Aterciopelados, uma telenovela colombiana de amor

Na estrada há 30 anos, Andrea Echeverri e Hector Buitrago agora repassam suas devoções e fracassos em nova série-documental; selecionamos 10 canções fundamentais do duo colombiano que revolucionou o rock latino

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Fotos: Roger Kisby / Redux

No começo dos anos 1990, a Colômbia se transformou num campo minado. Na mira dos narcotraficantes, da guerrilha e de grupos paramilitares, o país assistia sem acreditar à escalada da violência, que avançava desgovernada. Episódios como sequestros, esquartejamentos e até mesmo atentados a bomba eram corriqueiros e, nesse cenário caótico, dois grandes eventos ocorreram quase ao mesmo tempo. Tanto a morte do terrorista Pablo Escobar, quanto o surgimento da banda Aterciopelados tiveram a função de inaugurar um capítulo inédito da história nacional.

No fim de 1993, havia algo de diferente no ar. Sentindo um pouco mais de segurança, as pessoas puderam voltar às ruas com a percepção de que várias coisas estavam finalmente acontecendo. A cena cultural, seduzida pelo rock em espanhol, não só tornou a receber em casa figuras como Molotov e Soda Stereo, a essa altura nomes já consolidados, mas também a investir em criadores locais até então reprimidos. Em nova temporada, a série Bíos, disponível na plataforma Star+, busca relembrar como esse grupo formado por jovens da classe média bogotana uniu forças para dar vazão a uma série de epifanias pessoais.

Não é exagero dizer que, de mãos dadas, a ceramista Andrea Echeverri e o empreendedor Hector Buitrago se tornaram ícones de uma geração que ansiava conquistar a própria liberdade. A princípio namorados, vivendo uma relação descrita como difícil de nomear e manter em termos, ambos tiveram uma formação musical pautada pelo inconformismo. Como evidencia o roteiro, logo se descobriu uma pré-disposição das partes para tentar de tudo, incluindo uma profusão de exageros descrita por Echeverri como um desejo de “mostrar feras internas”. Cenas até então inéditas de apresentações improvisadas feitas à época sublinham a crueza desse processo, que os fez mergulhar de cabeça numa filosofia dos excessos. Não tardou para que uma proposta de investimento garantisse a estreia de Con el Corazón en la Mano (1993).

Desta vez, ainda bem, o disco recebe a devida honra. Não restam dúvidas de que em algum momento questões obscuras relacionadas aos direitos autorais impediram que fosse celebrado junto ao legado da banda. Em 2016, ao cravar seu retorno aos palcos com o álbum ao vivo Reluciente, Rechinante y Aterciopelado, todas as canções dessa fase acabaram excluídas do set. No imaginário popular, ao contrário, nem mesmo o baixo orçamento oferecido para sua produção puderam frear a natureza pegajosa de clássicos como “Sortilegio”, “No Te Me Disuelvas” e “Mujer Gala”.

Esta última, uma composição de Andrea que se destaca por seu tom debochado e estridente, sempre esteve na ponta da língua dos jovens colombianos. Demorou pouco para virar febre entre equatorianos, argentinos e mexicanos. Todos pareciam seguir com uma frequência cada vez maior o estilo dos intérpretes, entre eles a jovem Liliana Saumet, tempos depois o rosto mais conhecido do grupo Bomba Estéreo. É ela quem divide os vocais no single “Sigánme los Buenos”, produzido para a trilha sonora de Bíos, além de conduzir o episódio garantindo que o espectador tenha uma dimensão prática da influência dos Atercios nas gerações de músicos que viriam a seguir.

Há que se dizer: apesar da riqueza de detalhes, há raros momentos emotivos ao longo do roteiro. Talvez pelo fato de que o próprio som da banda não apele ao drama e à melancolia com frequência, um caminho diferente do que toma, por exemplo, o episódio dedicado ao músico argentino Gustavo Cerati, falecido em 2014. Por outro lado, é bastante curioso ver Andrea e Hector voltando ao edifício em que ficava o bar Barbarie, localizado no centro turístico de La Candelaria. Foi lá onde eles tocaram primeiro com a banda Delia y los Aminoacidos, hoje mais um resquício de sua atitude hardcore do que um embrião do que se converteram de fato.

Echeverri e Buitrago se abrem como se estivessem em uma sessão de terapia sobre os desacordos criativos e a dependência que a cantora admite ter criado com o parceiro na hora de tomar decisões, contradizendo até mesmo seus discursos mais autossuficientes

O frenesi dessa época e o debut bem-sucedido conquistaram um novo contrato para a produção do que viria a ser El Dorado (1995), segundo disco da carreira. Um marco na história do rock latino, o projeto influenciou de Monsieur Periné a Diamante Eléctrico e não comporta apenas boas canções, há também uma evolução das perspectivas que já vinham abordando. Enquanto a trupe do Café Tacvba tinha se estabelecido como referência do que se concebia como rock mexicano, os Aterciopelados, mais ao Sul, ambicionavam algo similar: produzir um tipo de música que pudesse fusionar uma centena de referências para, enfim, criar algo inédito, tipicamente nacional. O discurso feminista ganharia um espaço ainda mais proeminente com o single “Florecita Rockera”, para além do nome dado à banda. A inspiração, como conta a própria banda, vem do verso de Simone de Beauvoir “A flor aveludada da paixão” (La flor aterciopelada de la pasión, no original).

Esse ensejo pelo novo permitiu ao duo se debruçar também sobre questões relativas à cultura popular, passando a referenciar com originalidade e, sobretudo respeito, a arte pré-colombiana, a espiritualidade e a história nacional. Um ótimo exemplo dessa combinação é a música “Colombia Conexión”, que reúne citações a lugares e personalidades em uma espécie de trava línguas. Tempos mais tarde, a peça chegou a ser usada em propagandas de turismo local.

Os depoimentos de ex-colegas e dos próprios pares, entre eles o cantor Carlos Vives, fazem questão de evidenciar o quanto essa decisão estética significou uma virada total. O clipe de “Bolero Falaz”, que se converteu instantaneamente em um símbolo da época, eternizou lugares como a Avenida Caracas, uma das mais importantes vias de ligação entre as regiões Norte e Sul da capital Bogotá. Mesmo sem se dar conta, Aterciopelados se estabelecia, em essência, como um elo entre o urbano e o que havia de mais profundo país adentro. Os hits começaram a jorrar pelas mais diferentes mídias.

No mesmo vídeo, o violão adornado com flores usado por Andrea enquanto interage com os transeuntes, além de seu cabelo raspado, acabaram sendo sinônimo de um estilo sem regras. É verdade que ao longo dos anos seus figurinos causam diferentes reações, sempre rompendo qualquer tipo de relação com a caretice. Um exemplo clássico é o traje que usou na cerimônia de entrega do Grammy em 2018, quando foi literalmente vestida de gramofone e terminou a noite como alvo de impiedosos stylists. Chapéus de cogumelo, tiaras em formato de vulva e vestidos adornados com seios de pelúcia seriam peças recorrentes.

Mesmo sendo bastante ampla, a narrativa apresenta deslizes. Reserva-se também ao videoclipe uma falha no roteiro. Ferramenta fundamental para a propagação das ideias ‘aterciopeladas’, a importância da MTV na formação dos rockstars latino-americanos acaba sendo coadjuvante, praticamente esquecida. Na América Latina seu impacto foi absolutamente necessário para fazer com que a música pudesse viajar cada vez mais longe – a despeito do Brasil, uma exceção nesse processo. Em 1997, cabe lembrar, o canal organizou em Porto Alegre o Festival Tordesilhas, um fracasso total de público que ficou restrito a apenas aquela edição. Previsto para acontecer no Estádio Gigantinho e com transmissão internacional, o evento teve a presença de Aterciopelados e nomes nacionais como Os Paralamas do Sucesso. O fiasco colocou em xeque um enorme contraste entre a qualidade de sua curadoria, o alto investimento e o retorno esperado.

Nada que os abalasse. Os três discos lançados pela banda na virada do milênio, mais precisamente entre os anos de 1996 e 2000, seguiram fazendo dançar ao mesmo tempo em que abordavam a fundo pautas de interesse público, em alguns casos de forma até didática. No primeiro deles, La Pipa de La Paz (1996), o ouvinte se deparou com uma forte oposição à violência, tendo como base filosofias altruístas e uma diversidade de sons que vai desde o emprego de percussões andina e llanera até o flerte com ritmos tradicionais, entre eles o joropo e o vallenato. A abertura com “Cosita Seria” merece atenção: é uma resposta ao assédio que milhões de mulheres sofrem nas ruas da América Latina, um continente que nasce de distintas violações. Essa trilha sonora pop acabou responsável por fazer com que comportamentos masculinos vistos como corriqueiros fossem repensados. “La Pipa”, coroado como um êxito total, terminou aquele ano sendo o primeiro disco de uma banda colombiana a ser indicado ao Grammy norte-americano, desta vez na categoria Melhor Álbum de Rock/Alternativo Latino.

O céu parecia ser o limite, mas no trabalho seguinte, Caribe Atómico (1998), eles lavaram as mãos. Todo aquele exagero foi jogado ralo abaixo e, ao apostar em sons abertamente minimalistas, o foco estaria no ambientalismo. As críticas à destruição do patrimônio natural colombiano pelo capitalismo desenfreado abriram um leque ainda maior de possibilidades de diálogo, ao mesmo tempo em que os afastou de vez do punk. O tema das águas, que seria revisitado depois em Río, um desbotado álbum do catálogo lançado em 2008, não seria unânime. As florestas, a poluição e até mesmo visões de um futuro distópico rodeariam seu cancioneiro ao ponto de que, em 2020, durante a pandemia, uma série de TV chegou a ser produzida tendo Andrea como apresentadora. Batizada como El Destapabocas, em referência às máscaras de proteção contra a Covid-19, o material reuniu músicos de diferentes áreas a fim de criar faixas capazes de questionar o impacto da pandemia nas esferas social, política e cultural.

Com os Aterciopelados, em diferentes frentes e abordagens, reforçou-se um imaginário de consciência e compromisso com a própria Colômbia, fazendo pensar com veemência as muitas tragédias coletivas. Em Gozo Poderoso (2000), último dos discos lançados nesta era de ouro, eles se depararam com um novo quebra-cabeças: o orçamento havia despencado e os espaços luxuosos em que gravavam em Londres deram espaço a estúdios erguidos na casa de amigos. Talvez por isso mesmo houve um retorno comedido à experimentação e o desabrochar de um desejo de conexão com o bem-estar mental. Alinhados à meditação, ao xamanismo e ao encontro com a força feminina, conseguiram chegar onde nenhum outro artista colombiano havia estado, nem mesmo Shakira com seu mix de influências e Karol G, atualmente abastada dos demais pelos números estratosféricos. Nas palavras da revista Time, eles foram “uma das dez melhores bandas de rock do mundo do ano de 2001”.

Daí para rechaçar o título de ícone bastou muito pouco. A canção “Antidiva”, parte do disco mais recente Tropiplop, é só uma constatação das posições que Andrea vem tomando ao longo do tempo. Mais alinhada com a figura de Mercedes Sosa, considerada a voz das massas, do que com as provocações eróticas da rainha do pop Madonna, a vocalista aprendeu a não esconder sua repulsa em relação a assuntos delicados como as abusivas barganhas que lhe foram propostas pela indústria nesses 30 anos.

É interessante observar como o duo adota ao longo de todo o episódio um discurso franco ao tirar a limpo suas opiniões, conquistas e erros. A impaciência com a rotina exaustiva de viagens pela América Latina, a decadência iminente dos contratos após o auge e o nervosismo na gravação do MTV Unplugged do Soda Stereo são tratados com humor e naturalidade. Até mesmo os problemas de Andrea com a bebida, provocados por uma insegurança exagerada, e as pontas soltas de sua relação amorosa com Hector são expostos como uma forma de aparar as arestas dessa história que, em oposição a qualquer tentativa, já não podiam mais dissociar.

Echeverri e Buitrago se abrem como se estivessem em uma sessão de terapia sobre os desacordos criativos e a dependência que a cantora admite ter criado com o parceiro na hora de tomar decisões, contradizendo até mesmo seus discursos mais autossuficientes. Diante dessas afirmações, versos extraídos de canções como “Maligno” acabam ganhando novos contornos. “Quero me desintoxicar, cortar esta dependência antes que ela própria acabe comigo”, diz um dos trechos, quase que em aceno ao enredo das telenovelas românticas produzidas com frequência no país.

Quanto à arte propriamente dita, Bíos cumpre seu dever ao revisitar as origens dos Atercios, embora pareça não se interessar pelo atravessamento de fases mais recentes. É o que ocorre com Oye (2006) e Claroscura (2018), discos totalmente desprovidos de importância ao lado dos respectivos projetos solo desenvolvidos nos anos de ruptura. Há, por exemplo, uma brevíssima menção a Ruiseñora (2012), álbum de Andrea que chegou a concorrer ao Grammy Latino de Melhor Álbum de Cantor e Compositor, mas acabou perdendo para Abraçaço (2012), do brasileiro Caetano Veloso. Isso poderia pressupor a realização de uma temporada inteira e exclusiva para os tais, capaz de permiti-los se aprofundar e fazer jus às discussões sobre envelhecimento e amor próprio, alguns dos temas ignorados.

Mas é possível perdoar, evidenciam os próprios Héctor e Andrea, hoje totalmente reconectados. Como se percebe ainda em outros episódios, a série realiza com dedicação um resgate fundamental da história cultural latina, principalmente para quem deseja entender as engrenagens da música pop, hoje marcada, em muitos momentos, por estrelas com identidades previsíveis e discursos esvaziados. Se lá atrás a banda competia com inseguranças e a sombra de dias cinzentos, agora já não restam mais dúvidas de que suas vozes e melodias seguem ecoando pelos cantos mais improváveis, de forma a assegurar que essa fórmula estranha de narrar o entorno continue sendo uma porta de escape.

Aterciopelados em 10 canções

“Mujer Gala” (1993)

Primeiro grande sucesso dos Aterciopelados, “Mujer Gala” tem a alma dos pubs e inferninhos mais sujos que se possa imaginar. Com uma bateria frenética sendo tocada ao fundo, a letra ironiza as próprias origens da banda na classe média bogotana usando gírias e comparações que tentam driblar os tradicionais jogos de status, em geral promovidos pelas garotas da elite de então.

“Bolero Falaz” (1995)

Não é exagero dizer que esta é uma das canções mais importantes do rock em espanhol de todos os tempos. “Bolero Falaz” é uma declaração de amor feita com a urgência de uma gargalhada que escapa para disfarçar a tristeza. Entre as migalhas e a constatação da própria desgraça, provocada pela insegurança, o eu-lírico se banqueteia com o ciúme.

“Baracunatana” (1996)

Na década de 1980, o cantor de vallenato Lisandro Meza fez toda a Colômbia dançar com a canção “Baracunatana”. A composição, de essência popularesca, é uma brincadeira que utiliza termos locais para maldizer um amor mal resolvido. Na versão dos Aterciopelados, repaginada com novos arranjos, Andrea subverte seu sentido tornando-a ainda mais pop e magnética. É difícil repetir sem errar sequência de palavras “Garulla, retrechera, abeja, bergaja, fulera, guaricha, garosa, morronga, farisea, gorzobia, baracunata, cucharamí”. Tudo isso ainda compreendendo seus respectivos significados.

“Quemarropa” (1996)

Se em “La Gomela”, faixa de abertura de Con el Corazón en la Mano (1993), a banda quis introduzir a questão da violência ao narrar o aparecimento de um cadáver feminino, três anos depois seria a hora de fazer um apelo pela paz. “Quemarropa” é uma das músicas mais vibrantes do repertório e descreve o medo e o delírio vivido por grandes metrópoles como Bogotá e Medellín nos anos 1990. Nessa época, o número de vítimas do conflito armado chegou a ser um dos maiores do mundo. Em outras palavras, a letra é um basta a qualquer tipo de fúria irracional.

“Caribe Atómico” (1998)

“Mayday mayday, a guarda costeira avisa para não entrar no mar, você pode pescar um vírus tropical”, diz o refrão de “Caribe Atómico”. Elétrica e cheia de camadas sonoras, a canção é um manifesto em defesa das águas, exploradas pelo turismo predatório e o  discurso nocivo das autoridades competentes. Aqui, os Atercios prezam por uma abordagem dinâmica, que se esbalda em descrições de paisagens, caos e ameaças.

“Maligno” (1998)

Neste rock-bolero o ouvinte encontra um típico drama latino. Como se tentando medir as consequências da destruição de seus próprios corações, Andrea Echeverri e Hector Buitrago aqui se embriagam de melancolia até encontrar uma saída: cortar o mal pela raíz. O som do acordeon, usado sem parcimônia, torna a experiência ainda mais densa.

“Rompecabezas” (2000)

O dilema entre interpretar o fim como um recomeço ou um tipo de crueldade auto imposta também é tema do grande sucesso de Gozo Poderoso. Os vocais de Andrea Echeverri e a técnica de Hector Buitrago estão em completa sintonia, fazendo com que o ouvinte sinta a dor numa curva ascendente.

“Luz Azul” (2000)

Quando tudo parece dar errado, surge uma voz para tornar a caminhada menos crítica. “Luz Azul” chama a atenção por suas características pinceladas de cumbia, entrelaçadas a uma guitarra elétrica que tira o ouvinte para uma dançar. Quem aceita, pode transformar todo um sentimento raivoso numa nuvem colorida de algodão.

“Cuerpo” (2018)

Nesta cumbia eletrônica, há muitos questionamentos acerca do corpo feminino. Lançada pouco depois de Echeverri ter completado 50 anos de idade, o material propõe um pensamento crítico a respeito das convenções sociais e dos padrões pré-estipulados de beleza que, na maioria das ocasiões, cerceiam a experiência completa de se amar.

“Antidiva” (2021)

Pertencente ao disco Tropiplop (2021), lançado em meio a uma onda de protestos que deixou dezenas de mortos e feridos nas ruas da Colômbia, “Antidiva” segue um caminho semelhante ao de Cuerpo ao se apresentar como uma resposta nominal às pressões impostas pelo showbiz. Na composição, críticas à necessidade de se manter sempre jovem e sensual no que Echeverri define ser “um reino de aparências onde salve-se quem puder”. Oportunidades questionáveis, garantidas por abusos e bons relacionamentos, também estão na mira.

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