Antonio Neves e seu samba com nome e endereço

Em seu terceiro disco, “Deixa Com a Gente”, o multi-instrumentista carioca coloca virtuose, legado e boemia lado a lado

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Fotos: Mateus Augusto Rubim

Abraçando a boemia, o trombonista Antonio Neves entoa seu samba com nome e endereço. “Eu compus um samba para tocar ainda nos shows do A Pegada, que veio da vontade revisitar essa época da gafieira. Foi a Rua Mata Cavalos, 91”, introduz o artista. O destinatário dá no Clube dos Democráticos, na hoje, Rua Riachuelo, no centro do Rio. Lá, desde 1867, música, história e devoção se misturam. Fundado a partir da sorte grande de um grupo de foliões ao ganhar na loteria, nos primeiros anos, ainda em outro logradouro, o clube era reduto da causa abolicionista, sendo José do Patrocínio um frequentador fiel. Foi lá que Antonio Neves deu seus primeiros passos no samba de gafieira, período que embala seu terceiro álbum, Deixa Com a Gente. “Foi ali que eu comecei, na Orquestra Republicana, nos bailes de gafieira, ainda na bateria, bem antes do trombone”, relembra. Pegando carona na saudade intuitiva, o musicista carioca abraça suas raízes no novo disco. “Eu tava com essa coisa bem gafieirada na cabeça, aí fui gravar à vera no estúdio de um amigo quando percebi que o disco partia dali mesmo”, comenta.

Entre o choro, o breque e o sincopado, Antonio traz uma banda completa, com elementos essenciais do samba de gafieira, como a presença do violão de sete cordas, tocado pelo renomado Rogério Caetano — famoso por suas contribuições com nomes como Beth Carvalho, Nana Caymmi, Ivan Lins, Alcione, entre outros. No estúdio, ao mesmo tempo em que acena à tradição, Antonio conserva o improviso como força motor de seu samba. “Foi 100% todo mundo à vontade. O Rogerinho mesmo, ele foi fraseando livremente. Até porque, no baile é assim, todo mundo sabe para onde ir a partir da levada”. Acompanhado também, dentre outros, do violão de Glauber Seixas, e do cavacolim de Gabriel Loddo, Antonio celebra a espontaneidade com a virtuose natural de 20 anos de caminhada na música.

Nas oito músicas e 30 minutos que o formam, Deixa Com a Gente é um trabalho que cristaliza a boemia da gafieira, entre paixões, sabores e sons. “Eu sou essa pessoa, de ouvir música junto e jogar conversa fora comendo um negocinho, isso sou eu”, resuma Antonio. Curiosamente, foi fugindo do Carnaval que ele reuniu no estúdio os amigos músicos para registrar seu baile. “De uns tempos para cá, tô meio out do Carnaval, não tenho mais tanto pique. Mas aproveitei e reuni a galera para gravar nesse clima”, explica. Durante a folia, o álbum foi gravado no estúdio do produtor Angelo Wolf, que, no ano passado, masterizou também registros primorosos de Ana Frango Elétrico e Pedro Fonte.

Puxando o coro, Antonio assume a cantoria e dá voz ao lirismo da vida boemia, aludindo a clássicos de Nelson Cavaquinho e João Nogueira. “Sempre gostei daquela coisa meio autodepreciativa do Nelson Cavaquinho. E nessa pegada também, tem o Vida Boêmia (1978), do João Nogueira, que traz isso de beber enquanto se acaba. Fui me guiando por aí”. Para quem pouco cantava, em Deixa Com a Gente, Antonio mais do que interpreta as composições, entrando no personagem “libertino-melancólico”, que abre o álbum no tumulto da devoção vascaína. Na primeira faixa, Dinamite, a percussão labiríntica é acirrada numa crescente que junta a paixão pelo samba e o futebol, combinação pétrea da gafieira. “Eu já fui até em jogo de basquete do Vasco. Não vi o Dinamite, mas vi Romário, Edmundo, Juninho Pernambucano. Eu queria trazer isso, esse ambiente que me formou, de tá vendo o jogo com o pessoal afinando os instrumentos e tudo mais”.

“O Roberto [Marques] é meu ídolo maior, gravou tudo de samba. Receber o trombone pela família dele foi algo que mexeu comigo, de resgatar a gafieira, de passar esse legado para frente”

Quem acompanha sua carreira, num primeiro momento, pode estranhar a mudança de ares em relação a álbuns anteriores. Porém, mesmo cantando, a relação do músico com o trombone em Deixa Com a Gente é, antes de tudo, simbólica. Há pouco mais de dois anos, Antonio teve a honra de herdar o trombone de Roberto Marques, renomado musicista que ao longo de sua carreira colaborou com nomes como Zeca Pagodinho, Tom Jobim, Chico Buarque, Milton Nascimento, entre outros. Além de ídolo, Roberto fez parte do Pagode Jazz Sardinha’s Club, junto de Eduardo Neves, pai de Antonio, e — igualmente consagrado —  sendo assim, também, o seu padrinho no instrumento. “O Roberto é meu ídolo maior, gravou tudo de samba. Receber o trombone pela família dele foi algo que mexeu comigo para resgatar a gafieira, passar esse legado para frente”. Roberto Marques morreu em 2017, sendo devidamente homenageado na capa de PA7.

No álbum, o trombone de Antônio Neves salta no brilho aveludado da gafieira, trazendo linhas mais melancólicas como em Carismático, que remete aos arranjos de Zé da Velha. Em outros momentos, mais efusivos, como em “Abóbora”, Antonio traz o swing dos contracantos, que reluz a clássicos como “Maré Mansa”, de Martinho da Vila. Ao trazer sua abordagem do samba tradicional, Antonio se encontrou na sua relação com o instrumento, em significado e ritmo. “O trombone, para mim, foi algo que teve uma volta. Eu era baterista, comecei a tocar trombone em 2012 e, claro, tinha um pouco de insegurança. Nesse álbum eu senti que esse é o meu estilo”, reflete. Com fluidez e inspiração, Antonio ainda toca bateria no álbum, mesmo sendo em apenas uma música — a que iniciou o processo criativo. “Bateria eu toquei só a ‘Rua Mata Cavalos’, mas ainda assim é algo muito importante pra mim. Eu comecei no samba com cozinha, bateria e baixo se acertando na canja mesmo”, complementa o artista carioca.

“Penso que às vezes quem me acompanha pode não entender — eu saí de um ambiente mais denso como o A Pegada e apareço agora cantando samba, num outro humor. É uma onda”

Com o samba em destaque, o jazz contemplativo do álbum anterior fica um pouco de lado, até porque, nunca foi uma etiqueta definitiva. “Senti a vontade de fazer um lance de samba mesmo, explorar esse lado, sem ficar muito nessa estante do jazz que era onde o A Pegada estava”, compara. A exposição das linhas de trombone em A Pegada Agora é Essa trouxe mais possibilidades do que definições. Com A Pegada, Antonio foi destaque pela fusão da música instrumental contemporânea – e por aí inevitavelmente passa o jazz. De forma que só a inspiração genuína explica, foi durante o período de promoção do álbum apontado como registro de jazz que Antonio encontrou seu samba. “Eu penso que às vezes quem me acompanha pode não entender — eu saí de um ambiente mais denso como o A Pegada, e apareço agora cantando samba, num outro humor. É uma onda”.

Ao longo de Deixa Com a Gente, Antonio revisita lugares por meio do samba – lugares com outros nomes e outras caras. “A Lapa é o lugar onde tinha tudo isso. E é curioso que é um vai e vem. Por um tempo, tava perigoso, aí teve uma renovação nos anos 2000, aí depois foram aparecendo outras coisas no lugar… Mas era onde o samba tinha o seu nome”, recorda Antonio. Num exercício de ilustração, a imagem do samba como essa mesa democrática, com fartura e companheirismo é resgatada na última música do disco, “Lá Tinha. Na faixa, ao mesmo estilo de Chico Buarque em Feijoada Completa”, um cardápio completo vai sendo discorrido com a batucada como pano de fundo. “Eu me lembro que desde moleque eu ia num restaurante de Santa Teresa — Sobrenatural, o nome. Era o local de encontro de vários sambistas, o Sombrinha tocava lá, Toninho Geraes, o Zeca (Pagodinho) era muito amigo da dona, que é a Sérvula… Música, comida, uma cervejinha. Clássico, sabe?”.

Mesmo não tendo essa pretensão, Antonio traz na sua guinada ao samba a atenção para um cenário agravado pela pandemia — o desaparecimento de espaços público-históricos do samba. “Eu ainda peguei o finzinho da época dos bailes… Mas, é, você não acha mais, a pandemia prejudicou muito o que já tava rolando, esses espaços estavam sumindo no Rio”, explica. Se, na sua gênese, a gafieira era assim chamada como tentativa de marginalizar uma manifestação cultural em difusão, o apagamento atual se dá pelo esquecimento de símbolos primitivos. “Acho que, também, fazer um disco assim é uma forma de dizer para as pessoas que isso permanece, que tem nome, elementos, lugares, símbolos”, reflete Antonio. Como uma das muitas contradições modernas, os grandes centros, ainda que mudados, têm nas suas ruas o endereço afetivo mais gravado que o geográfico – como um patrimônio imutável da inspiração artística. “Fico pensando: morei em São Paulo por pouco tempo, voltei para o Rio no meio da pandemia, em outro momento. Apesar de tudo, esse disco não existiria se eu não estivesse no Rio”.

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