Barro e a lírica do encontro em “Língua”

Entre tradição e experimentação, terceiro álbum do artista recifense explora afetos, sonoridades brasileiras e as possibilidades da música eletrônica

Loading

Fotos: Flora Negri

Os caminhos da língua são infinitos. Ela é som, palavra, comunicação e vínculo. Para o cantor, compositor e produtor musical Filipe Barros, o Barro, a língua também é um espaço de reinvenção — um território onde tradição e contemporaneidade se encontram para criar novas possibilidades de expressão. “Língua representa minha forma de compor e me expressar. É um álbum em que eu falo a minha língua, literalmente e metaforicamente”, introduz o artista.

Com o lançamento de Língua, seu terceiro disco de estúdio, o recifense propõe um diálogo sensível entre passado e presente, identidade pessoal e coletiva, explorando temas como desejo, amor, corpo e linguagem. “Esse trabalho é sobre confiar na intuição, na linguagem e na colaboração. É sobre encontrar força na singularidade e no coletivo, no que temos de mais humano”, reflete Barro.

“Esse trabalho é sobre confiar na intuição, na linguagem e na colaboração. É sobre encontrar força na singularidade e no coletivo, no que temos de mais humano”

Lançado no ano passado, Língua chegou ao público seis anos após Somos (2018) e marca uma fase madura da carreira do artista, que se destaca não apenas por suas composições, mas por sua habilidade como produtor musical. Colaborando com nomes como Chico César, Rachel Reis e Fran Gil, Barro construiu um álbum que sintetiza experiências, encontros e desafios que moldaram sua trajetória nos últimos anos. “Produzir com essas pessoas foi incrível. Por exemplo, com Rachel, criamos algo que tinha a ver comigo e com ela, resultando em uma música que sintetiza nossas estéticas. Essa mistura de artistas com estilos e perspectivas diferentes cria algo único. Cada um trouxe sua linguagem, o que acabou enriquecendo o projeto”. A produção, assinada por ele e por Guilherme Assis, reúne 11 faixas que unem a força rítmica da música brasileira e a sofisticação das sonoridades urbanas e eletrônicas. “No estúdio, trouxemos essa modernidade, sofisticação e o universo da música eletrônica. Ao mesmo tempo, mantivemos a força da percussão brasileira, que é muito presente nos nossos ritmos”.

No processo, Barro estabeleceu parcerias musicais marcantes, como a colaboração recorrente com Juliano Holanda, que participa de 7 das 11 faixas do álbum. “Meu trabalho fala sobre encontros. Convidei Juliano Holanda para colaborar, e ele captou perfeitamente a essência do que estava rolando nas músicas”, diz Barro. Essa primeira frase, tão simples quanto profunda, traduz o espírito de Língua — um disco que nasceu de conexões humanas e que celebra a pluralidade como forma de resistência à padronização cultural. Além disso, referências pessoais como Chico César trouxeram capilaridade aos muitos encontros entre a tradição e a experimentação. “Essas participações surgiram de encontros que aconteceram ao longo dos últimos anos. Chico César, por exemplo, se aproximou gradativamente. Já tínhamos colaborado em uma música que ele gravou com Mariana Aydar. Ele sempre me mencionava como compositor, o que foi criando uma conexão. Quando o convidei, ele abraçou a ideia, trazendo contribuições valiosas para o disco”.

“No estúdio, trouxemos essa modernidade, sofisticação e o universo da música eletrônica. Ao mesmo tempo, mantivemos a força da percussão brasileira, que é muito presente nos nossos ritmos”

Entre cidades e histórias: o caminho até Língua

A ideia para Língua começou a tomar forma antes mesmo da pandemia, mas foi radicalmente transformada pelas mudanças do mundo entre 2020 e 2022. “Queria fazer um disco pré-pandêmico, que capturasse a energia de uma caravana pelo Brasil, explorando as matrizes da nossa música. Mas, com a pandemia, tudo desandou”, conta Barro. Durante o período de isolamento, ele decidiu suspender o projeto original e lançou singles avulsos, enquanto explorava novas influências e linguagens. Quando a vida presencial voltou, em 2022, ele retomou o projeto com uma nova perspectiva, levando em conta não apenas as limitações impostas pelo período, mas as lições aprendidas. “A pandemia trouxe um aspecto muito íntimo para o disco. Foi um momento de reclusão que me levou a pensar sobre o que realmente importa. Esse trabalho é o resultado desse olhar mais atento para a vida, para as conexões e para a música como espaço de encontro”, define o compositor.

Gravado entre Recife, São Paulo, Salvador e Rio de Janeiro, Língua é fruto de uma colaboração intensa entre Barro e o produtor e parceiro de longa data Guilherme Assis. O processo de criação, conduzido sem pressa, foi marcado por encontros frequentes no Estúdio Zelo (Recife), onde a dupla desenvolveu ideias e arranjos. “Criávamos semanalmente, sem a pressão de entregar algo para outro artista, que é como geralmente colaboramos. Isso deu espaço para que cada música ganhasse a sua própria identidade”, explica Barro. A abordagem colaborativa resultou em canções que carregam uma autenticidade vibrante, refletindo tanto as vivências pessoais do artista quanto a riqueza da música brasileira.

“Gosto de títulos que sejam palavras únicas, mas cheias de significados. ‘Língua’ é sobre o que compartilhamos em comum, mas também sobre o que é profundamente pessoal. É um álbum em que eu falo a minha língua, no sentido literal e metafórico”

O som como linguagem

Uma das características mais marcantes de Língua é a capacidade de equilibrar o tradicional e o contemporâneo. O álbum combina a percussão brasileira com beats eletrônicos, criando um diálogo entre diferentes tempos e espaços. Essa fusão, que reflete tanto a pluralidade cultural do Brasil quanto a sofisticação urbana, é resultado da abordagem experimental que Barro adotou no estúdio. “Fomos evoluindo para uma linguagem que unisse beats e percussão. É algo que gosto muito porque, além de tudo, sou percussionista. Toco pandeiro, triângulo, zabumba, e já participei de grupos de forró e outras bandas. Essa vivência me conecta com a essência da música brasileira, que é profundamente percussiva”.  Canções como “Me Ter” e “Deixa Acender” exemplificam essa união de opostos. Enquanto a primeira traz uma atmosfera sensual e urbana, a segunda explora o calor humano em uma batida eletrônica suave, mas marcante. “Cada música é um laboratório. Experimentamos diferentes instrumentos, texturas e arranjos até encontrarmos a essência de cada faixa”, explica Barro.

Outro elemento essencial do álbum é o violão, que ocupa lugar central na identidade sonora do álbum. “O violão brasileiro tem uma sofisticação única. Ele é uma assinatura da nossa música, mas quis trazer ele de uma forma que não fosse óbvia, que dialogasse com o todo”, reflete. Em faixas como “De Fato” e “Cobra Corta Caminho”, o instrumento aparece como fio condutor, ligando melodias a raízes da música popular brasileira “Então, o violão foi meu primeiro instrumento. Fui me apropriando dele e acho que ele é muito importante na música brasileira, uma grande assinatura do nosso som. Estudei violão clássico e me dediquei a isso. Acho que o violão define muito a brasilidade pela forma como é usado, ganhando uma harmonia sofisticada. Para mim, ele é uma potência enorme, tanto pessoalmente quanto dentro da música brasileira como um todo”.

“O violão brasileiro tem uma sofisticação única. Ele é uma assinatura da nossa música, mas quis trazê-lo de uma forma que não fosse óbvia, que dialogasse com o todo”

A palavra como afeto

Se o som é a base de Língua, as palavras são a sua alma. As letras, que abordam temas como amor, desejo e comunicação, convidam a uma experiência íntima e sensorial. Para Barro, a música é um espaço em que as emoções podem ser exploradas de forma profunda e autêntica. “A música tem essa capacidade de falar sobre afeto e intimidade de uma maneira que poucos outros meios conseguem. Ela é um convite para olhar para dentro, para refletir sobre nossas conexões e emoções”. O título do álbum encapsula essa visão. Para Barro, a palavra remete à comunicação e, ao mesmo tempo, à irreverência e à sensualidade. “Gosto de títulos que sejam palavras únicas, mas cheias de significados. ‘Língua’ é sobre o que compartilhamos em comum, mas também sobre o que é profundamente pessoal. É um álbum em que eu falo a minha língua, no sentido literal e metafórico”.

Em um mercado musical cada vez mais padronizado, Barro ressalta a importância de preservar a singularidade da música brasileira. “A cultura nasce da particularidade. Quando tentamos padronizá-la, perdemos o que há de mais rico e autêntico. Meu trabalho é uma tentativa de destacar o que é único em cada canção, em cada processo criativo”. Esse compromisso com a diversidade se traduz nas colaborações presentes em Língua. Nomes como Chico César, Rachel Reis e Fran Gil trouxeram suas próprias perspectivas ao projeto, enriquecendo as canções com suas vozes e estilos únicos. “Essas parcerias são como encontros que se transformam em música. Cada artista trouxe algo que complementou o álbum de uma maneira que eu jamais poderia prever”.

A língua como síntese

Com autenticidade e sensibilidade, Língua celebra a pluralidade e a potência da música brasileira, enquanto desafia convenções do mercado musical contemporâneo. É uma obra que nos convida a uma experiência sensorial e reflexiva, explorando sentidos, afetos e histórias que nos conectam. A língua como ponte, como som e como arte. Para Barro, o disco é uma reafirmação de sua identidade como artista e como brasileiro. “Esse álbum é a minha língua no sentido mais amplo. É a minha maneira de me expressar, de ser brasileiro e de me conectar com o mundo”.

Loading

ARTISTA: Barro

Autor: