Besouro Mulher: pronta para viver – e voar

“Volto Amanhã”, disco de estreia do quarteto paulistano lançado pelo selo Rockambole, mescla as diferentes influências dos integrantes e traz à tona a poesia e o aprendizado das banalidades cotidianas

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Fotos: Igor Miranda

Sete anos distanciam a criação da banda paulistana Besouro Mulher de Volto Amanhã (2023), seu primeiro disco, lançado em julho. Formado por Arthur Merlino (baixo) Bento Pestana (guitarra) Sophia Chablau (guitarra e voz) e Vitor Park (bateria), o grupo precisou reavaliar onde desejava chegar em termos sonoros, para assim desenvolver o sucessor do EP Depois do Carnaval (2019) – de “Madalena”, com mais de 1,6 milhão de plays só no Spotify. “O que nos une, além da própria música que fazemos, é que temos muitas outras coisas em comum, principalmente a trajetória que queremos pra banda. O entendimento de qual som desejamos fazer vem tanto desse entendimento comum que já temos, quanto da prática de organizar e reorganizar sons”, diz Merlino. “A amizade entre nós quatro se fortaleceu demais e permitiu que nos entendêssemos na música também. Foi um processo longo, de muitas mudanças, e foi a primeira vez que a gente buscou essa unidade, então acho que é natural que os arranjos tenham mudado muito”.

Entre canções concebidas em sua maioria por dois dos quatro integrantes, Chablau e Pestana, surge a valiosa “Torresmo”, primeiro single do repertório, composta por Arnaldo Antunes e Juliana Perdigão e presente anteriormente no álbum Folhuda (2019). A canção ajustada tem como marcas a fonética de algumas palavras e a expansão enérgica, aqui, preenchida pelo foco corpulento no baixo e na guitarra.

“A amizade entre nós quatro se fortaleceu demais e permitiu que nos entendêssemos na música também” – Arthur Merlino

Os vocais de Chablau nos últimos segundos da faixa de abertura “Carótida” já criam a expectativa no ouvinte do que pode vir nas nove canções restantes, por meio dos versos: “Viver é uma pequena parte de um grande universo chamado eu”. São composições francas, que não ficam apenas restritas ao imaginário de um jovem que está começando a adentrar uma vida mais responsável. O indie rock se transfigura de uma faixa para a outra, fugindo do tédio e apresentando um leque sonoro que caminha também por pop punk, R&B e MPB. Divulgado pelo selo Rockambole, o trabalho foi resultado de encontros presenciais e trocas online, com gravações enviadas via WhatsApp durante o período pandêmico. A produção musical foi encabeçada por Diego Vargas, Felipe Martins, Guilherme Cunha e Pedro Marques, membros do selo Rockambole.

“A segunda parte do processo foi dentro do estúdio com o pessoal da Rockambole. Foi aí que se concretizou esse processo de deixar as canções translúcidas para ressoar com o público. A gente tocava as músicas, falava qual era nossa intenção com aquele arranjo que a gente tinha criado – e falava também o que a gente pretendia colocar que ainda não tava lá, como os arranjos de cordas e de sopros e os coros – e eles respondiam com ideias, viabilizando a nossa intenção. Isso incluiu novos elementos, mudanças de coisas já estabelecidas, ideias de timbres, elementos a menos. A parceria com eles foi crucial para chegarmos onde queríamos”, conta o baixista.

“Acho que o que eu quero causar no público é que realmente a gente pode falar qualquer coisa numa canção” – Sophia Chablau

A narrativa acessível e identificável ativa gatilhos que devem ser reconhecidos por grande parte do público, como em “Alguma Coisa”, que transita rapidamente entre o melancólico e o eufórico ao tratar da insegurança em um encontro romântico. Em “Pão Francês”, um dos pontos altos do disco, Chablau exibe uma criatividade já conhecida em sua outra banda, Sophia Chablau e Uma Enorme Perda de Tempo, misturando português, inglês e francês.

“Acredito que chegamos a uma identidade própria, juntando as referências e desejos e criações de cada um de nós nesse disco, mas esse é um processo contínuo. Ao mesmo tempo em que nos transformamos individualmente no decorrer das nossas vidas, com nossas contradições e vontades, também a dinâmica da banda se transforma e junto se transforma nossa identidade coletiva”, diz Merlino.

As variadas texturas emergem especialmente a partir da segunda parte do repertório, com “Vamos Indo” e a ácida “Música 7”, que realiza uma crítica à hipocrisia religiosa e ganha força com o saxofone de João Batista Barisbe e aliança marcante entre cordas e percussão. Consolo, perdão, dias rosas e sal pintam a paisagem da bela “Pele”, com processo diferente de composição. “Foi um processo doido, no qual o Bentão me mandou uma poesia muito bonita que ele tinha escrito e eu fui adaptando ela para um samba, daí Bento pegou o que tinha feito e deu uma lapidada, porque estava totalmente maluco também”, reflete Chablau.

“Apesar de a gente gostar de coisas parecidas, acho que cada um tem um extremo muito diferente. O Arthur gosta bastante de música popular brasileira (sambão velho, choro, etc), música erudita e às vezes se diverte ouvindo um pop tipo Lady Gaga [risos]. O Bento é o cara que sabe tocar todas as mais clássicas do churrasco no violão, ao mesmo tempo em que também é um grande fã de Milton Nascimento e Charlie Brown Jr. Eu sou fã das coisas que são produzidas agora, Negro Leo, Ava Rocha, Ana Frango Elétrico, Jonnata Doll, Bebé, e por aí vai. Enquanto o Park teve uma formação de bateria de jazz na Escola de Música do Estado de São Paulo (EMESP). Ele traz muito esses elementos, mas tem gostado bastante também da cena de trap”, completa.

“É muito doido fazer um trabalho artístico envolvendo pessoas diferentes que veem a música de formas diferentes. É muito legal, porém dá bastante trabalho” – Sophia Chablau

Trazendo reflexões e poesia sobre as coisas banais da vida, de cozinhar um miojo às angústias que pairam nas mentes, as últimas duas canções, “Dia Útil” e “Seus Vazios”, arrematam o repertório da obra em grande estilo, sintetizando a identidade do quarteto. “Inútil eu me sinto quando eu estou só / Perdoa, amor, o meu jeito fútil / Tristeza é um dom pra quem sabe chorar”, canta a primeira, com um grave baixo reforçando a melancolia e a insegurança de se sentir. A última também vem embalada pelos graves e ainda ganha o grande reforço da viola de Fábio Tagliaferri, pai de Sophia, enquanto a letra passa pela ânsia da inexperiência de quem aprende a lidar com o inesperado – seja no amor ou em outros campos da vida. A solução é ter coragem. “Me sinto pronto pra morrer”, cantam os versos em meio a guitarras, vozes e bateria.

Jovial e delicado, o quarteto rompe com as criações que antecederam este primeiro álbum e se joga, com primor, em um universo de novas possibilidades. No último sábado (12), na Casa Rockambole, o grupo mostrou sincronia, intimidade e entrosamento no show de estreia do projeto – em meio a brincadeiras e um clima despreocupado. Uma atmosfera que a banda cria com naturalidade e ritmo próprio. “Esse disco é resultado de um trabalho muito intenso, de muita conversa, discussão, caminhos e escolhas da nossa banda. E acho que é muito doido fazer um trabalho artístico envolvendo pessoas diferentes que veem a música de formas diferentes. É muito legal, porém dá bastante trabalho. Acho que o que eu quero causar no público é que realmente a gente pode falar qualquer coisa numa canção. O que eu quero dizer é: não são só as palavras mais presentes numa canção que podem estar lá. Sei lá, diga miojo, diga soldado, diga o que você quiser dizer. Coloca um contrabaixo e uma percussão com bit crush, faça um arranjo de cordas para uma música, tenha beat numa outra, faça uma música séria e a outra tirando sarro da sua seriedade. A vida é toda contraditória mesmo, bora viver as coisas direito e se entregar pro que der e vier. Vamo indo, minha gente, que essa vida não tem parada, é um voo direto”, encerra Chablau.

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