Bole árabe: uma breve história dos ritmos árabes no funk

De Furacão 2000 a MC Bin Laden, os marcos da prolífica e versátil conexão entre os dois universos

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Fotos: Reprodução

Você provavelmente já escutou por aí algum funk com vocais numa língua nada familiar, ou ainda instrumentais que mais lembravam o acompanhamento de uma apresentação de dança do ventre. Um nome talvez venha à mente: MC Bin Laden, de quem falaremos aqui. A junção desses dois gêneros parece inusitada e até aleatória: por que e como ritmos tradicionais árabes – e às vezes até versos cantados do Corão – foram parar nos batidões dos bailes brasileiros?

É importante entender os pontos comuns entre os ritmos árabes e o funk. Em primeiro lugar, são formas musicais que remetem diretamente aos ritmos e gêneros de matriz africana, especialmente se considerarmos que boa parte do Mundo Árabe está localizado em África – países como Marrocos, Argélia, Líbia, Egito e Sudão são árabes e estão localizados no continente. Houve, portanto, trocas culturais recorrentes entre povos da região saariana e subsaariana, o que implica também regiões de onde veio boa parte da população preta que foi trazida ao Brasil em condição de escravidão. Já o funk tem influência importante do Miami bass, gênero musical estadunidense inicialmente produzido e apreciado por pessoas pretas, e que tinha como principais influências o hip hop e o electro. Dessa forma, existem conexões históricas, sociais e culturais entre ambos.

Já do ponto de vista formal, um elemento comum entre o funk brasileiro e os ritmos árabes são as batidas sincopadas – ou break beats – que fazem os dois ritmos naturalmente dialogarem. Em ambos os gêneros, o uso dos instrumentos frequentemente envolve improvisos e solos com enfoque na percussão: o pandeiro tem um primo distante chamado dafi, e diversos tipos de tambores e atabaques têm como parentes árabes o derbake, o tabal e o mazhar. Importante citar também o berimbau, clássico dos primeiros hits do tamborzão carioca, que aparece sampleado nas faixas de DJ Sandrinho, DJ Edgar e DJ Sany Pitbull. No Mundo Árabe, ele também tem um primo – esse com certeza mais distante –, o rebab.

O funk é provavelmente um dos gêneros de música eletrônica brasileira mais versáteis e experimentais da atualidade. Cada MC e cada produtor é um mundo em si, repleto de referências que frequentemente saem do escopo da música ocidental e do mainstream, bebendo de fontes obscuras. Essas referências passam por releituras até serem aplicadas a esse estilo tão amado por nós. Desse modo, a história da presença dos ritmos árabes no funk brasileiro permanece incerta. Ela pode ter sido fruto tanto de um processo muito antigo de assimilação musical decorrente da cultura trazida dentro dos navios negreiros quanto algo mais recente, talvez remontando a algumas canções clássicas do É O Tchan e da Banda Eva nos anos 1990. Não existe ainda um estudo formal sobre a história dos ritmos árabes no funk brasileiro, mas ao longo de uma ampla pesquisa aqui feita, conseguimos chegar em alguns registros e momentos marcantes da trajetória desse subgênero. Dito isso, podemos mergulhar agora nesse verdadeiro bole das Arábias!

 

FURACÃO 2000 E A VANGUARDA ARABISTA

Três das várias coletâneas lançadas pela Furacão 2000 – nos anos 2000 – foram vanguardistas: uma delas é a Festa Techno: O Som das Popozudas, que contém a faixa “Bole Árabe”, produzida por Dennis DJ e a Caravana da Furacão. A canção contém vocais sampleados que ressoam o canto microtonal árabe, além de riffs de guitarra com escalas comuns na música árabe e percussões que lembram o som do derbake.

A segunda coletânea é a Gigante, vol. 1, que contém a faixa “Miguel Couto/Egito”. Nessa canção, utiliza-se mais uma vez escalas árabes depois reproduzidas em beatbox, provavelmente pelo próprio Miguel Couto, que também rima em cima de um instrumental electro. Esse instrumental foi posteriormente lançado numa coletânea chamada Bases Instrumentais para MCs em 2003, sob o título de “Hassan 2000”, um nome próprio masculino comum no Mundo Árabe. Os graves sincopados acompanhados dos sintetizadores hipnotizantes e o famoso “tamborzão” tornam a música muito envolvente.

E por fim a coletânea que lançou o grupo no Brasil todo, Tornado Muito Nervoso, contém a faixa “Árabe 2000”, de Marquinhos Pixadão. A faixa é quase um funk romântico, com batida mais lenta e melodia suave, acompanhada de sons que lembram a tradicional flauta transversal al-bahr, bastante comum no Mediterrâneo, além de sintetizadores etéreos. Ainda assim, a autenticidade própria do gênero jamais é deixada de lado: o tamborzão e os samples de sons de armas característicos do gênero mais popular do Rio de Janeiro se fazem presentes, além das letras eróticas.

MC BIN LADEN E O PÓS 11 DE SETEMBRO

O funk produzido antes do ataque às Torres Gêmeas no dia 11 de Setembro de 2001 sofreu um hiato no uso de referências musicais e temáticas que remetessem ao Mundo Árabe ou a qualquer expressão da cultura islâmica após o atentado. Isso se deve à subsequente política dos EUA de Guerra ao Terror, declarada pelo presidente George W. Bush, o que levou à invasão do Iraque e do Afeganistão, além de outros conflitos na região direta ou indiretamente ligados ao império estadunidense. Essa declaração de perseguição aos árabes e muçulmanos não era apenas literal, no sentido da própria guerra, mas também cultural, de modo a condenar tudo o que fosse associado a esses povos e suas tradições.

No entanto, alguns anos depois, já em 2014, o cantor e compositor paulista Jefferson Cristian dos Santos Lima mudou essa história, ao adotar o nome artístico MC Bin Laden. Ele assumiu o nome do suposto mandante do maior atentado terrorista televisionado da história, e passou a se referir a Al-Qaeda e aos homens-bomba de modo a admirá-lo. Além disso, ele aproxima essas referências da realidade da quebrada brasileira, utilizando referências bélicas como nomes de armas e o conceito de “soldados”, “iraquianos” e outras expressões que evidenciam a periculosidade do próprio cantor e de seus companheiros.

“Passinho do Romano” (2014), um dos grandes lançamentos do MC Bin Laden, tem sample de uma canção árabe e popularizou um estilo de dança que viralizou na época, com o passinho. Já a célebre canção “Passinho do Faraó” (2014) possui referências ao Antigo Egito. É necessário dizer que artistas não são historiadores ou etnógrafos, e por esse motivo o sample utilizado nessa canção não é cantado em árabe; trata-se provavelmente de uma canção indiana. Essa faixa ganhou um videoclipe com uma estética bastante caseira e aparentemente feita entre amigos, no qual pessoas aparecem vestidas com indumentária de faraós, súditos egípcios, múmias e até uma pessoa vestida como Júlio César e outra como a rainha Cleópatra. Hieróglifos, pinturas, imagens de tumbas e sarcófagos também aparecem no clipe.

“Bin Laden Não Morreu” (2014), apesar de menos conhecida, é uma faixa de uma riqueza experimental muito grande, a começar pelo fato de o início ser o noticiário do Jornal Nacional informando a captura e execução de Osama Bin Laden. Sons de metralhadoras, bombas explodindo e sirenes são sampleados, e MC Bin Laden ao longo da letra trata do atentado e seu caráter memorável, além de sugerir a imortalidade do líder da organização terrorista.

Vale citar também “Casa Blanca” (2017), uma faixa que traz referências a Saddam Hussein e ao Iraque, e inclui os seguintes versos: “Capitão América, ele foi acionado / Com gibi nóis não se ilude / Porque o nosso inimigo é o George W. Bush”. O tom anti-imperialista e em oposição ao presidente republicano que declarou a Guerra ao Terror é interessante para pensarmos como o trabalho de MC Bin Laden permite outro olhar para as questões políticas árabes em chave histórica. Além disso, a canção ainda diz: “É Bagdá, nóis não quer fama / Avisa pro Obama que nóis quer a Casa Blanca”. Aqui, ele faz um jogo de palavras com a cidade de Casablanca, no Marrocos, e a Casa Branca, residência dos presidentes estadunidenses.

“VEM DANÇANDO” E A INDIGNAÇÃO DA COMUNIDADE MUÇULMANA

O videoclipe de “Vem Dançando” (2017), da dupla MC Nando e MC Luanzinho, hoje tem mais de 4 milhões de visualizações no YouTube. No entanto, na época ele foi tirado do ar por conta de uma enxurrada de comentários negativos nas mais diversas línguas, mas especialmente em árabe e turco. O caso é que a canção utiliza como sample um trecho do Corão, livro sagrado do islam cujos versos são cantados dentro de mesquitas ao redor do mundo. O caso levou a produtora a registrar boletim de ocorrência devido às ameaças, e a dupla decidiu gravar outra versão da música, mudando o arranjo e o uso de samples de modo a evitar controvérsia. O uso desse tipo de conteúdo religioso para produzir músicas que falam majoritariamente de festas, dança e sexualidade é uma questão polêmica e gera possibilidades de discussão quando falamos sobre a presença da cultura musical árabe dentro do funk brasileiro.

O BOLE ÁRABE HOJE

Na atualidade, a música árabe e a cultura islâmica seguem sendo fonte de inspiração para muitos jovens produtores e MCs. Dentro do rave funk, podemos mencionar a canção “RAVE DAS ARÁBIA” (2020) do DJ e produtor kLap, em que instrumentais com escalas da música árabe reproduzidas em flautas são incorporadas a ritmos eletrônicos avassaladores e à clássica batida sincopada do funk. Outra canção chama bastante atenção ainda no mesmo subgênero: “Aquecida” (2020), da DJ e produtora baiana Kioma, que traz também referências instrumentais à música árabe, além de mergulhar na bass music brasileira por meio de fontes que extrapolam a música ocidental. Podemos citar também artistas mais conhecidos, como MC Lan em “Arebunda” (2018) ou uma versão brega funk da canção “Catucadão” (2020), que inclui participação de MC Dricka, o que mostra que o uso de elementos da música árabe está por toda parte para quem ouve atentamente.

A música árabe se popularizou a partir do funk que mais recentemente observamos nossos brimos árabes produzindo funks. Um exemplo é o do ator e ex-BBB de origem síria Kaysar, que assim como outros imigrantes no Brasil veio fugindo da guerra e, além de ator, se aventura pelo funk. Ele inclusive produziu com o próprio MC Bin Laden: numa canção de brega funk chamada “Funk das Arabias” (2020) escutamos referências instrumentais e samples árabes. Também se faz menção à Ali Baba, personagem da fábula Ali Baba e os Quarenta Ladrões, presente no compilado literário de histórias Mil e Uma Noites. Aparecem outras referências como a dança do ventre e momentos em que o próprio Kaysar canta trechos em sotaque sírio. Outra canção do artista sírio-brasileiro que demonstra essa relação tão estreita entre o Brasil e o Mundo Árabe é “Arebaba Tictic” (2021), realizada com a participação do MC Poneis, DJ BL e DJ Pedro Azevedo.

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