Baile em baile, degrau após degrau: 10 anos de “Cores & Valores”

DJ Cia e Rui Mendes relembram os bastidores do último disco – até o momento – do Racionais MC’s

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Fotos: Reprodução / Rui Mendes

Em agosto de 2009, ninguém na plateia do Sesc Santo André sabia muito bem o que esperar quando o Racionais MC’s subiu ao palco. Dois anos haviam se passado desde o episódio conturbado da Virada Cultural, na Praça da Sé, e o grupo estava pronto para romper seu hiato em um show único – que, curiosamente, passou batido. Ninguém entendeu nada. Em defesa do público, nem os maiores fãs do grupo teriam chance de acompanhá-los naquela noite porque boa parte do repertório cantado ainda era inédito. Para se ter ideia, a música que abriu esse show só chegaria aos fones de ouvido dali a cinco anos. Era “Você Me Deve”, faixa mais groovada de Cores & Valores (2014), último disco lançado pelo Racionais até o momento, e que neste mês de novembro completou 10 anos de história.

“Acho que Racionais tocava as músicas nos shows mesmo antes de lançar mais para curtir do que para explicitamente experimentar a pista”, diz DJ Cia, parceiro de longa data do grupo e produtor musical que assina Cores & Valores junto de Mano Brown. Segundo Cia, o grupo nunca teve a preocupação de testar o público antes de soltar uma música. Faz parte do perfil do Racionais no estúdio: todas as decisões são tomadas com muita certeza e, ao mesmo tempo, com uma postura totalmente aberta a críticas, sugestões e comentários. “Todas as ideias tinham a importância de serem ouvidas”, comenta Cia sobre a produção de Cores & Valores, “Se tivessem 14 pessoas falando que a música tava foda, que o som tava muito louco, mas um falasse ah, mas eu acho que podia mexer nesse baixo’, o Brown ia trabalhar mais no baixo”.

Cores & Valores surgiu como um projeto de uma mixtape de celebração de 25 anos do Racionais. Em 2010, o grupo começou a se reunir para fazer músicas inéditas, e o trabalho foi se desenvolvendo até virar um álbum. Na época, Ice Blue chegou com a proposta de um processo criativo mais imersivo, em que a dinâmica de trabalho fosse de alguma forma blindada de interrupções, o que o levou a alugar uma casa na Granja Viana, na zona oeste de São Paulo. “A casa era no meio do mato, bem escondida mesmo. Eu levei todos os meus equipamentos e montei o estúdio bem no meio da sala”, lembra Cia. A sala era grande – e precisava ser: todos os dias, a casa recebia entre 10 e 15 pessoas, de colaboradores do grupo até amigos mais próximos, que se reuniam para conversar, escrever, trocar indicações musicais e jogar videogame enquanto Cia cozinhava um beat novo. Todos chegavam cedo e saíam tarde. “A gente ficou ali por uns três, quatro anos”, conta Cia. “Foi bem produtivo e, por ser distante, não tinha como sair do foco. A gente estava ali pra fazer música”.

“A casa era no meio do mato, bem escondida mesmo. Levei todos os meus equipamentos e montei o estúdio bem no meio da sala. A gente ficou ali por uns três, quatro anos. Foi bem produtivo e, por ser distante, não tinha como sair do foco. A gente estava ali para fazer música”

– DJ Cia

Entre as ideias que guiaram o projeto, existia um desejo do Cia de tocar mais rap nacional na noite paulistana. Vale lembrar que, em 2010, colocar rap nacional em uma festa de “brasilidades” era sinônimo de pista parada e, por consequência, contratante insatisfeito. Na contramão, o que estava fazendo a cabeça dos fãs de rap era o Dirty South, com nomes como Rick Ross e as produções do selo Maybach Music, que tinham uma cadência mais para frente e groovada. O diagnóstico da pista era certo: o negócio era acelerar o BPM.

Dos timbres soturnos aos 808 marcados, das linhas de synth que cortam o álbum aos beats que mudam subitamente no meio da música, Cores & Valores é um disco que destoa dos demais na discografia do Racionais. Primeiro, porque é o único disco do grupo que não é voltado para o sample como principal matéria-prima, o que implica diretamente na sonoridade final do projeto. Sem o sample de músicas dos anos 1960 e 1970 – que foi o metiê muito bem sucedido de Nada Como Um Dia Após o Outro Dia (2002) –, a música não tem a referência sonora a outra música gravada de forma orgânica; em consequência disso, a textura de Cores & Valores é bem mais digital do que dos anteriores.

“O projeto ‘Cores & Valores’ foi uma aula para todo mundo”

– DJ Cia

E, segundo, porque este não é um álbum exclusivamente de rap, digamos, “tradicional”. No geral, Cores & Valores se aproxima muito mais de um disco de trap, o que é evidente logo na primeira metade do álbum, em faixas como “Cores & Valores”, “Preto Zica” e “Eu Compro”. Fora isso, o álbum conta com muitos recursos narrativos, como a faixa “Trilha” e “Coração Barrabaz”, que são breves, entre 30 segundos e 1 minuto e meio, e mesmo assim trazem viradas bruscas durante o beat – a última, inclusive, deixa um gostinho do que viria a ser “Felizes”, do Boogie Naipe (2016), também produzido pelo DJ Cia.

“O projeto Cores & Valores foi uma aula para todo mundo”, define Cia. Do processo criativo imersivo até a mixagem fora do país, a experiência enriqueceu a visão do DJ sobre seu próprio trabalho dentro do estúdio. O disco foi mixado no estúdio Quad e na Brewery Recording Studio, casas que já trabalharam com nomes de The Notorious B.I.G., Tupac, JAY-Z, Common, entre outros. Foram 20 dias chegando às salas pela manhã e saindo do estúdio no fim da tarde, mixando entre uma ou, no máximo, duas músicas por dia, com uma atenção ímpar a todos os elementos de cada faixa. A masterização ficou nas mãos de Chris Gehringer, da Sterling Sound, nome por trás das masters de Enter the Wu-Tang (36 chambers) (1993) até Motomami (2022).

“Era a única exigência do Brown a respeito dessa foto: que eu o fizesse exatamente na mesma posição do Malcolm X”

– Rui Mendes

Com o álbum pronto – e uma porrada de músicas que estão na gaveta até hoje –, Mano Brown ligou para Rui Mendes. O fotógrafo já tinha trabalhado com a principal voz do Racionais três vezes antes, em duas capas da Rolling Stone e uma matéria da Bizz. No telefone com um dos fotógrafos mais expressivos no registro da música brasileira das décadas de 1980, 1990 e 2000, Brown foi objetivo: a capa do disco seria a fuga de um assalto a banco. Todo o conceito, do uniforme de gari às máscaras de palhaços e filmes de terror, veio do Racionais. As cores tema do disco, laranja e preto, também já tinham sido definidas há muito tempo por se tratarem de uma homenagem a Emerson Neguin, fundador da marca de roupas Fundão e amigo pessoal do grupo, que morreu em 2002, vítima de um acidente de moto.

É impossível falar de Cores & Valores sem falar da Fundão. Para além da faixa “Cores & Valores / Finado “Neguin””, que presta uma homenagem nominal a Emerson Neguin, a Fundão foi escolhida para apresentar o disco ao público em diversas ocasiões, entre elas, no show do Racionais durante a premiação de videoclipes VMB de 2012, promovida pela MTV. Eles tinham acabado de ganhar o prêmio pelo videoclipe de “Mil Faces de um Homem Leal (Marighella)”, uma homenagem ao guerrilheiro Carlos Marighella que ficcionaliza a eletrizante tomada do sinal das rádios em plena ditadura militar pelo guerrilheiro comunista para denunciar a tortura institucionalizada pelo regime.

A apresentação do VMB aconteceu dois anos antes de Cores & Valores chegar às plataformas. Ainda assim, são as primeiras faixas do disco que conduzem o show. Racionais entrou ao palco com duas motos e mais 20 pessoas, todos vestindo Fundão. Entre a fumaça do palco e a luz do farol das motos, bandeiras da marca tremulavam. Não foi muito diferente quando Racionais voltou a se apresentar na Virada Cultural, em maio de 2013: o show começou com “Coração Barrabaz”, até então inédita. Quando KL Jay começou a tocar “Mil Faces de um Homem Leal (Marighella)”, já tinham 20 pessoas no palco com punhos erguidos, todos vestindo Fundão; naquela tarde, 10 mil pessoas ergueram seus punhos junto com Racionais na Praça Júlio Prestes.

A foto da capa do Cores & Valores foi clicada em frente à agência bancária do Copan, um dos prédios mais emblemáticos do centro de São Paulo. Inspirado pelo livro Quadrinhos e a Arte Sequencial, de Will Eisner, Rui pensou a composição da foto como se fosse um quadro dentro de uma graphic novel. “O posicionamento dos quatro na capa é totalmente de quadrinho”, explica. “O Ice Blue está com a máscara de palhaço olhando para a câmera, o Edi Rock aponta para um lado, o único cara que não é da banda é quem está carregando o saco de dinheiro – porque o Brown estava do lado da câmera, junto comigo –, e o KL Jay é o que está com a metralhadora no canto esquerdo”. O miolo do encarte do disco apresenta uma foto monumental, com dois carros que emolduram mais de 60 pessoas sob uma densa fumaça de sinalizadores, todos vestindo Fundão.

Já na contracapa, Brown queria uma releitura da famosa foto de Malcolm X olhando pela janela enquanto segura um rifle, tirada em 1964, um ano antes do assassinato do radical estadunidense. “Era a única exigência do Brown a respeito dessa foto: ele queria que eu o fizesse exatamente na mesma posição do Malcolm X”, conta Rui. “No primeiro plano, que é a banda depois do assalto, eu posicionei o Blue acendendo um baseado, KL Jay bebendo vinho, Edi Rock contando dinheiro. A antena da Globo no fundo é real; na  verdade, a única manipulação que tem nessa foto é a televisão. Eu tive que trocar a imagem da televisão porque justo na foto que foi escolhida, apareceu um desses comentaristas de futebol, então eu troquei por uma imagem de um jogo que não era nem do Santos, era do Corinthians. Eu nunca contei isso para ninguém, mas eles devem ter sacado porque eles são santistas roxos, né? Então, eu acho que é Corinthians e Palmeiras. Bom, não importa, porque se fosse um jogo do Santos, eles estariam todos assistindo”.

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ARTISTA: Racionais MCs