CARMO e a coragem de sonhar

Artista sorocabano relembra trajetória no teatro e no canto – de aluno a professor – e fala dos aprendizados que redundaram no EP “Quarto Infinito”, seu projeto de estreia

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Fotos: Guilherme Fogaça

Na vida, as nossas grandes viradas pouco (ou nada) têm de glamorosas; no entanto, render-se à mudança é fundamental. Ainda que desconfortável ou dolorida, há algo de cativante neste ceder à própria vulnerabilidade, admitir a dúvida e, ainda assim – ou justamente por isso –, viver. Quando Ítalo Carmo explica seu envolvimento com a música, ele se volta para suas grandes crises pessoais. “Nesses momentos, a gente sempre acha que acabou, né? Acabou mesmo, nada vai dar certo mais, vai abrir um buraco no chão e você vai cair dentro! Mas sempre vem uma pinça e te puxa de volta. Você não percebe que está tomando as decisões que vão mudar sua vida, você só vai. Quando percebe, fala: não é que passei por isso, menina?”, diverte-se. Hoje, o cantor sorocabano de 27 anos celebra todos os erros e acertos que o trouxeram ao seu primeiro EP, Quarto Infinito (2021).

 

Amor pelos palcos

CARMO enquanto projeto artístico só existe hoje, por meio de sua marcante voz de veludo, porque aos 15 anos de idade, Ítalo decidiu fazer teatro. “Me ensinou a estar confortável fazendo qualquer coisa. Crescer sendo uma criança gorda e preta gera muitos medos — e o teatro tirou isso de mim. É tudo sobre se expressar, falar, jogar pra fora, sabe?”, relembra. “A gente tem muito essa coisa no mundo em que a gente vive: o que vão falar sobre mim? Ou se estão olhando o que eu estou fazendo. O teatro bota a gente para fora dessa casinha, porque o mundo fora dela é muito maior. A gente enxerga o mundo dentro dessa casinha e, quando você sai, é muito maior do que se pode imaginar, entende? Você respira de verdade”.

Depois de três anos de teatro, Ítalo parou as aulas. Como a fase dita, entrou no estresse de estudar para vestibulares sem ter a menor ideia do que gostaria de cursar de fato. “Quando a gente entra nessa casa dos 20 anos, a gente tem muito essa ânsia de se formar logo e fazer tudo antes dos 30. A real é que, depois que você faz 25, essa sensação de urgência vai passando e você percebe que pode sim só fazer o seu rolê do jeito que dá para fazer”. À época, a angústia era inescapável: o que eu tô fazendo da minha vida agora?, pensava. “Eu estava me questionando constantemente: não estou gostando do momento em que eu estou, nem do que eu estou fazendo — mas, o que eu posso fazer? Comecei a relembrar momentos que tive na minha vida que foram incríveis e comecei a dar uma pincelada nestas memórias, do tipo isso eu faria da minha vida”, conta. Então, ao acaso, Ítalo foi ver uma peça, Desterro, com várias performances musicais durante o espetáculo. Fascinou-se com a atriz que cantava e, se a ideia de voltar ao palco rondava Carmo de forma incerta, sem saber se o teatro era a investida desejada, o artista saiu do espetáculo com a cabeça feita: “Eu quero aprender a cantar”.

“A gente tem muito essa coisa no mundo em que a gente vive: o que vão falar sobre mim? Ou se estão olhando o que eu estou fazendo. O teatro bota a gente para fora dessa casinha, porque o mundo fora dela é muito maior. A gente enxerga o mundo dentro dessa casinha e, quando você sai, é muito maior do que se pode imaginar, entende? Você respira de verdade”

Aprender a aprender

A melhor coisa da minha vida foi eu começar a estudar canto do zero”, diz, “Eu cheguei no Conservatório e não sabia nada de música, nem o que era dó, nem ré. Aprendi a ouvir e soltar a voz, fazer o que eu faço hoje — cantar e ser professor de canto”. A passagem de Carmo pelo Conservatório Musical Rogério Koury, onde cursou Canto Popular, tece uma série de descobertas: sobre ele mesmo, desde o poder de sua voz até como lidar com seus momentos de ansiedade, e sobre música, desde sua teoria até referências históricas.

Entre as aulas de Percepção Musical, Canto Popular e História da Música, o sorocabano vivia para estudar — e amava. Descobrira artistas, bandas, movimentos, formas de cantar e, mais importante que isso: Ítalo descobriu que canta. “A gente tinha audições mensais e foi na minha primeira audição do Conservatório que eu decidi que queria ser cantor. Já tinha me apresentado em outra escola de canto, mas ninguém sabia mesmo que eu cantava, nem eu sabia que eu cantava!”, conta, “Minha primeira audição estava lotada de gente e eu tinha que cantar ‘Unforgettable’, de Nat King Cole, apenas eu e um piano de cauda. Nunca tinha cantado nem na frente da minha mãe — e ela estava lá também. Foi muito louco porque eu senti de novo o que eu estava buscando na época do teatro. Eu tenho um vídeo da hora que eu entro no palco e quando eu canto ‘Unforgettable’… o teatro inteiro faz “uau” em uníssono. Quando eu senti aquele uau, tive o estalo: é isso. Foi uma luz”.

 

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Formou-se no Conservatório e rapidamente aquela velha insegurança voltou a assombrá-lo. O que eu estou fazendo da minha vida? Embora todas as pessoas próximas incentivassem, não se sentia apto para dar aulas de canto, até que uma amiga do Conservatório o chamou para dar uma aula experimental na escola em que ela lecionava. “Eu dizia que não conseguiria dar aula de canto porque eu sou muito ansioso, até que um dia uma amiga minha me chamou. E sabe quando dá aquele momento só-vai? Eu fui. A primeira pessoa que chegou para fazer uma aula comigo foi meu primeiro professor de teatro. Eu estava em outro momento da minha vida, completamente diferente, mas foi uma conexão, sabe?”, relembra. “Comecei a dar aulas e entender muito de mim através dos meus alunos. O que eu colocava como barreiras e frustrações para mim, como medo de me apresentar, medo de cantar um agudo, enfim, medo. A gente coloca muito medo na frente das coisas. Eu tinha que passar coragem para as pessoas e não dá pra dizer “seja corajoso”, eu tinha que deixar as pessoas confortáveis e comecei a precisar ter coragem também”.

O processo de construção da coragem de ítalo começou ao fazer barzinhos para perder de vez a timidez e culmina em Quarto Infinito. “É um disco que tem muito agudo e eu tinha muito medo de cantar agudos. Qual é o melhor jeito de acreditar que se eu confiar, vai dar certo do que colocar esse tanto de agudo no meu primeiro EP? Isso vem lá da minha paixão por Disco, pela Whitney”, conta. Na lista de vozes proeminentes que guiam o cantor estão Jorge Ben Jor, Stevie Wonder e Tássia Reis. Há também um amor especial pela Diana Ross — se é para chorar, que seja dançando. Boa parte da pesquisa fora do mundo clássico veio de saborear os vinis do pai, que falecera quando ele tinha quatro anos de idade. Carmo já tinha se deparado com esta herança ao estudar Nat King Cole, para aquela primeira audição do Conservatório, e encontrou um vinil do cantor em casa; mais tarde, achar os discos de Earth, Wind and Fire, Michael Jackson, Jackson 5, Diana Ross e Giorgio Moroder deu outra dimensão ao repertório de referências do artista.

Sonhar é vital

Ítalo e conhece Zamur há pelo menos sete anos, uma amizade permeada por música, recomendações pontuais e conversas de bar. Em 2019, quando Carmo tinha uma banda q instrumental e Zamur começava a mexer com produção musical, as trocas entre os dois artistas começaram. Zamur despretensiosamente mandava uns beats e Ítalo comprou a ideia. Foi assim que nasceu o beat de “Sem Pressa”, segunda faixa do EP. “A gente foi buscando essa sonoridade a partir do que a gente estava a fim, foi bem orgânico. Eu gosto muito que a gente tem origens musicais muito diferentes: o Zamur tem mais experiência de banda e palco, enquanto eu venho do clássico — e a gente soma isso no eletrônico, que a gente gosta muito”, afirma o cantor.

A melhor coisa da minha vida foi eu começar a estudar canto do zero. Cheguei no Conservatório e não sabia nada de música, nem o que era dó, nem ré. Aprendi a ouvir e soltar a voz, fazer o que eu faço hoje — cantar e ser professor de canto”

“Eu não ouvia nada de música eletrônica e meus amigos — você percebeu que todas as minhas histórias começam com Eu não conhecia nada ou Eu não sabia?”, interrompe-se e ri. “Meus amigos começaram a colar em Techno e me chamaram pra ir. Eu fui em algumas festas antes da pandemia, com a intenção de me abrir para uma coisa nova mesmo. Porque a gente vai estudando apenas voz, aula de voz, e acaba se dispersando do que está acontecendo ao redor — e a música eletrônica não necessariamente tem vocais, o que eu acho interessantíssimo”. Depois disso, uma amiga DJ foi apresentando cada vez mais o mundo da música eletrônica para Ítalo. Em paralelo, as trocas com Zamur foram se tornando mais intensas.

A produção musical de Quarto Infinito é assinada em dupla, CARMO e Zamur. Das quatro faixas, Meu Amor é a única produzida totalmente por CARMO. A canção nasceu a partir de um poema que o cantor escreveu para uma cachorra que teve durante 18 anos e tinha acabado de falecer. “Essa música já teve muitas caras diferentes! Ela teve uma versão sambinha porque eu estava ouvindo muito Jorge Ben na época em que escrevi. Eu imaginava como seria o Jorge Ben cantando o poema. Depois, comecei a tirar no Conservatório com piano”, relembra. “Então, comecei a batucar pensando nesses sentimentos que a gente está vivendo agora, a gente perdeu muita coisa, muitos amores: pessoas, hábitos, coisas que a gente gostava de fazer, rotinas. Personifiquei tudo isso em ‘Meu Amor’. Meu amor foi embora no meio do tempo quente, rasgando toda a cidade, no meio de toda gente — a pandemia veio saindo do Carnaval, então para mim fez todo o sentido essa música para esse momento coletivo”.

“Tudo que a gente cria é dentro do nosso quarto, então nosso quarto é infinito de sonhos. A gente queria um álbum que as pessoas pudessem chorar dançando, sabe? E que inspirasse as pessoas a continuar a sonhar. É terrível tudo que a gente está vivendo, mas a gente não merece ficar nesse limbo para sempre. Eu mirei nesse futuro que a gente pode sonhar. Até porque, se você desiste de sonhar, você desiste de tudo”

No meio de tantas dúvidas e um desânimo geral arrebatador, sem ter ideia de quando o EP seria lançado, a bússola de Ítalo virou o conceito do trabalho: sonhar. “Tudo que a gente cria é dentro do nosso quarto, então nosso quarto é infinito de sonhos. A gente queria um álbum que as pessoas pudessem chorar dançando, sabe? E que inspirasse as pessoas a continuar a sonhar”, declara, “É terrível tudo que a gente está vivendo, mas a gente não merece ficar nesse limbo para sempre, tanto de país quanto da nossa energia pessoal. Eu mirei nesse futuro que a gente pode sonhar. Até porque, se você desiste de sonhar, você desiste de tudo, entende?”

Quarto Infinito saiu à meia noite de um dia de eclipse. Ítalo foi para a varanda e a primeira coisa que fez foi sorrir e olhar a lua. “Comecei a agradecer tudo que eu passei pra chegar até aqui”, conta. “E por ter chegado com uma sonoridade que eu amo, músicas que me emocionam muito, com pessoas incríveis, como Lucas Zamur, Débora Stevaux, Bianca Gancedo, Renan Lambert. Para mim é surreal, de extrema felicidade”. Para quem vê suas chagas com tanta crueza, resguardar a doçura das conquistas é fundamental. CARMO assina todo o arranjo vocal do EP, algo que o cantor considerava inimaginável até pouco tempo atrás. “Se eu tinha alguma dúvida se conseguia cantar, criar, qualquer dúvida de se eu podia algo foi respondida nesse EP: eu posso”.

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