As Semanas Astrais de Van Morrison

“Astral Weeks”, segundo disco solo do irlandês, influenciou de Bruce Springsteen a Elvis Costello e continua até hoje sobrevivendo como um dos melhores clássicos de todos os tempos

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Antes de começar a falar sobre o segundo disco solo do irlandês Van Morrison, me permitam uma pequena confissão. Em algum momento da vida daquela pessoa que se dispõe a pautar seus atos por música, há uma vontade de, pela primeira vez, se instruir sobre o assunto. É quando a gente já ouviu uma quantidade razoável de músicas, bandas e artistas e sente um desejo grande de ir adiante, talvez visando conhecer mais sobre eles ou descobrir sonoridades novas. Essa vontade é o que diferencia o ouvinte médio do fã de música, que busca ajuda em publicações especializadas, sites da Internet ou mesmo recomendações em lojas de disco online. Ao ouvinte médio, sempre restará o conforto das paradas de sucesso ou da programação das estações de rádio e ele nem se importará muito com isso. Ao fã de música, estará aberta a porta para um mundo novo a cada vez que a vontade de conhecer coisas novas bater.

Assim foi que eu conheci Astral Weeks em 1990. O disco foi lançado em novembro de 1968, após uma disputa contratual entre o selo Bang Records e a Warner, cabendo a esta o passe do cantor e compositor de Belfast, Irlanda do Norte. Morrison era um desses coadjuvantes do Rock’n’Roll, não só por ser irlandês, mas porque nunca esteve na vanguarda dos lançamentos importantes da década de 1960. Astral Weeks se transformaria numa referência para muitos artistas que viriam a fazer sucesso na década seguinte, de Bruce Springsteen a Elvis Costello, influenciando muita gente, seja pelo ponto de vista estético como por seu caráter absolutamente único. Astral Weeks é um disco que levaria o rótulo de “Folk Celta”, algo que, ainda que seja verdadeiro, não preenche totalmente o leque de estilos que Morrison visita ao longo das oito canções que compõem o disco. Há Blues, há Jazz, há Soul, há solenidade e um profundo sentimento espiritual norteando tudo.

George Ivan Morrison é um baby boomer. Nasceu em 31 de agosto de 1945 numa Belfast adjacente a uma Europa devastada pela II Guerra, imersa em dívidas, destruição e desencanto. Filho de uma cantora de Jazz e de um eletricista fã de Jazz e Blues. Nesse ambiente propício, Van cresceu ouvindo muita música e, quando o Rock’n’Roll estourou nos dois lados do Atlântico, ele já tocava guitarra. Após muitas idas e vindas entre várias bandas da cena de Belfast, Van formou o Them, conhecido como “Rolling Stones irlandês”.

O repertório era composto por versões de Blues e R&B americanos e também continha uma ou outra canção autoral. Dentre essas primeiras composições de Morrison, ganharam destaque Gloria, Here Comes The Night e Baby Please Don’t Go, já lançadas a partir de 1965, sob contrato com a Decca Records. Essa condição levou Them a integrar o que se chamou de “invasão britânica”, ou seja, a grande quantidade de bandas do Reino Unido a fazer sucesso nos Estados Unidos na carona da beatlemania. Para o grupo, essa época rendeu frutos, sobretudo após dois meses de excursão pelo país, incluindo cidades como Nova York, São Francisco e Los Angeles, onde ficou por quase um mês como atração fixa da badalada casa de espetáculos Whisky A Go-Go. Com o relativo sucesso, vieram os problemas contratuais e, por conta de uma divergência com a gravadora sobre direitos autorais, Van Morrison deixou o Them em 1966 para ingressar em carreira solo, com contrato assinado com o selo Bang, distribuído pela Columbia.

Blowin’ Your Mind foi lançado em 1967, puxado pelo sucesso estrondoso de Brown Eyed Girl. Na verdade, o contrato assinado por Morrison não era claro e as primeiras oito gravações, incluindo o grande sucesso, deveriam ser lançadas como quatro singles, com duas músicas para cada disco. A gravadora lançou o disco e Van não teve conhecimento disso até que um amigo seu ligou para contar que havia adquirido uma cópia em Nova York. Para piorar a situação, seu empresário Bert Berns faleceu logo após o problema se instalar, por conta de um infarto fulminante, causado por uma anomalia cardíaca congênita. Por questões contratuais, Van ficou impedido de ser contratado para shows, só conseguindo honrar as poucas oportunidades oriundas de datas previamente agendadas. Após uma dessas apresentações, a Warner ofereceu um contrato para Morrison e, após uma batalha legal, conseguiu contratá-lo. Desse pequeno inferno veio Astral Weeks.

O disco é considerado um dos melhores de todos os tempos. Em meio às turbulências que Morrison experimentava nos Estados Unidos, sua mente e lembranças voltavam para sua Belfast natal. As oito canções de Astral Weeks seguem um caminho espiritual em que toda uma vida é misturada com outras lembranças, gerando uma narrativa encadeada, mas nunca 100% objetiva. Críticos da época chegaram a fazer analogias entre o estilo de composição de Morrison em Astral Weeks com os pintores franceses impressionistas do fim do século 19. As colorações, mesmo quando claras e luminosas, não podiam ser entendidas como algo concreto. As misturas de referências das letras de Van davam a mesma impressão. Em 2004, a Rolling Stone americana fazia uma resenha tardia do disco e dizia que “mesmo após 35 anos de seu lançamento, Astral Weeks continua desafiando a compreensão fácil”. O jornalista Alan Light reafirmaria a beleza da poesia de Morrison dizendo que “ainda ninguém teria suplantado a beleza das composições sobre saudades, morte, tristeza e infância perdida” de Van Morrison. A revista inglesa Mojo o colocou como segundo maior disco de todos os tempos. A própria Rolling Stone o posicionou em 19º dentre os 500 Melhores Discos de Todos os Tempos.

As molduras musicais que compõem o feixe de oito canções são eminentemente acústicas. Em primeiro plano estão Van e seu violão, acompanhados por uma banda de Jazz, com baixo acústico, bateria, flautas, vibrafone, além de metais e cordas, sendo que estes foram adicionados às canções um mês depois de sua gravação. Vale dizer também que as sessões de gravação de Astral Weeks se deram ao longo de apenas dois dias entre agosto e setembro de 1968. Como sempre foi um recluso, Van não teve momentos de conversa ou mesmo direção musical em Astral Weeks, não chegado a se relacionar com nenhum dos músicos envolvidos nas sessões de gravação. Nenhuma letra foi explicada. A percepção e tradução das intenções de Morrison couberam ao produtor Lewis Merenstein, aproveitando-se da decisão de Morrison sobre duração das canções. De fato, apenas duas músicas, The Way Young Lovers Do e Slim Slo Slider têm duração inferior a quatro minutos, algo que era bem incomum na época e, mais ainda, para um artista que era conhecido por singles nas paradas de sucesso e não por obras musicais mais complexas. Falando nisso, as duas grandes canções, no sentido literal e em termos de brilho, são Madame George e Cyprus Avenue. Elas não fogem ao espectro de reminiscência de tempos idos em Belfast, mas nessas duas composições, Morrison encarna mais do que nunca a sua persona mística e subjetiva. Ele mais tarde diria que Cyprus Avenue era uma rua de Belfast onde moravam as meninas bonitas e na qual ficavam as lojas mais elegantes. Ele e seus amigos costumavam tomar sorvete numa lanchonete de imigrantes italianos e justamente este tipo de lembrança serve como propulsor para as letras tristes. Essa característica se transformaria numa marca registrada da poesia de Van Morrison em trabalhos seguintes, atingindo um resultado impressionante. Pode-se ouvir esse traço em discos bem distantes no tempo em relação a Astral Weeks, como por exemplo, Enlightenment, de 1990, que traz uma composição chamada In The Days Before Rock’n’Roll, na qual Van relembra de como fazia para ouvir as estações de rádio americanas via rádio amador em Belfast. Ambas, Madame George e Cypress Avenue, segundo entrevistas posteriores de Morrison, teriam sido escritas em uma espécie de transe, de ausência, sendo que Van não sabia dizer ou definir exatamente sobre o que estava escrevendo. Suas análises das letras e do clima evocado nas canções foram feitas após a composição, não sendo nenhuma das canções, conscientes retornos a um passado em sua cidade natal e sim uma espécie de contato com o que estava mais arraigado em sua vivência.

Como forma de comemorar 40 anos de lançamento da sua obra-prima, Van Morrison fez dois shows, nos dias 7 e 8 de novembro de 2008, no mítico Hollywood Bowl. Pela primeira vez na carreira, tocou o repertório completo de Astral Weeks. O registro dessa performance histórica chegou ao mercado internacional com o título Astral Weeks Live At The Hollywood Bowl. Acompanhado por uma banda na qual se destaca o guitarrista e violonista Jay Berliner, que participou do disco original, Morrison não nega sua eterna inquietude, e foge do padrão nesse tipo de releitura, que seria tocar o repertório original sem grandes alterações. Aqui, a ordem das músicas é diferente. Slim Slow Slider, por exemplo, que encerra o álbum de estúdio, surge aqui como a terceira faixa, enquanto cabe a Madame George a função de fechá-lo. As versões são mais extensas, e algumas faixas foram agrupadas em pout-pourris. Também estão presentes no bis duas canções fora do setlist original: Listen To The Lion (de 1972) e Common One (1980). A mistura de Soul, Jazz, Folk e Rock que caracteriza a obra de Morrison aparece de forma intensa ao longo do show e as reações dos críticos a este trabalho vem sendo das mais positivas.

Falando em opiniões, vários críticos musicais e músicos têm em Astral Weeks um objeto de culto ou admiração. Em 1979, o crítico americano Lester Bangs ressaltou que Van Morrison tinha entre 22 e 23 anos de idade quando compôs e gravou as canções de Astral Weeks, mas, a despeito da pouca idade de Van, “havia uma existência prévia de muitas vidas”. Bangs dizia que, ao falar e se referir a Belfast em plenos anos 60, Morrison fazia jus a uma multidão de anônimos, gente que não aparecia na televisão e muito menos nas mesas de decisão dos centros de poder do mundo, se referindo ao grande preconceito político e religioso sofrido pelos irlandeses em sua história. Bangs ainda diria que, ao lidar com verdades e não com fatos específicos, Morrison falava de pessoas fascinadas pela vida e por sua casualidade.

Em 2004, numa resenha para o jornal inglês The Observer, o músico irlandês Sean O’Hagen, líder da banda High Llamas, descrevia Astral Weeks como um disco definitivamente impossível de ser lido dentro dos padrões normais de compreensão usados para os discos. Era um desses trabalhos raros que sobrevivem através dos tempos e conseguem não se prender ao momento em que é feito. O’Hagen ainda diria em outro artigo sobre o disco, este datado de 2008, também publicado no The Observer, que sua ambição estética é seu maior trunfo, ao se referir à falta de cerimônia de Morrison em se valer de referências de Blues, Folk, Jazz e Soul, sem se apegar apenas ao Rock.

O site All Music Guide descreve Astral Weeks em sua resenha como detentor de uma “força musical única”. O articulista Joe Levy ressalta que o disco tem uma forma diferente de organizar as idéias e as composições, chegando a comparar o disco com a literatura de John Milton em Paraíso Perdido.

O crítico musical Greil Marcus, da revista Rolling Stone, disse que o cineasta Martin Scorsese lhe havia dito em 1978, que os primeiros 15 minutos de seu filme Taxi Driver, haviam sido baseados em Astral Weeks. Marcus também diria que o segundo disco de Van Morrison fora aquele que mais ouvira na vida, mais que qualquer outro, de qualquer outro artista ou banda. Ele diz que a audição de Astral Weeks se compara a olhar para a palma da mão, constatar que não há nada nela, fechá-la, abri-la depois e perceber que agora há ali uma borboleta.

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ARTISTA: Van Morrison

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.