Cinco anos após Sombrou Dúvida (2019), o Boogarins lançou hoje (26/11) Bacuri, álbum que traduz a jornada da banda formada em Goiânia em suas fases mais inventivas e enérgicas. Um pouco mais distante da correria das turnês – inclusive por palcos internacionais – dos últimos 10 anos, o quarteto se reconectou com as raízes ao gravar o disco completamente em casa. “Desde o início, a gente produziu o disco em casa e tentamos fazer de um jeito que ficasse mais condizente com o nosso tamanho dentro das coisas”, define Benke Ferraz, guitarrista e produtor. Essa escolha, simultaneamente prática e simbólica, reflete uma espécie de retorno à espontaneidade que marcou o início da trajetória do Boogarins, mas com o filtro do amadurecimento. Bacuri é um trabalho meticulosamente artesanal, capaz de dialogar com o público cativo sem abdicar de experimentações. “Tivemos tempo para queimar esse cartucho de estúdio”, comenta Ynaiã Benthroldo, baterista, ao comparar a experiência de gravação de Bacuri com a de álbuns anteriores.
Produzido por Alejandra Luciani e pelo próprio Boogarins, o disco traz um “Hi-Fi caseiro”, como se cada textura sonora e detalhe instrumental contasse histórias de quatro amigos que cresceram na estrada, mas que também compartilharam o peso da vida adulta. “Sempre vai ser a gente, mas nós vamos mudando – o tempo passa”, diz Benke. Gravado entre 2021 e 2024 na residência de Luciani, Dinho Almeida (guitarrista e vocalista) e Fefel (baixista), em São Paulo, depois da pandemia, o álbum é fruto de um processo colaborativo, que junta uma coesão estética escorada no rock e a energia coletiva de uma performance ao vivo. “Foi muito importante pra gente se encontrar mais uma vez como bando, depois de um recesso forçado. Acho que nisso, voltamos às raízes”, reflete Fefel. Segundo Benke, a decisão de gravar “em casa e com calma“ veio após desencontros com a antiga gravadora americana (OAR Records) e com potenciais produtores internacionais — esse retorno ao lar permitiu que a banda priorizasse a escuta mútua e o diálogo criativo. “A visão da gravadora era que a gente tinha que mudar muita coisa, quando sentíamos que estava tudo mais pronto”. Mesmo assim, o contato com outros produtores deu a certeza para a banda sobre a forma do projeto amadurecer. “A gente falou com o Adrian Quesada, do Black Pumas, com o Mario Caldato, que, na reunião, falou: ‘ah, porque as músicas estão prontas, né’. Isso nos fez ter noção um pouco”, relembra Benke.
“Quando a gente começou a gravar, já tinha um tanto de quilometragem rodada, e acabou sendo muito natural. Defendemos até o fim que o disco soasse como a banda ao vivo, de rock mesmo”
– Ynaiã
Um novo Lo-Fi
Bacuri carrega um espírito de organização e intenção que equilibra o experimental e o acessível. Desde a célebre estreia “caseira” As Plantas que Curam (2013) até o mais recente trabalho, nota-se uma transição no modo com que a banda utiliza o espaço doméstico como laboratório criativo. “Quando a gente começou a gravar, já tinha um tanto de quilometragem rodada, e acabou sendo muito natural. Defendemos até o fim que o disco soasse como a banda ao vivo, de rock mesmo”, comenta Ynaiã. Enquanto o primeiro disco era uma explosão de criatividade, crua e despreocupada, o mais recente consolida arranjos intrincados, que capturam o rigor técnico amadurecido ao longo de mais de uma década de atividade. “A gente se juntou só para ensaiar essas músicas, coisas que a gente não fazia numa gravação de disco há muito tempo. Como era pandemia, a gente se deu esse luxo de dar um tempo e pensar nessas músicas a partir dessas versões de ensaio mesmo, tocadas ao vivo”, comenta Benke.
“Foi muito importante pra gente se encontrar mais uma vez como bando, depois de um recesso forçado. Acho que nisso, voltamos às raízes”
– Fefel
Enxergado a partir de referências, Bacuri traz em seu DNA uma curiosa aproximação com o White Album (1968), dos Beatles, tanto no formato quanto no espírito. Aqui, o Boogarins retorna ao ambiente caseiro e ao registro em banda, com as ideias iniciais ganhando espaço para florescer com naturalidade, sem pressões típicas de uma gravadora. “A gente arranjou o disco todo na garagem”, lembra Fefel, ressaltando o aspecto íntimo do processo. Assim como White Album marcou uma pausa no maximalismo das sessões de estúdio dos Beatles, Bacuri privilegia a simplicidade como ponto de partida, algo que a banda considerou essencial: “A gente fez o disco a partir das primeiras ideias. Aquela primeira coisa, né, que é tão massa que a gente não precisa pensar em mudar ou elevar”, resume Fefel.
A presença de múltiplas vozes pelo repertório reforça a comparação. Assim como o clássico de 1968, Bacuri é uma colagem das perspectivas individuais dos integrantes, que compartilham vocais e composições de maneira equilibrada. “Pode ser que seja o nosso álbum branco, no sentido que parece que são muitas composições, tem canções de todo mundo, todo mundo canta”, reflete Benke, destacando a pluralidade criativa que define o disco, que traz, por exemplo, o baterista Ynaiã cantando a faixa-título.
O álbum também abraça um lado mais “palpável” do Boogarins, lastreando a energia ao vivo, sem abrir mão da exploração de timbres e texturas. “Escolhemos desacelerar e isso nos permitiu ouvir uns aos outros de forma mais atenta”, explica Benke. Essa atenção reverbera em cada faixa – são momentos de vigor explosivo se alternando à introspecção meditativa, em um mosaico de emoções e paisagens sonoras.
“A gente se juntou só para ensaiar essas músicas, coisa que a gente não fazia numa gravação de disco há muito tempo. Como era pandemia, a gente se deu esse luxo de dar um tempo e pensar nessas músicas a partir dessas versões de ensaio mesmo, tocadas ao vivo”
– Benke
O bacuri que amadurece
O título do disco, nome de um fruto amazônico e do cerrado, é uma metáfora rica que sintetiza as camadas de significados presentes no trabalho. O termo, também usado como sinônimo de “criança” em algumas regiões do Brasil, dialoga com a trajetória do grupo: os “meninos” de Goiânia que conquistaram palcos pelo Brasil e o mundo agora refletem sobre paternidade, laços familiares e o impacto de suas jornadas individuais. “Acho também que esse disco é muito importante, porque ele tem todo um ciclo. Ele representa o fim de alguns ciclos, o início de uma nova era, e a volta de um processo que começou 10 anos atrás, que foi os meninos gravando o primeiro disco num quarto”, examina Ynaiã.
Em um cenário no qual o rock nacional frequentemente se vê em busca de renovação, o Boogarins se destaca pela capacidade de reinventar sua própria linguagem.
Bacuri não é apenas um álbum, mas um retrato de como a banda se adaptou a diferentes tempos e contextos sem perder sua identidade. Se antes eram reconhecidos por improvisos e atmosferas densas, agora apresentam um trabalho mais polido, que não abre mão do frescor da imprevisibilidade. “A gente sempre começou a tocar vindo da garagem, vindo desse rolê do underground, era sobre fazer um som que a gente curtisse muito antes de pensar se a canção era pop. Vai ter gente que vai chamar isso de psicodelia, de percussividade, de fluidez, de outras coisas”, reflete Benke.
No fim das contas, Bacuri é um marco que celebra uma década de existência do Boogarins, enquanto lança as bases para o que vem pela frente. Como um fruto que precisa amadurecer para alcançar seu sabor pleno, o álbum é a prova de que o tempo foi aliado poderoso da banda goiana.
“A gente visualiza ter lançamentos mais constantes. E pra isso rolar com frescor, com mais espontaneidade. Então, acho que não tem muito limite para o que a gente pode fazer”, arremata Benke.