As rupturas e a atividade na queda livre de Caxtrinho

Sem tempo para meias palavras, ironia e crítica amarram o samba de “Queda Livre”, álbum de estreia de Paulo Vitor Castro, o Caxtrinho

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Fotos: Rafael Meliga

Numa seleção peculiar de fatos variados que são vistos nas ruas e das janelas de ônibus do Rio de Janeiro, Caxtrinho traz em crônica e samba – se é que são separáveis – contradições e dinâmicas sociais vorazes da atualidade. O registro das observações ácidas e irônicas do músico de Belford Roxo dá forma ao seu álbum de estreia, Queda Livre, um lançamento QTV — divulgado em agosto deste ano. Partindo do violão percussivo do samba em choque com o maximalismo do rock psicodélico, o debut traz recortes do cotidiano fluminense com uma crítica que observa à distância, com opiniões e resoluções firmes, elucidativas, instigantes.

Queda Livre é, dentre muitas coisas, uma metacrônica, na qual as anedotas do personagem principal, Caxtrinho, apontam para natureza inquieta e satírica do cantor e violonista Paulo Vitor Castro. Criado numa família de músicos, ele iniciou na música desde cedo, influenciado pela trajetória dos tios nos festivais de pagode autoral da Baixada Fluminense. A literatura e a internet foram espaços de descoberta para ele, um curioso desde sempre, que entre o violão e o tantã foi formando suas noções de composição. Mesmo escrevendo músicas desde os 15 anos, as faixas que formam o disco é resultado de um processo criativo de 2019 para cá, que se iniciou com a composição dePapagaio (com as vozes de Negro Leo), música que entre violão de samba, bateria jazzística e guitarra blues-rock, traz na letra o desprendimento e a sagacidade de quem não pode e não dá bobeira.

Mesmo sendo um trabalho que parte de uma perspectiva de observações e experiências pessoais, Queda Livre é um álbum em que a livre experimentação do samba em ambiente coletivo dita o tom. Gravado entre 2021 e 2022 nos estúdios Rockit!, estúdio 304 e Primatas, no Rio de Janeiro, o álbum traz composições de Caxtrinho e também colaborações com Romulo Fróes, Kau, Pedro Oleare e Xuxuvevo. Já as sessões de gravação contaram com participações de nomes como Ana Frango Elétrico, que toca piano na música “Merecedores” e faz parte do coral em outras duas mais, e Negro Leo, que canta em “Papagaio” e “Brankkkos”. As colaborações foram pensadas e efetivadas durante as gravações — Caxtrinho e seu repertório são conhecidos da cena carioca por apresentações intimistas n’O Escritório, casa de shows no centro do Rio.

Do palco para o estúdio, Queda Livre foi ganhando suas formas atuais depois de conhecer o dedo e as guitarras do compositor e produtor carioca Vovô Bebê. Após uma instantânea identificação artística, Caxtrinho foi convidado por ele a trabalhar nas suas primeiras gravações. As demos iniciais logo chegaram a Negro Leo e Bernardo Oliveira, produtor musical do selo QTV. A partir das conexões iniciais, a torrente criativa que marca a sonoridade do trabalho foi se desenrolando “como um pagode”, sem delimitações, predefinições ou roteiros. Na produção, Eduardo Manso se junta a Vovô Bebê — guitarristas e núcleo psicodélico do disco. A formação da banda é somada ainda pelo baixista João Lourenço e o baterista Phill Fernandes.

Com desenvoltura e objetividade, Caxtrinho conta em entrevista como é observar o cotidiano — e se colocar em observação — e reflete sobre a rotulação do samba.

Bora começar pelo começo — você tem uma relação com a música que vem de família, certo? Queria saber como as coisas foram se desenrolando, numa linha do tempo, até seu autodescobrimento como compositor e na intimidade com o violão?

Bem, essa é uma pergunta muito boa. Desde que eu me conheço por gente, toco instrumentos na minha casa, sempre foi uma família de músicos. Tenho tios que tocavam em festivais de grupos de pagode autoral em Duque de Caxias. Era algo que ressoava muito dentro de casa, lembro de sempre ter muitos instrumentos de percussão. O violão eu peguei muito desse contato com meus tios — tenho dois, irmãos da minha mãe, que tocam violão. Já com meu pai eu fui pegando muito do tantã. Então, esse meio do samba foi minha base.

Nos anos 2000 — eu nasci em 97, sou uma criança dos anos 2000 — teve aquele estouro final dos medalhões do samba, que na época era o Jorge Aragão, Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz. Também estava começando a surgir aquela febre de grupos de pagode. Então, tanto em casa quanto na cultura ao meu redor sempre foi muito presente a questão do samba, essa relação com a percussão, com a coisa da síncope, do ritmo. Depois, com uns 15 anos, aprendi a tocar violão.

Com o samba já sendo parte de mim, na adolescência tive um momento metaleiro também, frequentei muito evento de metal… Aí veio a moda do indie rock, ouvi muito também, e Michael Jackson… Dito isso, fui tentar compor as primeiras músicas com uns 17, 18 anos — umas coisas bem pobres, na verdade. Uns três anos depois, aí sim eu vou fazer a primeira música que eu gostei.

Mesmo já fazendo um tempinho desse começo, o Queda Livre é o seu álbum de estreia. O quanto desse começo está presente no álbum que só saiu agora em 2024 — em composições ou ideias que formariam o disco?

Acho que desse momento inicial, as músicas do álbum carregam essa estética meio mistureba da minha adolescência, sabe? Fica muito nítido de onde vêm algumas referências sonoras. E acho que isso tem a ver com o meu ambiente musical, de estar sempre envolto por muitos gostos diferentes. Parando para pensar, fazer música, para mim, sempre foi algo difícil de mensurar em níveis, sobre onde eu queria chegar, ou qual “qualidade” queria alcançar. Então, dessas composições mais antigas, não tem nenhuma no Queda Livre, apenas alguns recortes que acabaram virando outras. A primeira música do álbum que eu escrevi foi “Papagaio”, isso em 2019. Não tinha nada concreto em mente quando eu a fiz, estava ali criando intimidade com o instrumento, devia estar tocando há uns oito anos, mas, na época, nem pensava em ser músico.

“Muito dessa minha observação passa por uma crítica que, por um lado, tem uma construtividade – mas ela é intencionalmente destrutiva”

Sobre isso, de “pensar em ser músico”, dá para dizer que, além de músico, você aparece no álbum como um personagem também, um interlocutor das crônicas urbanas. Paralelamente à formação musical, de onde vem esse lado observador?

Estava vendo um vídeo um dia desses — de um cara falando que ninguém comenta sobre o quão difícil pro artista é tentar não ser artista. Antes mesmo da música, eu desenhava. Minha família achava que eu seria desenhista. Observar e expor cenários é algo que sempre me fez pensar. Tive muitas outras profissões também, mas sempre com a cabeça em outro lugar.

Também… Não sou das pessoas mais positivas em relação à humanidade, ao que a gente descreve como humanidade, sabe? Acho que a gente tá dentro de um quadro de desinformação, de uma coisa que pertence muito à cultura ocidental, em que a população é educada para fechar os olhos para alguns problemas. Então, muito dessa minha observação, ela passa por uma crítica que, por um lado, ela tem uma construtividade, mas ela é intencionalmente destrutiva, sabe? Sou muito observador pela vivência de um estado onde você tem que estar totalmente atento a qualquer momento — não dá para andar suave no Rio de Janeiro.

Essas contradições da vida urbana que estão no álbum são muito bem imprimidas também pela ligação entre as letras e a tensão do choque entre os estilos, no arranjo, na despretensão como você as canta… Na junção de elementos. Tendo composto as músicas no seu violão, sozinho, como foi transpor as canções pro estúdio e moldar essa energia no formato de banda?

Então, para chegar no estúdio, o Vovô Bebê foi o primeiro cara a falar alguma coisa assim, tipo, “bora fazer um disco”. A primeira música do processo, que foi “Papagaio” eu fiz como se fosse para um disco dele. Por isso tu vê que ela virou um jazz meio maluco, com o meu violão sendo o elemento diferente, caminhando para outro lado, enquanto o arranjo é aquela doideira. Nessa época eu ainda não tinha nenhuma ideia de como seria o arranjo, mas algo que eu queria era me distanciar do minimalismo dos anos 2010, sabe?

A própria formação da banda foi algo que eu também não tinha definido, mas que foi se desenhando através do Vovô e do Edu (Manso, coprodutor do disco). Mas mesmo tendo esses elementos todos, nunca foi algo “toca assim ou assado”. O piano que a Aninha (Frango Elétrico) toca em Merecedores, por exemplo. Ela chegou e tocou na hora o que ela queria, no improviso mesmo. Até porque, samba é assim.

Já sobre a voz, é engraçado isso porque ao compor, no meio das gravações, num primeiro momento eu pensei nas músicas sendo interpretadas por vozes femininas. Era algo que eu queria. Acabou que não ficou assim, algumas ainda têm o coral, mas foi algo que eu quis num certo momento.

“O Caxtrinho e o Paulo Vitor caminham juntos no processo criativo-vivente. É a vivência do Paulo Vitor que sustenta o Caxtrinho, e é a criatividade do Caxtrinho que sustenta o Paulo Vitor”

O Vovô é um cara incrível, criativo e colaborativo pra caramba. Interessante que ele tem um papel essencial desde o começo. Antes mesmo do estúdio, das gravações, como vocês tiveram essa troca e se aproximaram?   

Cara, foi doido. Assim, conheci o Vovô muito numa relação de fã mesmo. Conheci o trabalho dele através do Cícero (Rosa Lins), do tempo que eles tocavam juntos. Depois conheci o trabalho solo dele, que eu pirei — Briga de Família (2020) é um disco que mora aqui em casa. Postei que estava ouvindo a música dele e ele respondeu, aí me seguiu de volta, viu que eu postava alguns vídeos tocando. Então a gente ficou nessa troca de figurinha na época. Isso era final de 2018 para início de 2019.

E a partir de então, eu fui fazendo mais música, me sentindo mais confiante. Já tinha toda a minha bagagem pessoal mas acho que o lance de misturar era algo que eu não conseguia visualizar. E assim, o Vovô trouxe essa influência de colocar as coisas em choque, de ver as coisas prontas. Tanto que partiu dele a percepção de que já dava para levar pro estúdio.

Agora, falando um pouco sobre as histórias que formam as letras — com exceção das duas últimas, são músicas de no máximo três minutos, com todo um contexto, mais que um enredo, em que as coisas são apresentadas, criticadas e às vezes superadas. Queria te ouvir um pouco sobre como você pensa nessas histórias episódicas, e como a linguagem da música te limita e/ou te permite se aprofundar na mensagem que você quer passar através delas.

Cara, é engraçado. Dificilmente eu componho uma letra para então musicar ela. No caso, sempre crio a música pela melodia e harmonia, e depois vou criando as letras, e esse processo de lidar com a crônica como composição é uma parada que eu fui criando com o tempo, lendo e tudo mais.

Eu sou um filho temporão, meus pais são da década de 1950 e 1960, e sempre tiveram muitos livros. Lá em casa, eu pude consumir alguma literatura, assim, diferente de muitas crianças do meu entorno. Daí veio a proximidade com esse olhar mais cronista, de um lado mais irônico da crônica, na verdade. Na crônica, a ironia e a crítica caminham juntas, e eu sempre quis estar nesse lugar de trazer essa variedade de fatos incômodos. Por exemplo, para fazer a letra de Cria de Bel, para imaginar esses cenários eu tentei desenhar tanto o lugar quanto o personagem. Sempre fui muito contemplativo com essa coisa da paisagem, eu acho o Rio de Janeiro um estado bem bonito, para onde você olha tem uns montanhões. E sobre o personagem, é mais uma percepção minha sobre o belford-roxense, que é muito parecidinho, sabe, a gente não é muito diferente um do outro. Principalmente a juventude. Então, por mais que tenha seu lance pessoal, é um personagem que pode ser muita gente além do Caxtrinho.

Algo que fica bem claro nas músicas é que o Caxtrinho e essas muitas pessoas com quem esse personagem fala têm cor e classe social. E por mais que tenha bastante ironia nas letras, algumas músicas como “Branca de Trança” é um retrato explícito das contradições das dinâmicas raciais. Nesse sentido, acho que é o lado mais periódico da crônica, de retratar algo peculiar do seu espaço-tempo. Esses momentos mais explícitos foram propositais pela urgência da temática?

Cara, então, isso daí é muito interessante mesmo. Vamos lá, se a gente pegar a cena musical de exemplo, é um espaço onde a grande maioria é de pessoas brancas, com sobrenomes que bancaram essas carreiras. E eu percebo, às vezes, que tem uma galera que até está próxima de mim, que tem uma admiração pelo que eu faço, mas que ao mesmo tempo, a bolha da pessoa é tão sólida e homogênea, que a mensagem não atinge ela, sabe? Então por isso que tem alguns momentos mais explícitos.

Mas, de modo central, esse branco que eu falo no disco é um branco político, é um branco que tem o poder de interferir na vida de uma nação e que não tem outro jeito de criticar se não sendo explícito.

“Falando da MPB média atual, muita letra é uma parada muito mundo da lua. Fico pensando que é algo que a gente tem carregado desde os anos da repressão militar, quando a crítica tinha que ser subjetiva. Mas hoje, tendo liberdade, a crítica continua sendo subjetiva? É algo que não faz sentido para mim. Por isso, quando fiz essas letras, tinha bem claro que queria passar uma mensagem de protesto, direta. Sem ser tosca, mas explícita como mensagem. Tipo: ‘Ei, olha pra isso aqui, isso aqui tá acontecendo’”

Isso puxa para algo que eu gostaria de saber sua percepção sobre — de modo geral e dentro do disco. No caso, é sobre como você trabalha o samba em experimentação com outros estilos partindo de um discurso de crítica. E também, como você vê o samba tendo influência crítica nas pessoas atualmente com o estilo em um momento de sucesso comercial diferente do que você cresceu?  

Sobre a crítica como discurso do disco, eu acho que tem muito a ver com o que tem rolado hoje em dia. Falando da MPB média atual, muita letra que você vai ouvir, é uma parada muito mundo da lua, sabe? E aí, eu fico pensando que é algo que a gente tem carregado desde os anos da repressão militar, onde a crítica tinha que ser subjetiva.

Mas hoje, tendo liberdade, a crítica continua sendo subjetiva? Isso é algo que não faz sentido para mim. Por isso, quando eu fiz essas letras, eu tinha bem claro que queria passar uma mensagem de protesto, direta. Sem ser tosca, mas explícita como mensagem. Tipo: “Ei, olha para isso aqui, isso aqui tá acontecendo”.

Já sobre o samba, isso é foda porque vamos lá — o que é samba? Quem é que diz o que é samba? Na verdade, eu acho que o problema é quem categoriza e separa em rótulos o que é um som, principalmente quando essa pessoa não criou esse som. Por exemplo, falar “samba experimental” é um pleonasmo. A manifestação do samba, por si só, dispensa qualquer outra definição dentro dele. Se o Paulinho da Viola bota um cravo para tocar num samba, e o Jorge Ben toca samba como quem toca rock, os dois tão tocando samba e acabou.

Muito justo! Por fim, queria saber algo que é inevitável não perguntar para quem escreve sob um “personagem”: na música e na vida, até que ponto você vê que difere o Caxtrinho do Paulo Vitor?

É, cara…

Eu acho que, nossa, eu tava comentando sobre isso um dia desses. Sou muito grato por ter criado um personagem que não mente pra si mesmo, sabe? Então, acho que o Caxtrinho e o Paulo Vitor eles caminham juntos no processo criativo-vivente. É a vivência do Paulo Vitor que sustenta o Caxtrinho, e é a criatividade do Caxtrinho que sustenta o Paulo Vitor.

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ARTISTA: Caxtrinho

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