Artelheiro cria o herói que sempre quis ter (e ser)

Conversamos com o artista paulistano sobre “A EPOPEIA DE CHARLES”, seu disco de estreia, lançamento do Nebulosa Selo que chega embalado pelo grandioso single “JESUS DE CYCLONE”

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Fotos: Thalita Guimarães

Dos 13 aos 15 anos, Artelheiro gravou seus primeiro funks com aqueles microfones de computador e em parceria com amigos que mantém por perto até hoje. Chegou a fazer alguns shows, mas parou depois que viu uma mulher ser assediada enquanto ele cantava — e, mais tarde, ouviu do dono da casa que a responsabilidade era dele, na época, um menino de 14 anos. 10 anos depois, está na pista o disco de estreia de Elias Santos, hoje com 25 anos. A EPOPEIA DE CHARLES é mais um lançamento da Nebulosa Selo e compõe a pesquisa de sonoridade que o produtor musical Levi Keniata vem desenvolvendo com os artistas do selo, como Marabu e Ôbigo – uma fusão de funk e samba, com o rap colorindo o pano de fundo sutil e discretamente . A EPOPEIA DE CHARLES faz jus a o título é uma em uma jornada épica, fictícia e plural, tudo na mesma medida, com um único personagem central: Charles.

Criado entre discos de gospel e sertanejo, Elias não pode deixar de ficar fascinado por aquela capa de CD azul royal com um homem encostado no carro. Nada Como Um Dia Após Outro Dia (2002) foi o primeiro disco que ele ouviu inteiro, do começo ao final, ali mesmo no carro do seu pai, aos oito anos de idade. Um primo tinha o encarte do álbum e eles se juntavam para admirar a identidade visual de Klaus Mitteldorf, que, nos meninos, de cara remetia a referências de rap da gringa, como Snoop Dogg e 50Cent, tocando adoidados nas rádios e na MTV. Em seu trabalho de estreia, no entanto, a sua maior referência é o tom cinematográfico de Sobrevivendo no Inferno (1997) e a busca pela alegria de Jorge Ben Jor no clássico Tábua de Esmeralda (1974).

Em suas nove faixas, A EPOPEIA DE CHARLES é uma história comum de ambição, revolta e crime. Sonoramente, os destaques são “DUAS PEÇAS”, “JESUS DE CYCLONE” e “LÁ FORA”. Se você já ouviu CÉLULAS (2020), trabalho autoral de Keniata, talvez algumas linhas marcantes de dois anos atrás se sobressaiam agora, como “Tecnologia avançada do século XV que matou Sabota e Tupac, mais antiga que o nariz da esfinge, injetando neurose no pote dos drake nessa guerra que sempre foi contra nois, mas eles querem nos convencer que é contra o crack”, de “JESUS DE CYCLONE” e “45mg” — esta última que, inclusive, tem como abertura uma interpretação de “Take It Easy, My Brother Charles”, de Jorge Ben Jor.

Por mais que Tábua de Esmeralda seja a referência confessa do disco, o Charles do Jorge Ben Jor (1969) se encontra muitas vezes com o Charles de Artelheiro. É como se a EPOPEIA DE CHARLES colocasse uma lupa sobre a faixa “Charles, Anjo 45”, de Jorge, em que a história se desenrola de forma mais ligeira, em forma de homenagem e na linguagem do samba rock: “Protetor dos fracos e dos oprimidos, Robin Hood dos morros, rei da malandragem, um homem de verdade com muita coragem. Só porque um dia Charles marcou bobeira, foi tirar sem querer férias numa colônia penal.” E se Artelheiro é o apelido que Elias ganhou no coletivo do seu bairro, Cores nos Destroços, por ser aquela pessoa que sempre joga as ideias para frente, neste disco ele assume a postura de um narrador que joga o Charles de Jorge para o presente, com todos os vícios, prazeres e problemas da São Paulo dos anos 2020.

Como a última faixa, “LÁ FORA”, é uma carta para alguém na prisão, eu convidei o Artelheiro para ir ao sarau da AMPARAR, uma associação de amigos, familiares de pessoas encarceradas e sobreviventes do sistema carcerário. Ele topou e, no mesmo dia, nós fomos. De cara, ele encontrou um conhecido da época em que frequentava o Sarau Cooperifa. Depois, me contou que voltou pra música (e para o funk) porque cresceu no mesmo bairro que Wellison Freire, o produtor executivo da Nebulosa. Eles se aproximaram aos 17 anos porque Artelheiro percebeu que o Well era a única pessoa do seu meio que curtia uns rap mais underground, o que na época era Síntese e DV Tribo. Cresceram juntos no Jardim Apurá, bairro do extremo sul que parece uma península, cercado pela represa Billings por todos os lados, exceto por um único caminho de terra, para entrar ou sair.

Algumas linhas de Células (2020) se repetem no seu disco, uma delas é de “PRATA” quando você diz que a justiça é de duplo machado e você afirma isso de novo na faixa de abertura de A EPOPEIA DE CHARLES, a “ARAUTO”. Existe uma espiritualidade na música para você?

Mano, a música preta é permeada pela espiritualidade. O fundamento do atabaque é o terreiro. Diferente dos Estados Unidos, onde houve muita repressão aos tambores, o Brasil teve um vínculo muito forte com os instrumentos de percussão. No Brasil, os pretos conseguiram se organizar dentro dessa musicalidade que vem das batucadas, da musicalidade afro, tá ligado? Eu acredito muito que o tambor tem uma gramática, ele diz alguma coisa, ele conta histórias. Pra mim, é impossível desvincular as religiões de matriz africana dos tambores. E, mesmo dentro do funk putaria, tem o sagrado. Eu acredito que o sagrado e o profano não são antagônicos. Essa é uma ideia ocidental, cristã, católica que num bate a brisa pra mim, tá ligado? Eu acho que o profano e o sagrado andam juntos, assim como a morte e a vida. Na faixa “VIAGEM” existe essa analogia da vida dando a mão para a morte tranquilamente, sem antagonismo nenhum. “VIAGEM” é eu cantando sobre encontrar com a morte de uma forma tranquila, como uma posição de supravivência, tá ligado? Por isso que ela começa com “Eu estou partindo, mas talvez eu não volte” e termina com “Boladão nessa viagem que eu encontro Felipe”, sobre o Felipe Boladão, que já morreu. Então, se a morte for algo ruim, eu desconheço. Quero me encontrar com a minha espiritualidade, eu quero encontrar com o Felipe, com Bezerra da Silva, espiritualmente eu quero viver estando tranquilo com a morte, se não for uma morte trágica, entendeu? Acho que o racismo impôs pra nós a morte como algo muito trágica, muito ruim, porque a gente está sempre próximo da morte, né, mano? A gente nunca sabe, né? É muito comum pensar em morte quando você é uma pessoa preta em São Paulo. Mas, dentro das religiões de matriz africana, não existe essa brisa da morte ser algo inferior ou pior em relação à vida. Eu acho que toda música preta é espiritual, sendo rap, samba, funk, reggae.

Me conta sobre o processo criativo de “JESUS DE CYCLONE” e LÁ FORA.

Eu escrevi “JESUS DE CYCLONE” em 2020 e foi um teste que eu estava fazendo, eu não tinha pretensão nenhuma de fazer uma música tão grande. Eu queria fazer um funk porque os caras da Nebulosa queriam que eu voltasse a fazer funk, então fui tentar. Quando saiu “JESUS DE CYCLONE”, eu pensei “é, tem alguma coisa especial aí”. “LÁ FORA” eu escrevi em 2019 depois de uma conversa que eu tive com um parceiro meu que tem depressão. Ele me deu um salve três semanas antes de eu começar a escrever e pediu para a gente trocar ideia, para ajudar ele a encontrar uma luz porque ele não estava aguentando mais, tá ligado? Eu não era uma pessoa muito apta a dar bons conselhos porque em 2019, eu estava num momento bem deprimido também, mas ele me chamou. Eu lembro que ele me disse que estava precisando de uma luz, que não tava aguentando mais o trampo, não tava aguentando mais a vida. A gente se encontrou no Jardim Apurá, troquei ideia com ele e aí depois passou umas duas semanas e era eu quem estava deprimido e… eu comecei a lembrar do que eu falei pra ele. Foi quando eu escrevi “LÁ FORA”. Eu já estava na brisa do Jorge Ben também de tentar encontrar a alegria, só que no fim “LÁ FORA” também é meio melancólica.

Olha, que loucura, eu achei que “LÁ FORA” tinha sido escrita para alguém encarcerado.

Mas é! A cena é que “LÁ FORA” é uma música que não é só para o meu amigo, é para quem está privado de liberdade. O que eu falei pra ele na época foi que ele estava se privando da liberdade dele porque ele só trampava. Você precisa ver a luz do sol. Nesse disco, a gente precisava terminar dizendo que o Charles vai voltar do cárcere. O Levi gostava muito dessa, mais do que eu. E ele queria de qualquer forma fazer essa música um samba rock com funk, ele queria porque queria. É a carta pro Charles na prisão. Eu escrevi para um amigo, mas agora, no mundo, é tanto para quem está preso quanto para quem não está conseguindo levantar da cama mais. É para quem está esgotado. “Lá fora é bem melhor para sua missão”. Esse disco conta situações de um mesmo personagem que, ao mesmo tempo em que é um, são vários. É um herói… ou anti-herói. O épico é isso: a história de um herói ou de um povo heroico. Essa é a caminhada de Charles até ele ser preso na “DISPERSA” e, a partir da “PJL” e “ARAUTO”, descobrem que ele foi preso. Na “JESUS DE CYCLONE”, a gente vê o Charles num mundo mais espiritual dizendo “me tornei mais perigoso a partir do momento em que descobri que minha vida não valia nada”. “LÁ FORA” sou eu mandando uma carta pra ele na prisão.

“O disco representa a minha trajetória, a de ser um mano que queria ter uma Ducati, uma XT. É a história do meu bonde. Ao mesmo tempo, mais velho, saquei a importância da política. Então, eu ainda quero ser essa pessoa, mas com consciência política, racial e social. E se eu tiver de XT, vai ser para trazer de volta o que tomaram de nós”

E aí, herói ou anti-herói, o que você acha?

Herói, mano. Herói que eu sempre quis ter e nunca tive, inclusive. A construção do homem ideal na periferia, que não é um homem desconstruído, mas é um homem em descoberta de si próprio. Ele representa a minha trajetória também, de ser um mano que queria ter uma Ducati, uma XT. É a história do meu bonde. Ao mesmo tempo, conforme eu fui ficando mais velho, eu saquei a importância da política na minha vida. Então, eu ainda quero ser essa pessoa, mas com a consciência política, racial e social. E se eu tiver de XT, vai ser para trazer de volta o que tomaram de nós. Esse é o heroi da quebrada: o cara que entende o fundamento, a trajetória, o mundo. É quem tem o mundo na palma da mão e que consegue olhar por várias perspectivas e ir em busca da paz e da justiça. Esse disco é sobre paz, justiça e liberdade do começo ao final.

O lema do PCC.

Exatamente. Sabe qual é o livro favorito do Marcola?

Não. Qual?

Assim Falou Zaratustra, de Nietzsche. Zaratustra é um homem que sobe para as montanhas em um certo momento da vida dele e fica dez anos em silêncio. Quando ele está lá nas montanhas, ele começa a perceber que tudo que ele viveu era meio teatral, meio mentiroso, meio irreal. Porque ele fica em silêncio só que ele a mente dele não. Ele até consegue ficar em estado meditativo, mas depois que ele sai desse estado, ele volta enxergando tudo com muita clareza. Então, ele sai da prisão que ele tem dentro dele e olha o mundo na palma da mão dele. E aí ele desce a montanha. Porque não faz mais sentido ficar ali, ele precisa contar pra todo mundo o que é essa fantasia que a gente sempre viveu. É o momento em que ele se encontra com a liberdade dele. Só que agora ninguém mais acredita nele porque ele está contestando as fantasias que foram montadas, as mentiras que foram montadas. Ele é perseguido e morto como louco. E aí, o que isso tem a ver com Marcola?

“Acho que o racismo impôs pra nós a morte como algo muito trágica, muito ruim, porque a gente está sempre próximo da morte, né, mano? A gente nunca sabe. É muito comum pensar em morte quando você é uma pessoa preta em São Paulo. Mas, dentro das religiões de matriz africana, não existe essa brisa da morte ser algo inferior à vida. Eu acho que toda música preta é espiritual, sendo rap, samba, funk, reggae.” (Foto: Igor Miranda)

O que isso tem a ver com Marcola…Não sei. Eu acho muito curioso que toda facção se forme dentro das prisões. E tem esse balanço entre conformismo e resistência. Olha que louco: é uma organização que surge, mas não com o objetivo de acabar com as prisões, mas pela melhoria da qualidade de vida do preso — e olha só como isso é resistência. Mas tem um conformismo aí também, o PCC domina o estado de São Paulo há mais de dez anos; como que isso não volta para a comunidade?

Eles trabalham com a realidade. Não tem como bater de frente com o Estado. É o que eu estou falando pra você: esse não é um disco utópico, é um disco real. Tem “DUAS PEÇAS” porque é a realidade, tem os bailes, tem o tráfico, tem uns assaltos. Na realidade, não tem como o PCC ser algo revolucionário. O que aconteceu quando os caras se rebelaram contra o Estado e mataram uma pá de policial? Os policiais mataram 500. [Referência aos Crimes de Maio de 2006 em São Paulo] É a lei do Estado. Então, o PCC se tornou os irmãos pelos irmãos. Até hoje eu não acredito que a finalidade do PCC seja o dinheiro, o dinheiro é o meio pelo qual se encontra o progresso, como qualquer família burguesa na sociedade que a gente vive, tá ligado? Eu não sou comunista, mano. Gosto muito do disco do Don L, acho um disco bonito porque nele ele sonha. Mas eu não acho que vai ter revolução. Eu estou vivendo a realidade em São Paulo, Brasil, e nessa realidade a gente vai cultivando as ideias, politizando as pessoas da periferia, tá ligado? O caminho que eu fiz até agora foi politizar os Charles. Para que eles votem, para que sejam ativos e se vejam como sujeitos de direito. Aliás, uma revolução na minha concepção já foi feita quando o PCC conseguiu colocar na cabeça do preso que ele é um sujeito de direito. Isso é uma revolução. Agora querer que os caras façam uma revolução em São Paulo e cuidar das periferias é outra coisa. Porque, nesse caso, eles têm que negociar com a polícia e isso é quase impossível, entendeu? É um caminho em que você vai sempre perder. A polícia tem o monopólio da força, os cara tem o monopólio das instituições. Então, o PCC é pelo progresso dos irmãos. Agora, na periferia, quem quer correr pelo certo são as pessoas ativas para se envolver com a política, seja política institucional, seja política de rua. A gente tem que fazer o máximo para que o mano da periferia não se torne um irmão do PCC, que ele não precise disso, entendeu? Ele pode ser o que ele quiser. Esse é o corre.

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ARTISTA: Artelheiro