Arcade Fire em Filme: Muito Além do Disco

Banda canadense revela grande cuidado com registro de imagens

Loading

Vivemos tempos cada vez mais corridos, certo? Enquanto escrevo essas linhas, muita coisa já mudou no mundo, para sempre ou até amanhã, mas que vai influenciar em nossa vida de alguma forma. Bandas, cantores, compositores, todos eles lidam com a efemeridade nos nossos tempos, aquela sensação de que as canções e álbuns vão escorrer pelos nossos dedos, que irão se perder num grande banco de dados no qual nossa memória não saberá exatamente onde buscar as informações. Viveremos assim, sob a influência cada vez maior dessa lógica, formando uma enorme multidão de inocentes úteis. Tenebroso, né? Claro, isso é exagero, mas a rapidez dos nossos tempos é tema de estudo nas ciências humanas e é angustiante para quem já testemunhou o mundo andando em outra velocidade. Sendo assim, qualquer tentativa que uma banda, por exemplo, resolva empreender visando ampliar o espectro de lembrança que sua obra produza, é louvável. Se o artista é legal e detentor de uma obra de destaque em meio a esses mesmos tempos líquidos, melhor ainda, certo? É o caso dos canadenses do grupo Arcade Fire, que soltaram um belo “minidoc” há poucos dias.

O pequeno filme mostra a celebração da obra de David Bowie promovida pelos canadenses, algo ainda mais atual por conta da controvertida apresentação de Lady Gaga no Grammy, homenageando o velho Camaleão. Se a visão de Gaga acerca da obra e signos de Bowie despertou opiniões divididas, a festança de Arcade Fire nas ruas de Nova Orleans está acima dos críticos e chatos em geral, simplesmente porque carrega uma dose incrível de espontaneidade, não parecendo, em nenhum momento, algo armado ou provocado com vistas ao registro oficial de algo. É um monte de gente andando nas ruas da chamada “Crescent City”, acompanhada por músicos da tradicionalíssima Preservation Hall Jazz Band, cantando e tocando músicas clássicas do compositor morto tão precocemente há pouco mais de um mês. As pessoas seguem alegres pela rua e os integrantes de Arcade Fire estão entre eles, devidamente maquiados com símbolos das fases distintas de David, no meio da multidão, cantando canções como Heroes, num tributo nada triste mas muito reverente. Convém lembrar que a banda e o cantor/compositor já haviam trabalhado juntos no último álbum do grupo, Reflektor, lançado em 2014, no qual David gravou vocais de apoio. Depois de lançando o disco, ambos andaram se apresentando juntos.

Falando em Reflektor, convém lembrar que a estreia dos canadenses em documentário foi, justamente, com o registro do processo criativo e gravação das canções deste álbum. The Reflektor Tapes foi lançado ano passado, consistindo numa bela bisbilhotada no trabalho do pessoal em estúdio, fornecendo acesso total para o espectador adentrar os momentos de intimidade criativa dos sujeitos. Com a direção do inglês Kahlil Joseph, o documentário motivou o lançamento de faixas extras para o próprio álbum, que vieram encartadas sob forma de fita cassete, numa edição especial bonitona e rara mesmo para fãs dedicados dos canadenses. Além de mostrar as cenas tradicionais do estúdio, Joseph conseguiu registrar alguns momentos de Arcade Fire no palco, especialmente em apresentações feitas em Londres e Los Angeles, bem como efetuar entrevistas com os integrantes em momentos cruciais pré e pós show. Além delas, imagens e sequências dos integrantes no Haití, onde compuseram várias músicas e se inspiraram, também estão presentes e conferem certo ar de exotismo ao todo. A escolha do país caribenho não foi casual, uma vez que os pais da integrante Régine Chassagne são de lá.

The Reflektor Tapes fez sua primeira aparição mundial no Festival de Toronto, no fim do ano passado, com recepção moderada. Alguma parte da imprensa especializada encrencou com certo ar de vídeo institucional que o longa possa conter, algo que seria incompatível com o formato para o cinema, mas que não comprometeria sua apreciação em audiências reduzidas, no conforto do lar, em frente a telas menores. Além disso, o filme foi acusado de não ter muita preocupação com informações prévias sobre a banda, figurando num tipo de obra mais apropriada para iniciados e fãs da obra dos sujeitos que para alguém desejando conhecê-los, preferindo passar mais tempo documentando brincadeiras internas dos integrantes.

Tanto o documentário para o cinema quanto as cenas registradas em Nova Orleans mostram algo interessante sobre Arcade Fire: mesmo sendo uma banda do nosso tempo, musicalmente falando, a banda tem pretensões maiores que o mero registro de álbuns e canções. Sua obra vem em evolução constante e o grupo parece ter consciência de sua importância para os fãs, demonstrando preocupação em registrar imagens e lançar esses filmes, aspirando um posicionamento mais sólido neste setor visual. É mais que gravar clipes, algo que as bandas são obrigadas a fazer desde os anos 1980, mas recuperar uma tradição de filme-documentário de shows, turnês e intimidade, que parece perdida ou fora do mapa de bandas formadas a partir da década de 2000. Os canadenses estão posicionados, pelo menos neste sentido, à frente da maioria de seus contemporâneos. Melhor para fãs, melhor para todo mundo.

Loading

ARTISTA: Arcade Fire
MARCADORES: Documentário

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.