Barra por Barra é o espaço no qual o João aparece por aqui às sextas-feiras para falar de hip hop e de tantas outras coisas que vêm junto com a (enganosamente simples e definitivamente sedutora) ideia de “falar de hip hop”. Ritmo, poesia e opinião – com o João.
Se seu círculo de amigos não colocou “Vida Loka, Pt. 2” para tocar em nenhum momento da virada de ano, está na hora de rever esse círculo. Se você passou esse momento com a família, era sua obrigação ter colocado para tocar a música que encerra o lendário DVD Mil Trutas Mil Tretas. Mesmo que seus parentes não sejam muito chegados em rap, agora eles vão ser.
“Firmeza total, mais um ano se passando e graças a Deus a gente tá com saúde aí, morô? Muita coletividade na quebrada, dinheiro no bolso, sem miséria, é nóis! Vamo brindar o dia de hoje que o amanhã só pertence a Deus. A vida é loka”. A introdução de “Vida Loka, Pt. 2” é imortal por um motivo: ela sintetiza tudo que a voz trovejante de Mano Brown está prestes a rasgar e aprofundar nos próximos (quase) seis minutos em algumas pequenas frases de voto de ano novo. Prosperidade, relação do preto e do favelado com o dinheiro e, sobretudo, o sonho de uma vida menos assombrada pela morte. “O cheiro é de pólvora, eu prefiro rosas”.
Ao ouvir esse clássico, com frequência penso em algumas linhas de Andre 3000 na música “Sixteen”, de Rick Ross. “Eles não nos deixam ganhar, eu não posso fingir/ Mas eu admito, me sinto bem quando a quebrada pseudo-comemora/ Por isso toda vez que jantamos comemos até nossa barriga doer/ Então vá pegar o melhor vinho e beba/ Como se soubéssemos qual a uva e de qual região ele veio”. Minha mãe sempre fala que “a comida não vai fugir”, mas no enterro do meu tio paterno, (o lado mais preto da minha família) o comentário geral entre os parentes foi: “quando foi a última vez que a família toda se reuniu assim?” — o que me faz pensar em quando foi a última vez que nos reunimos para comer até a barriga doer.
Nas favelas brasileiras, nos guetos americanos, ou em qualquer lugar onde viver e morrer são preocupações tão recorrentes, surge uma cultura de sobrevivência. MC Smith, em “Vida Bandida”, traça com maestria o paralelo quase inescapável: “hoje somos festa, amanhã seremos luto”. Esse paralelo vai fazer você celebrar com quem você ama da maneira mais “leal e intensa”, ainda que para isso seja preciso comer até a barriga doer.
A história das culturas populares nos permite afirmar que onde tem dor tem festa, e onde tem festa tem luta. Andre 3000 e Mano Brown compartilham uma espécie de teimosia em ser feliz, e no fim, “Vida Loka, Pt. 2” talvez seja a música sobre esperança mais bonita já escrita em português-brasileiro.
O importante é nós aqui, junto ano que vem.
O legado de Gangsta Boo
Caras, eu juro que a primeira coluna do ano não era para ser tão fúnebre assim. É fúnebre? Não sei, se for parar para pensar acho que tô falando mais de viver do que de morrer, mas só reparei mesmo no núcleo da coisa quando coloquei elas no papel. Na maioria das vezes é assim, né? Só colocando no papel mesmo para entender.
No dia 1 de Janeiro faleceu Gangsta Boo, a primeira mulher do icônico grupo Three 6 Mafia. Uma artista incrível, que conseguia acompanhar beats de Memphis Rap como poucos e poucas na sua época, e que, junto de La Chat, foi influência notável em artistas do sul das gerações seguintes especialmente das artistas mulheres. Sua estreia solo Enquiring Minds permanece como um dos melhores lançamentos da Hypnotize Mind, gravadora fundada pelas lendas DJ Paul e Juicy J. Gangsta Boo fez sua estreia aos 15 anos em Mistic Styles, do Three 6 Mafia, e sua primeira música com DJ Paul foi escrita quando ela tinha apenas 16 anos: “Cheefa da Reefa” marcaria o início de uma carreira ativa de 27 anos, colaborando com artistas como OutKast e Dev Hynes Em um período dos anos 1990 no qual muitos não respeitavam mulheres rimando, e nem mesmo o rap do sul, Gangsta Boo foi um incontornável furacão, marcando a música rap para sempre. Aí vão seis faixas que condensam o legado de Gangsta Boo:
“Cheefa Da Reefa” (Three 6 Mafia)
“Tear da Club Up ’97” (Three 6 Mafia)
“Where Dem Dollas At”
“MASK 2 MY FACE”
“I’ll Call B4 I Cum” (com Outkast)
“Gold Teeth” (com Blood Orange, Project Pat e Tinashe)