Cadê – mundo livre s/a – Samba Esquema Noise (1994)

Estreia dos pernambucanos ainda é nova 20 anos depois

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O que é o “novo”? Essa questão é sempre recorrente quando falamos sobre música. Seria o novo single de uma banda de 2014, que chupa sem dó os conceitos de Los Hermanos e similares, lançado pela Internet ou um álbum de 1994? Ou de 1954? Em alguns momentos através da linha da História, surge aquilo que é inédito, sob o ponto de vista de, simplesmente, não haver nada parecido ou capaz de despertar consciência e noções pela primeiríssima vez em um número considerável de pessoas. E, em raras ocasiões, todos os requisitos para a definição de “novo” surgem numa só obra de arte. É o caso desta estreia miraculosa dos pernambucanos do mundo livre s/a (com minúsculas mesmo).

O início da década de 1990 foi um tempo interessante para o rompimento de formatos e jornadas por terrenos inexplorados. A demanda artística praticamente exiga da música popular brasileira uma aproximação com parâmetros regionais, a partir da lógica da tal globalização. O conceito dizia que era possível você estar no mundo sendo, ao mesmo tempo, nativo de um lugar ou grupo e guardar com eles uma forte identificação e ser do mundo, do planeta, numa de que “somos todos humanos”. Hoje podemos ver que essa ideia exibe uma série de falhas mas nenhuma delas era visível há vinte anos e essa utopia global era, por assim dizer, executável. No caso do pessoal de Recife, capital de Pernambuco, fazer música era não estar no mapa. A música nordestina tivera um período interessante nos anos 1970/80 através de artistas como Alceu Valença e Robertinho do Recife, que ousaram em misturar elementos de Rock/Pop com tradições regionais. Mesmo assim, era mais fácil que o Brasil enxergasse os representantes do Nordeste como sendo a mesma coisa, com exceção da Bahia, não havendo qualquer representante da região no mapa do sucesso dos anos 1980, no segmento Rock. Isso mudaria em pouco tempo.

Fred Zeroquatro era um jovem nesta Recife oitentista. Formou-se em jornalismo e sempre teve interesse por música, porém detectava uma estagnação cultural na cidade, que atingia níveis graves em se tratando de opções para jovens. Aos 19 anos ele formou o mundo livre s/a, com nome retirado da filosofia “no alternative” de Ronald Reagan. A ideia era misturar Punk Rock com ritmos regionais, com aval fornecido pelas influências de Jorge Ben. Aos poucos a cena da cidade foi mudando, outras bandas foram surgindo e, no início dos anos 1990, o clima era outro. Zeroquatro então escreve o manifesto “Caranguejos Com Cérebro”, radiografando a cidade em mutação, o surgimento de várias bandas e um conceito que englobava tudo isso: o Manguebeat (ou Manguebit). O manifesto fazia alusão aos rios da capital pernambucana e como a poluição em seus cursos poderia significa a asfixia da própria cidade, numa metáfora entre o problema e o isolamento que Recife sofria por parte dos centros urbanos nacionais, sobretudo Rio e São Paulo. Zeroquatro também se vale da figura do manguezal, que forneceria a característica mais marcante da cidade, o terreno no qual deveria ser instalada uma antena parabólica para que a juventude fosse conectada com o resto do planeta, para que fosse possível fazer parte dele e trazê-lo para as ruas e rios, num mecanismo de retroalimentação. Faltava alguma gravadora com disposição para garimpar aquela cena.

A primeira banda de Recife a despontar para o país foi Chico Science e Nação Zumbi. mundo livre s/a veio em seguida. Enquanto a primeira firmava contrato com o Selo Chaos (da Sony), o grupo de Zeroquatro era apresentado no elenco da novíssima Banguela Records, gravadora de propriedade do jornalista Carlos Eduardo Miranda e Titãs, vinculada à Warner Music. O nome de sua estreia? Samba Esquema Noise, aludindo ao primeiro álbum de Jorge Ben, Samba Esquema Novo (1963), devidamente atualizado em termos sonoros. No auge das operações, a Banguela vinha do lançamento do primeiro álbum dos brasilienses Raimundos, com forte influência de ritmos nordestinos e apostava firmemente na novidade e no ineditismo, duas características primordiais da produção recifense. Zeroquatro e seus comparsas entraram em estúdio com carta branca para registrar em disco o que ia por suas cabeças. A mistureba praticada pela banda desde sempre era enriquecida com noções de Hip Hop e Rock Psicodélico à la Jimi Hendrix, tudo a favor da narrativa urbana e contundente que o vocalista/cérebro/caranguejo ia desfilando. Mesmo com tanta informação, o elemento dançante não era esquecido, no sentido de que todas as canções apresentavam alguma levada irresistível.

As gravações no estúdio Be Bop (SP) transcorreram bem, mas atrasaram e estouraram o orçamento previsto. Participações especiais pipocaram por todos os lados, indo de Nasi (Ira!) em Homero, o Junkie, Malu Mader (esposa do titã Toni Bellotto) em Musa da Ilha Grande, o naipe percussivo da Nação Zumbi (Gilmar Bola 8, Toca, Gira, Canhoto e Dengue) em Sob o Calçamento (Se Espumar É Gente), que também contou com os “titãs” Paulo Miklos, Charles Gavin e Nando Reis. O resultado fracassou nas vendas, mas cravou o nome da banda nas listas de melhores daquele ano e de todos os tempos da música brasileira. Era impressionante ouvir o cavaquinho de Zeroquatro na introdução de Livre Iniciativa, misturando o caldeirão de influências e desaguando numa levada pontuada por guitarras pesadíssimas, que se alternam ao longo dos menos de três minutos de duração. A faixa de abertura, Manguebit, clama a autenticidade de tudo o que está por vir, abrindo passagem para a levada dolente e enguitarrada de A Bola do Jogo e possibilitando alternativas como o verso De vez em quando é bom falar dos fracassados, que abre Saldo de Aratu, cheia de interjeições típicas do cânon jorgebeniano. A psicodelia plugada no mangue e no satélite encontra sua melhor tradução em Uma Mulher Com W…Maiúsculo, na guitarra funky de Rios (smart drugs), Pontes e Overdrives, na já mencionada Sob O Calçamento e no encerramento, com a faixa título.

Samba Esquema Noise foi um cartão de visitas absolutamente acachapante, com um resultado que a banda não conseguiu mais reproduzir, apesar de contar com uma carreira de álbuns muito acima da média. Fred Zeroquatro foi um relator desta adolescência cultural recifense, bem como um dos que dispôs a lançá-la sob a forma de música. Após a morte trágica de Chico Science num acidente automobilístico (em 1996), o Manguebeat foi perdendo a importância e tornando-se parte do passado. Mesmo assim, como falamos no início do texto, os registros destes artistas em disco ainda guardam muito em novidade e arrojo. Bem mais do que a maioria esmagadora da música feita hoje no país e no mundo. O álbum foi lançado em CD em 1994, saindo de catálogo em seguida. Foi relançado pela Warner em 2001 e pela Deck em 2004, na caixa Box Bit.

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MARCADORES: Cadê?

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.