As histórias entrelaçadas de Tocai

Diferentes forças criativas se reúnem em uma aglutinação espontânea de música, poesia, prosa e desenho

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Fotos: Beatriz Figueira e Danilo Filgueiras

Nada neste mundo é permanente, assim como os planos de uma turma de músicos habituada a se encontrar em um sobrado no bairro carioca da Gamboa para fazer som. O Tocai surge em tais circunstâncias. Orquestrado por Danilo, ao lado de Felipe Arêas na produção e mixagem, o lançamento do EP autointitulado comprova o fluxo ininterrupto da vida em transformação – um dos motes do trabalho audiovisual desenvolvido sob uma perspectiva mais ampla em relação aos formatos tradicionais de música.

Consonante às ideias da criatividade adquirida com a prática, aliada à imprevisibilidade típica da vida, o álbum traz um emaranhado de intervenções. O resultado são quatro faixas intituladas como “música-desenho-texto”, três habilidades – supostamente – distintas. Os traços são feitos pelas mãos de Beatriz Figueira e Danilo Filgueiras e seguem a linha-fio orgânica condutora da narrativa em concepção sucessiva. Já a tradução em palavras foi feita pela antropóloga Julia Sá Earp, pesquisadora sobre os índios Mebêngôkre e vestimentas das mulheres kayapó.

No decorrer do mestrado em Urbanismo, Danilo se deparou com as ideias do antropólogo Tim Eagle, que discorre a respeito da capacidade de toda atividade humana ter espaço para a criatividade, sem barreiras. A partir desta reflexão são desenvolvidos os processos do grupo – uma aglutinação espontânea de poesia, ondas-sonoras e desenho topográficos. Um dos destaques do Tocai é a retroalimentação de diversas expressões corporais, conforme as palavras de Danilo. “A prática criativa não se separa no Tocai: desenhar, escrever e fazer música são coisas naturais, todos podem executá-las. Qualquer atividade humana pode ser caracterizada como criativa, inclusive, as braçais, consideradas ‘não-intelectuais’. Não faz sentido construir uma barreira entre texto, música e desenhos produzidos por pessoas coletivamente. É preciso extrapolar o fonograma musical em si”.

Hoje, a ilustração de “Tão Longe” é lançada com exclusividade no Monkeybuzz, a último do ciclo das quatro “música-desenho-texto”:

Tanto som quanto verso e desenho fluem de maneira intensa quando em sinergia de modo análogo ao “efeito entourage”. De acordo com o release do projeto, “‘Pelo Caminho do Meio’ segue as linhas de devir, que são como o curso das correntezas que moldam as margens do rio. ‘Circulei’ apresenta as linhas de redemoinho, que são como os ventos que movem a umidade dos oceanos. ‘Tão Longe’ relembra as linhas nativas, os fios de memórias que constroem o presente. ‘Te Mata Viver’ trabalha as linhas de crescimento, como as raízes que crescem a cada fissura do solo”.

“A Beatriz tem um trabalho de instalação envolvendo memórias de rachaduras de pisos e calçadas. Dentro do Tocai, pensamos cada música como uma fotografia, seguimos a ideia do emaranhado sendo preenchido com foto, desenhos diferentes de topografias. Eu preencho com as linhas, o trabalho é feito a quatro mãos, cada faixa tem seu desenho e texto. A Júlia é antropóloga, ceramista, ela ajudou muito a pensar o conceito da linha não como elemento gráfico para controlar a música pronta. Ela redigiu quatro textos que não são as letras das músicas” – Danilo Filgueiras

Deve ser muito boa a energia dessa casa ocupada com música desde 2017, cenário do surgimento do Tocai. As sessions emanam batuques, tambores e bateria em reverência à ancestralidade africana de forma muito especial. Danilo é integrante do Tambores do Olokun, coletivo percussivo e de dança que tem como inspiração e referência a linguagem do candomblé e da formação dos maracatus de baque virado do Recife. Foi nessa jornada que ele conheceu Alexandre Garnizé, nascido em Camaragibe e mestre do grupo. O artista pernambucano encabeça as percussões do Tocai.

Além de percussionista, Garnizé ficou conhecido nos anos 1990 como baterista do lendário Faces do Subúrbio, considerado o primeiro grupo instrumental de Rap no país e indicado ao Grammy Latino de 2001. A crítica social contundente da banda, ligada ao movimento Manguebeat, vinha da atuação de todos músicos em projetos de educação para crianças de comunidades carentes. As rimas incomodavam o sistema. Em 1997, ao executar a música “Homens Fardados” em um show em Recife, cerca de 80 policiais agrediram violentamente o público com a justificativa de que interpretaram as rodinhas de pogo como “brigas generalizadas”. Até o governo estadual de Pernambuco pediu desculpas em uma nota oficial.

Garnizé integrou a banda F.U.R.T.O., idealizada por Marcelo Yuka, morto em 2019 e um dos fundadores do grupo Rappa. Ele e o matador Helinho constituíram o tema do documentário de longa-metragem O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas, que aborda os dois caminhos opostos trilhados pelo músico e pelo assassino – ambos vindos do mesmo bairro. De 2001 a 2004, ele participou do Percuba, um dos mais renomados festivais de percussão do mundo, realizado em Havana, Cuba. Desde 2012, ele retoma as origens da infância nos terreiros de candomblé no Tambores de Olokun, no qual congrega os orixás e o maracatu inicialmente em oficinas na escola de percussão Maracatu Brasil, onde ele ministrava aulas. O mestre já participou de workshops pela Europa, Ásia e África e é integrante e compositor da Abayomy Afrobeat. Músico percussionista, compositor, historiador, pesquisador, antigo Conselheiro Nacional da Juventude, ele fez parte de diversas organizações não-governamentais, como as ONGs Tortura Nunca Mais e Luz da Periferia, além de ter sido o idealizador do Projeto Criarte, responsável por tirar centenas de crianças e adolescentes das ruas.

Vale destacar as origens variadas dos tambores tocados pelo mestre nas gravações do Tocai: muitos são peças raras, cheias de história, adquiridas em viagens pela África ou são utilizados em rituais afro-religiosos. Outra surpresa é Ynaiã Benthroldo na bateria, uma das raras participações do músico fora do Boogarins, como ele faz questão de falar: “Eu tenho uma dedicação muito forte ao trabalho da minha banda, que é uma coisa a priori na minha vida. Eu me envolvo de forma muito pontual com outros projetos. Nos últimos seis anos de Boogarins, eu fiz algumas participações como ‘sideman’, digamos assim. Eu toco com o Giovani Cidreira em algumas apresentações, eu e o Benke gravamos com ele. Participei do álbum da Daniele Moura, produzido pelo Gabriel Bubu da banda Do Amor. Tem muito a ver com o momento, eu já estava mais disposto, com tempo disponível para trabalhar em outras coisas. Sou muito perfeccionista para conseguir participar de qualquer jeito, sem me dedicar o bastante. Eu tento desenvolver coisas que me agradam a partir das minhas ideias musicais, além de experimentar, conduzir algumas ideias de outras pessoas. Tenho planos de trabalhar na produção de um disco, como posso dizer, sou um aspirante a produtor. Sou um cara mais de banda. Agora, tenho descoberto essa vontade de gravar outras paradas. Eu tenho umas ideias, mas as julgo talvez experimentais demais para caberem em alguns lugares e formatos. Então, me julgo músico instrumentista de execução em estúdio e em palco”.

Ao ser indagado sobre a nova empreitada em uma proposta musical distinta do Boogarins, o artista diz: “A experiência no Tocai é muito interessante, porque, naturalmente, é uma coisa bem diferente já do que eu faço no Boogarins. Vale por toda associação conceitual do projeto. A questão do desenho e da poética do texto, que caminha por linhas e curvas. Existe toda uma construção estética baseada nisso. Esse lado conceitual das músicas marca uma diferença gritante em relação ao que faço na outra banda. O Boogarins segue um conceito mais espontâneo de criar as coisas. A forma como a poética também aparece ali é uma coisa muito individual de cada um dos membros, sem uma estética clara de cada um. Mas não há um conceito para determinar o trabalhar em si, digamos assim, musicalmente é bem diferente. O Tocai tem um apelo percussivo muito maior. O Danilo e o Garnizé desenvolveram linhas percussivas marcantes, e bem fortes nesse EP. Foi um diálogo muito interessante, porque como eu toco em uma banda de rock, as referências que o Danilo trouxe no álbum são muito interessantes das raízes da música brasileira, do Maracatu e suas derivações, dos toques de candomblé, a coisa dos tambores. Como baterista foi muito bacana participar desse diálogo percussivo”.

Produzido por Felipe Arêas, que assina o disco da cantora Tainá, presente nas vozes da faixa “Te Mata Viver”, ele soma forças na guitarra, baixos e afeitos. Danilo se desdobra em vocais, violão, guitarra, baixo percussão e synths. Como segunda voz, estão a cantora e roteirista Helena Dias e a astróloga Rosa Benchimol, amiga conhecida no Tambores de Olokun. João Casotti, um dos sócios da Comuna e amigo de infância que tocava com Danilo e DJ Carrot Green em um projeto chamado Casebre, está no violão. A mixagem é de Ricardo Garcia.

Acostumado a ouvir Clube da Esquina e Milton Nascimento na infância, Danilo encerra o papo agradecendo à força dos amigos para embarcar nessa jornada musical. E fala sobre referências. “O Guigo e o Carrot Green foram incentivadores do meu trabalho, a trajetória deles em projetos independentes, como a Climão, é inspiradora. A música eletrônica hoje está muito além do som, tem muitas camadas. Entre as referências brasileiras atuais estão Ana Frango Elétrico, Boogarins, TETO PRETO e outras iniciativas. Ultimamente, eu tenho ouvido e me identificado com Anná, o último disco dela aborda a música como uma colagem, uma abordagem próxima a do Tocai”.

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ARTISTA: Tocai

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