Cadê: Caetano Veloso e Banda Black Rio – Bicho Baile Show (1978)

Disco marca o encontro ao vivo de nomes de peso da MPB, e ainda assim é esquecido

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O Rio de Janeiro viveu um período de extrema ebulição cultural no início dos anos 1970 e a música negra era seu fio condutor. Tudo começou nos subterrâneos da periferia da cidade, através de grandes bailes nos quais o Samba dava lugar ao som que vinha dos Estados Unidos, também conhecido como Funk. É interessante notar que a eleição do ritmo americano se dava por conta das recentes batalhas pelos direitos civis e da conscientização as populações pobres e negras das grandes cidades americanas. Eram todos brothers e sisters, não importa em que canto do planeta estivessem. Essa ebulição cultural, esse agito na Cidade Maravilhosa, esse zum-zum-zum palpável no ar, seria conhecido como Black Rio.

Em pouco tempo, as canções desses grandes bailes estariam nas programações das rádios e lançadas sob a forma de coletâneas de sucessos, através da chancela das equipes de som. Estas eram grupos de DJs, animadores e empresários da noite suburbana, que haviam alcançado audiências inimagináveis em seus bailes. Aos poucos, eles foram influenciando na própria divulgação das canções, e, em pouco tempo, artistas brasileiros de Funk surgiriam. Àquela altura, Jorge Ben, Tim Maia e Cassiano já possuíam carreiras estabelecidas, sempre neste segmento de mercado e, curiosamente, não mergulharam nessa nova cena musical, apesar de desfrutar de condição privilegiada. Gente como Gerson King Combo, União Black, Don Beto se somava a novos nomes como Sandra de Sá, Carlos Dafé e a própria Banda Black Rio. Esta última, batizada com o nome do movimento, foi a grande contratação da Warner, presidida por André Midani, naquele ano de 1977.

Formada por Luis Carlos (bateria e percussão), Barrosinho (trompete), Lucio (trombone), Claudio Stevenson (guitarra), Jamil Joanes (baixo), Cristovão Bastos (piano) e Oberdan Magalhães (saxofone), todos músicos que já atuavam em várias frentes, inclusive ex-participantes de bandas seminais como Don Salvador e Abolição, Black Rio estreou com grande sucesso naquele ano, com seu soberbo álbum Maria Fumaça. Logo a faixa-título foi parar na abertura da novela global Locomotivas e a banda já era recrutada para novas gravações, entre elas, o novo disco de Carlos Dafé, Venha Matar Saudades. Dafé havia cantado na noite suburbana por longo período, inclusive em encarnações primitivas da própria Black Rio, e havia chegado às paradas com os hits Pra Que Vou Recordar O Que Chorei e De Alegria Raiou O Dia, esta última, já com participação da Banda. Era uma grande aposta da Warner e seu novo trabalho vinha com grande estratégia de divulgação e investimento da gravadora.

O álbum de Dafé chegou aos ouvidos de Caetano Veloso, na época, buscando músicos para uma versão um pouco mais dançante do show que fazia pra promover Bicho, seu disco de 1977, do qual Odara era o grande sucesso nas rádios. O baiano, é claro, nunca foi um participante deste movimento, mas, assim como seu grande amigo, Gilberto Gil, sempre foi um atento observador das oscilações sócio-culturais e percebeu o momento. Se Gil havia gravado Refavela (1977), um grande álbum no qual fazia a crônica do próprio Black Rio, Caetano preferiu atacar em outra frente. Após contato com Oberdan, recrutou a Banda Black Rio para acompanhá-lo no show, rebatizado como Bicho Baile Show. O palco foi o Teatro Carlos Gomes, no Rio, devidamente lotado para ver a mistura improvável em ação. Há um claro problema de entrosamento entre a poética caetaniana e o groove da Black Rio, mas há momentos luminosos. Odara e Gente, já bem próximas da estética pré-Disco, ganham em peso e ritmo, parecendo sob medida para a ourivesaria de arranjo do pessoal black. Alegria, Alegria, colosso de outras era, ressurge com riff de guitarra improvável, mas extremamente eficaz. Tigresa, outra radiografia daqueles tempos, também ganha em ataque, mas parece fora de esquadro. As faixas do primeiro disco da Banda, Leblon Via Vaz Lobo, Maria Fumaça, Na Baixa do Sapateiro, Baião e Caminho da Roça, instrumentais e balançadas, às vezes quebram a sequência do espetáculo, mas não chegam a atrapalhar o conjunto. Surpreendente mesmo é a versão de Qualquer Coisa, clássico de Caetano, totalmente refeita e levada do eixo Rio-Santo Amaro para uma improvável Los Angeles instrumental e cheia de bossa. A versão trio elétrico-funk de Samba, Suor e Cerveja encerra os trabalhos com classe.

O show foi devidamente gravado na época mas foi arquivado e permaneceu esquecido até 2002, quando Charles Gavin, que foi incumbido de pesquisar dados e conceber a caixa Todo Caetano, decidiu incluí-lo em meio aos discos de carreira do cantor e compositor. Só disponível no enorme box Bicho Baile Show, logo tornou-se item de colecionador. A caixa está fora de catálogo há tempos e o disco avulso pode ser encontrado em sites por valores que variam entre R$ 300,00 e R$ 450,00.

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Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.