trabalho de Priscila Ermel, Maria Rita Stumpf, Nando Carneiro e outros.

Aquela conversa e aquele disco me marcaram. Trabalho como jornalista musical desde 2015. Eu ainda era um adolescente no ensino médio quando decidi que seguiria essa profissão e coloquei na cabeça que deveria conhecer todos os tipos de música — do samba ao black metal, da música clássica ao frevo. Passava o dia em fóruns e grupos debatendo e buscando informações, ouvindo as listas dos “melhores discos de todos os tempos”, vendo documentários, lendo críticos… E apesar de toda essa informação e mente aberta a um amplo repertório musical, a década de 1980 ainda parecia ser uma espécie de vazio histórico. É como se as grandes obras da música brasileira existissem apenas entre os anos 1960 e 1970, com momentos pontuais de destaque nos anos 1990 do manguebeat. Os anos 1980 eram, como disse John Gómez, quase como uma década esquecida, em que os grandes nomes da MPB e do rock passaram a flertar com gramáticas sonoras mais comerciais que diluíram sua arte ou coisa assim.

Não quero entrar naquela conversa fiada de “qual a melhor década da música”. Na verdade, toda essa conversa é mais sobre sonoridades (e os valores atribuídos a elas pela crítica musical) do que sobre períodos históricos. Desde a revista Bizz, a crítica musical brasileira é fundamentalmente uma crítica de rock, assentada naquilo que Pete Wylie, o guitarrista da banda britânica Wah!, definiu como “rockismo”: um idealismo de que o rock está firmado em valores como autenticidade, rebeldia e densidade artística que o insere no escopo da alta cultura — enquanto a música pop seria sua contraparte comercial e esvaziada.

Assim, o rockismo passa a valorizar também uma sonoridade específica, com destaque para guitarras virtuosísticas. Por outro lado, conforme a música vai se aproximando de sintetizadores e baterias eletrônicas na década de 1980, ela estaria se “desvirtuando” por aproximar-se de uma linguagem mais pop e comercial.

No caso brasileiro, essa disputa ainda passa por um aspecto nacionalista: quando os teclados vão tomando o posto das percussões, muitos críticos e artistas apontavam uma “pausterização” da música brasileira. O maior símbolo dessa discussão foi o trabalho do arranjador e produtor musical Lincoln Olivetti. Pioneiro da engenharia de áudio no Brasil, Olivetti foi o principal responsável por estabelecer as baterias eletrônicas no país e definir o som da MPB dos anos 1980, imprimindo toques sintetizados e um tempero pop da pós-disco music em álbuns de Moraes Moreira, Sandra de Sá, Gal Costa, Tim Maia, Rita Lee, Gilberto Gil e Fagner, entre outros. Embora vendessem bem, todos esses trabalhos eram invariavelmente criticados pela imprensa. A acusação era a mesma: a “pausterização” da música brasileira. Uma resenha publicada no Jornal do Brasil sobre o álbum Som e Fantasia (1984), de Nivaldo Ornelas e Marcos Resende, por exemplo, dizia que o clássico da bossa nova “Influência do Jazz” ficou “desfigurado com a marcação pop da bateria eletrônica”.

Meu maior aliado para furar esse bloqueio dos 80s foram os sebos — e a curiosidade. Desde que comecei a colecionar discos, também na adolescência, ia atrás dos discos dos anos 1970, de grandes medalhões da MPB e do rock. Aos poucos, fui experimentando Djavan. E os álbuns de estúdio de Zeca Pagodinho. Os grooves de Emílio Santiago, Marcos Valle e as joias escondidas do Grupo Controle Digital. A melancolia dos discos de Fafá de Belém. E mesmo as gravações de forrozeiros tinha um ar distinto, algo luminoso e vibrante típico daquele período, caso de faixas como “Energia” (1980), de Sivuca, e “Forró n.1”, de Luiz Gonzaga com Gal Costa.

Existe um movimento global de recuperação e revalorização da musicalidade dos anos 1980. A coletânea Outro Tempo, que citei anteriormente, recebeu notas altas em sites como Pitchfork e Resident Advisor e ganhou até um segundo volume editado pelo prestigiado selo holandês Music From Memory. Outro trabalho com sons nacionais que brilhou no cenário internacional foi Onda de Amor :Synthesized Brazilian Hits That Never Were (1984 – 1994), organizada pelo carioca Millos Kaiser e editada pelo selo britânico Soundway Records. E para além da nossa terrinha, outras cenas oitentistas entraram no radar da “global music”. Podemos citar os casos da rumba e benga, estilos musicais do Quênia que estão entre os últimos lançamentos do selo No Wahala Sound; do borga, que surgiu em Gana e vem sendo divulgado pela Kalita Records; e dos primeiros experimentos com música eletrônica na Argentina, reunidos no disco Síntesis Moderna: an alternative vision of argentinean music (1980 – 1990), da Soundway Records. E ainda tem coletâneas de trilhas de animes e mangás e séries de relançamentos de artistas asiáticos que reposicionam as sonoridades oitentistas no cenário internacional.

Mas no caso brasileiro há algo a mais. Porque, apesar da hegemonia de teclados sintetizadores e baterias eletrônicas, a diversidade da nossa música é tão vasta que não existe apenas um som único dos anos 1980. Afinal, é nesse período que o axé ganha força com um discurso afrocentrado e padrões rítmicos hipnóticos, bem como os expoentes do Cacique de Ramos revolucionam o samba para sempre, o funk começa se firmar como nossa primeira música eletrônica dançante, a lambada sintetiza um suingue pop latino, o pós-punk floresce no asfalto dos grandes centros e a MPB é reconfigurada a partir de uma nova engenharia de áudio nos grandes estúdios. Escantear a nossa produção oitentista é apagar a história de todos esses movimentos em nome de uma suposta brasilidade “autêntica”. É matar a multiplicidade de histórias da nossa música e nosso povo.

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