Straight outta lixeira

Conheça a Calmob, coletivo que está fazendo barulho no Rap underground brasileiro ao misturar fumaça, samples e sujeira

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Fotos: João Victor Medeiros

No alto do morro do bairro do Retiro, em Volta Redonda, no Rio de Janeiro, entre vegetação e muros pichados, há uma casinha com portão de ferro. Ela fica escondida atrás de algumas árvores, mas, passando por lá, é impossível não reparar na nuvem de fumaça da CSN (Companhia Siderúrgica Nacional) que envolve toda a cidade. Lá dentro, nove dos catorze integrantes do coletivo de Hip Hop Calmob estão juntos no estúdio. A sala, que à princípio parece grande, fica pequena quando ocupada por eles. Agrupados um bem perto do outro, estão atentos aos direcionamentos para a gravação de um videoclipe.

Calmob é composta por DC, l v k s, gvtx, Sedex, Raqui, Jmka, Dabel, Pedro Cotonete, Peagá, Kim, Sh1ft, Magroteus, Bowl e Nap. Com idades que variam entre 21 e 27 anos, o rolê da mob acontece sempre em torno de muito futebol (sejam nas peladas entre amigos ou reunindo-se para assistir um jogo na TV), cerveja nos bares da Colina – onde acontece a Calmódromo, festa do coletivo – e esfihas a rodo. Essa mistura, posteriormente, transforma-se no som feito por eles: marcado por loops e samples escavados “do fundo da lixeira do YouTube”. Soma-se a isso uma obsessão por embalar as histórias do cotidiano em uma roupagem nostálgica que, no fim das contas, nos remete a tempos mais simples. Ou mais calmos.

Em pé, da esquerda para a direita: gvtx, Dabel, Sedex, Bowl, Kim, lvks, Raqui e Jmka / Agachado: DC

Frequentemente associados ao que se convencionou chamar de Lo-Fi, a Calmob procura se afastar desses rótulos generalizantes. Segundo gvtx, nenhum deles senta no computador pensando em fazer Lo-Fi. “Se soa Lo-Fi, a gente não tem controle disso. É só beat, na nossa linguagem”, defende lvks. O coletivo não dispõe dos melhores equipamentos em nenhum dos processos que envolvidos no desenvolvimento de seu som. Assim, a estética que eles encontraram busca aproveitar essa limitação de recursos de uma maneira criativa assumindo os ruídos, os grãos e tudo mais. Por isso, a Calmob tenta manter tudo embaixo de suas próprias asas. O coletivo é composto por beatmakers, engenheiros de com, MC’s e artistas visuais que cuidam de tudo: desde a concepção até a distribuição gratuita de sua música nas plataformas digitais. 

Quase todos já participaram de algum tipo de projeto antes de entrar para a Calmob. Tudo começou em 2016, quando se encontraram em um grupo de Facebook. No início, a intenção era compartilhar saberes de beatmakers: samples, plug-ins para softwares de criação, etc. Assim, naquele momento, o coletivo já tinha se organizado, de certa forma, apesar da projeção para fora da Cidade do Aço não ter acontecido ainda. Mas, no dia 12 de junho do ano seguinte, isso mudou. A primeira música da Calmob saiu no canal do grupo no YouTube. Intitulada “Mônica (unmastered)”, o som – que não conta com mixagem nem masterização – trás as rimas de Peagá e as batidas de gvtx da dupla Anti-herói, ilustrada por imagens do anime Samurai Champloo. Pouco mais de seis meses depois, o canal Quadro em Branco mencionou a faixa em um de seus vídeos com um elogio: o melhor som que ouviram em 2017. E o que era antes uma parada que havia circulado apenas em Volta Redonda e região encontrou um público ansioso por ouvir algo com aquela sonoridade e com aquele visual sendo feito no Brasil.

Hoje, a música acumula mais de 260 mil reproduções (o segundo-lugar fica com o EP Olhos de Hokusai, também do Anti-herói, com 79 mil plays) e, apesar de não ter mudado o jogo para os membros da Calmob – ainda nenhum deles vive só do Rap – a experiência serviu para colocar o coletivo no mapa do Rap nacional e mostrar aos próprios integrantes até onde era possível chegar. Com a primeira mixtape a caminho de ser lançada ainda neste ano, o Monkeybuzz se encontrou com a Calmob para o que foi apenas a segunda entrevista que o grupo já deu. “Para começar, aquela pergunta clássica…” tentei completar, mas Cotonete interrompeu: “O que é Calmob? Não me pergunte o que é Calmob mais…”, cantou fazendo referência a uma das faixas da mixtape que tem a ordem como título. “É um coletivo de tudo que faz o rolê na cidade”, explica Raqui. O clima no estúdio é descontraído, parece que estamos conversando com um grupo de nove irmãos que nasceram um logo depois do outro. DC brinca: “tudo mesmo, até tráfico de drogas?”

DC são as iniciais de Diogo Carvalho, assim como também são as de Dragão Crioulo, persona incorporada nos trabalhos do MC que também funciona como um diretor de imagem do grupo elaborando clipes, fazendo fotos e cuidando das redes sociais. A sua voz arranhada e o fluxo constante de ideias se manteve durante toda a nossa conversa. E, quando ele fala, os demais param para ouvir. Ao mesmo tempo em que é possível perceber a horizontalidade dentro da Calmob, DC parece uma figura de liderança. “A mob é a mochila do Diogo. Tá todo mundo nas costas dele”, ri Cotonete.

Cotonete, ou apenas “Coto”, é beatmaker e engenheiro de som, responsável pela mixagem dos trampos da Calmob. Ele divide a casa onde fica o estúdio com Peagá, que é MC. Eles funcionam em um esquema yin-yang: enquanto o beatmaker acorda sempre mais cedo, liga os monitores de som e começa a fazer as atividades diárias ouvindo o Afrobeat de artistas como Mr Eazi, Peagá levanta aos poucos, faz um chá, como um pão e, só depois, se junta ao estúdio para as primeiras conversas do dia. Elas podem girar em torno de relacionamentos, algum jogo de futebol da liga árabe que passou na noite anterior ou uma palestra YouTube sobre o “Corpo sem órgãos” na obra de Antonin Artaud.

Segundo gvtx, o surgimento da Calmob foi algo muito espontâneo depois da criação desse grupo do Facebook voltado mais aos beatmakers. O nome surgiu a partir do Pokémon GO, quando o integrante Magroteus os intitulou #TeamCalmo e o fio condutor foi quando a galera começou a produzir em um lance mais Lo-Fi no que se refere a estética. “Foi quando os MCs entraram: o lvks fazia beat pra mim, o Peagá pegava beat com o gvtx, entrou o Jmka e assim foi”, comenta DC. “O que amarrou a gente foi a identificação natural mesmo, a vivência, geral ‘lixeira’”. “Lixeira” ou “Saco de lixo” é um adjetivo, na linguagem da Calmob, para tudo que é incrível ou surpreendente. Raqui, que tem uma beattape com o nome Lixeira, explica: “É ambíguo. Fulano colou com uma vodka no rolé, ‘lixeira’. Ou: “nossa, esse som é lixeira”, que dizer que o som é bom. Se o cara for um pela-saco, nós nunca vamos chamar ele de ‘lixeira’, do fundo do lixo se acha muita coisa boa”. E gvtx complementa – “o próprio sample mesmo, coisa do fundo do Youtube que ninguém quer, lixo virtual”. Ou simplesmente se cumprimentar com “e aí, saco de lixo!” que, segundo Cotonete, foi adotado até pelos trabalhadores da CSN quando ele trampou na siderúrgica.

Do primeiro plano ao fundo, à esquerda: Peagá, Cotonete e DC no estúdio da Calmob

“Lixeira” ou “Saco de lixo” é um adjetivo, na linguagem da Calmob, para tudo que é incrível ou surpreendente. Raqui, que tem uma beattape com o nome Lixeira, explica: “É ambíguo. Fulano colou com uma vodka no rolé, ‘lixeira’. Ou: “nossa, esse som é lixeira”, que dizer que o som é bom. Se o cara for um pela-saco, nós nunca vamos chamar ele de ‘lixeira’, do fundo do lixo se acha muita coisa boa”

“Quais os prós e contras de ter tudo sob o comando e responsabilidade de vocês?”, perguntei. “O bom é que fica nossa cara, o ruim…”, Cotonete pensa um pouco quanto os outros apenas observam, como se soubessem que ele está gerando uma pérola. Ele finaliza: “O ruim é que também fica nossa cara”. Riem. “Mas, a gente é lixeira e não liga muito para a opinião alheia”, diz gvtx. Apesar de os sons da Calmob serem tratados com muito zelo por Cotonete e SH1ft (o outro engenheiro de som), “Mônica (unmastered)” – que até hoje é a música com mais execuções do coletivo – explora a não-finalização como uma possibilidade estética. “Foi depois do Quadro em Branco”, assinala Peagá sobre o boom da faixa. “Apesar dos números serem relevantes, eles não alteraram a posição em que eu estou. Geral aqui ainda bate cartão”, conta o MC que rima da música sobre o beat de gvtx. “É uma romantização da pobreza que sempre foi muito forte aqui. De vagabundo achar que é nobre, você estar fudido. De que só é de coração se não tem muita gente ouvindo. Existem várias barreiras sistemáticas que são excludentes. O artista faz uma curadoria da verdade. A mulher que se diz ‘sertanejo raiz’ não pode reclamar da Marília Mendonça, porque ela não gosta de boi, ela gosta de ser corna. É a verdade que ela quer mostrar pro mundo.”

Raqui descreve a Calmob como “A Grande Família”. Às vezes, é preciso que Cotonete “vire super sayajin 8” e dê esporro em todo mundo no grupo de WhatsApp para as coisas andarem, mas naturalmente tudo se resolve. Sobre o processo, ele comenta: “Geralmente são uns áudios aleatórios de 15 segundos de alguém fazendo beat às duas horas da manhã, o lvks com uns ‘phonkzão’, algum MC já escreve e pede o restante do beat, assim vai.” gvtx concorda: “Mas, os beatmakers são bicho solto, a gente não faz beat por encomenda pros caras, não”

À esquerda, Raqui e Sedex.

“A Calmob não faz mais um bagulho Lo-Fi, mas foi uma fase”, pontua Peagá, ao que os outros integrantes balançam a cabeça em sinal de concordância. Buscando avançar para além desse estilo, o coletivo planeja lançar a primeira mixtape ainda esse ano. O trabalho será composto por nove faixas, sendo três instrumentais e as outras seis com a presença de todos os rappers integrantes. Apesar disso, a Calmob não se compara com outros grandes coletivos como Wu-Tang Clan, Odd Future ou a boyband BROCKHAMPTON. Eles são mais influenciados por rappers franceses como Alpha Wann, Krisy, Freeze Corleone. Além disso, servem de inspiração uns aos outros, principalmente com o trabalho das subdivisões que existem dentro da própria mob, como o duo Sãocria (Raqui e Jmka). Cotonete, por ser a pessoa que continua trabalhando depois que todo mundo gravou sua parte, comeu esfihas e foi pra casa, toma a palavra: “É um sonho, mas é pé no chão. Expectativa é só o que cada um tem no coração quando trabalha com o que ama.” “A expectativa é de um novo clássico”, brinca gvtx e Cotonete responde. “Receber um e-mail da FIFA dizendo: ‘olha, essa música ‘Vrum’ vai tocar no FIFA 21 (jogo).’”

A vivência “lixeira” amarra a família que é o coletivo Calmob. Mantendo tudo simples e em conjunto, tendo a Cidade do Aço como cenário, eles não estão recrutando novos membros e esse parece ser um ponto importante momentos antes do primeiro grande passo que será o lançamento do primeiro trampo conjunto. “Volta Redonda influencia muito todos nós. Até o céu é Calmob”, contempla Peagá, enquanto observa o céu em tons de rosa e pinceladas de azul, paisagem contraditória pela beleza que só é possível pela poluição provocada pela CSN. Enquanto a mixtape não vem, conheça o trabalho dessa galera no canal da Calmob no YouTube.

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ARTISTA: Calmob