São cinco faixas – e nem teria por que ser mais do que isso: a estreia do Cidadão Instigado é um soco. Em abril de 2000, Fernando Catatau botou na rua o primeiro EP do Cidadão Instigado, uma banda que começou a ser imaginada em 1994, quando Catatau e Junior Boca foram de Fortaleza para São Paulo tentar virar uma outra banda que tinham juntos, a Companhia Blue. “Eu vim do Ceará a procurar uma coisa que não tinha lá, muitos sonhos na cabeça que não paravam de crescer, solidificar. Veio eu, amigo meu, que também queria conhecer o mundo como eu, disse: aí Catatau, (indecifrável) Yeah, yeah, yeah, yeah (…) Começamos a batalhar, a procurar, a ralar, só que o meu amigo teve que voltar”, diz a letra de “Um Nordestino no Concreto”, segunda faixa do EP, narrando quase ao pé da letra a empreitada dos dois amigos que decidiram pegar um ônibus de Fortaleza para São Paulo sem muitos planos, mas com sonhos imensos. “Eu sou só mais um nordestino nessa selva de concreto que se chama São Paulo, mas eu estou aqui para vencer, não vou dar mole para nenhum otário”, arremata. Chegando à rodoviária da capital paulista, abriram um catálogo de telefones à procura de um albergue para ficar. Eram os dois contra o mundo, em uma cidade ainda mais preconceituosa do que hoje – e que, no fim, Catatau desarmou sozinho. Hoje com 53 anos, o cantor, compositor e guitarrista conhecido pelas colaborações em trilhas do cinema brasileiro e parceria com diversos músicos, de Otto a Juçara Marçal, relembra o processo criativo do primeiro EP da sua banda autoral e seu maior laboratório criativo, Cidadão Instigado.
Desde a infância, Catatau sentia um fascínio por São Paulo. E, desde a primeira edição do Rock in Rio, em 1985, começou uma paixão pela guitarra e toda rebeldia que dela emanava. Já sabia que não levava jeito para o piano porque a mãe o tinha colocado para estudar o instrumento com uma freira na infância. Não deu muito certo. Mas os shows de rock de lotar estádio na televisão e a era de ouro do pop, com Michael Jackson e Madonna, fizeram da guitarra um objeto de desejo, poder e subversão. “Nos anos 1980, quando teve o primeiro Rock in Rio, foi um marco para quem era adolescente e, para mim, foi quando eu virei e disse: eu quero ser roqueiro, eu quero ser isso, eu quero tocar guitarra. É igual hoje com trap, funk, piseiro, sabe? O rock era a rebeldia daquela época”, relembra. “A Nina Hagen veio para esse Rock in Rio, ela tava fazendo muito sucesso, eu adorava ela e não sei por que o produtor levou ela para Fortaleza e eu, pivete, fui ver o show. Ver a Nina Hagen tão novinho e todas essas coisas que estavam acontecendo na cultura pop foram me levando nesse caminho, mas a guitarra… Na realidade, eu não sabia se era o instrumento que eu mais gostava, mas era o instrumento que mais aparecia nas bandas e eu sabia que era aquilo que eu queria fazer”.
“Nos anos 1980, quando teve o primeiro Rock in Rio, foi um marco para quem era adolescente e, para mim, foi quando eu virei e disse: quero ser roqueiro, quero ser isso, quero tocar guitarra. É igual hoje com trap, funk, piseiro, sabe? O rock era a rebeldia daquela época”
Engatou na guitarra mesmo em 1990, tocando com Junior Boca. Vieram para São Paulo e, nas noites dilatadas do inverno de 1994, subindo e descendo a Rua Treze de Maio, Catatau se tornou um grande observador e cronista. Foi na rua, nos encontros e desavenças da noite, que surgiu a ideia de uma banda chamada Cidadão Instigado. Uma ideia que demandaria teimosia para sair do papel e ainda cobraria seis anos e a volta para Fortaleza para a gravação do primeiro trabalho. Não por acaso, o EP de estreia do Cidadão abre com uma interpretação de um trecho da trilha sonora do musical A Noite do Espantalho (1974), de Sérgio Ricardo, que anuncia: “É do povo. Sofrimento traz sabedoria, filho que sai da terra volta diferente, volta trazendo uma vontade dentro”. É curioso que, até pouco tempo atrás, Catatau não tinha visto o filme. Por muito tempo, A Noite do Espantalho foi um disco que chegou nas suas mãos só nos anos 1990 por meio de um amigo. A trilha sonora é assinada por Alceu Valença e Geraldo Azevedo que, no ano de lançamento do filme, tinham acabado de lançar seu álbum de estreia, Quadrafônico (1972), criação incontornável da fase psicodélica do Alceu.
Embora Catatau tenha escolhido a música exclusivamente a partir da trilha sonora, no filme, essa faixa – que é o único cover da discografia do Cidadão Instigado – vem na esteira do monólogo emblemático, que diz: “Eu também vi os mortos. Andei com eles pelos mesmos mandacarus, comi com eles o mesmo verme e a gente morria devagarinho, parecendo para sempre, voltando e vendo a morte no caminho. Vez por outra, era o consolo da noite na voz dos cegos e feridos, entoando o meio dia se cravando no peito da gente, tentando arrancar à força a morte lá do fundo – ponte quebrada entre o soluço e o riso das crianças. Mãe minha morria nos risos que não dava, do bicho de pé ocupando o lugar das manhãs dos seus pés fugorando carecendo de aurora, mais que qualquer noite cansada. Um pau-de-arara levou a última penca de morto pra enterrar em São Paulo na beira dos edifícios e dos viadutos, mas eu voltei.”

Mesmo desconhecendo o monólogo, Catatau decidiu inserir duas estrofes antes de começar a música que traduziam a mesma coragem que foi necessária no filme para enfrentar os abusos dos proprietários de terras e, na vida real, para o artista ficar numa cidade marcada pelo passo rápido, semblante fechado e que tenta, a todo custo, apagar a mão nordestina e nortista que a construiu. No texto que abre o disco, o compositor diz: “Se você me chamar de Paraíba ou baiano, não vai me soar estranho, pois eu sei que, aos teus olhos, eu sou apenas um incômodo que veio do nada para infestar o mundo. Mas escute: eu que vim do nada, não tenho canto nem corrente, só tenho um sonho que já é meu e duas palavras para lhe dizer neste instante: me aguente”.
Mesmo que você não tenha escutado esse EP, provavelmente já escutou esses versos em outra música do Cidadão Instigado. O texto está diluído em outros dois discos da banda, na faixa “Apenas Um Incômodo”, de Cidadão Instigado e o Método Túfo de Experiências (2005), e “Dizem Que sou Louco por Você”, de Fortaleza (2015). É um movimento próprio do processo criativo de Catatau, que gosta de conviver um tempo largo com histórias, personagens e reflexões, sem ter pudor ao recortar versos, riffs e redesenhá-los no próximo trabalho, sob outra linguagem. Toda obra do Cidadão Instigado acontece dentro desse universo de Catatau. Outro grande exemplo é o caso de El Cabrone e Zé Doidim, personagens que aparecem pela primeira vez no EP de 2000, mas cujos encontros cruzam a história da banda.
O primeiro contato que temos com essa história é na faixa “El Cabrone (O Caçador De Zé Doidins)”, provavelmente a faixa que melhor sintetiza o realismo mágico cearense dentro do EP Cidadão Instigado, em que metáforas profundas são enredadas com humor em um universo em que o surreal convive com o ordinário, cotidiano; o clima é de faroeste, bang bang, apresentando El Cabrone, o caçador de Zé Doidins.
Depois disso, o Zé Doidim aparece em “Parte IV (A Mente.Ira) – Zé Doidim”, em O Ciclo da Dê. Cadência (2002), e “Silêncio na Multidão”, em Cidadão Instigado e o Método Túfo de Experiências (2005). O encontro entre El Cabrone e Zé Doidim finalmente acontece em “Quando a Máscara Cai”, do disco Fortaleza (2015). São 20 anos em que os dois personagens nunca deixaram o universo de Catatau, nem perderam sua relevância. “As três músicas – “El Cabrone”, “Zé Doidim” e “Quando a Máscara Cai” – são da mesma época, mas só finalizei “Quando a Máscara Cai” com o disco Fortaleza, então é uma música que demorou muito pra mim”, conta Catatau. “Acho que eu gosto desse lugar de ficar voltando lá atrás, tentando entender, sabe? Às vezes, até as coisas vêm naturalmente, assim, as histórias simplesmente têm o tempo certo delas e, para mim, gravar “Quando a Máscara Cai” só teve sentido nessa época, não fazia sentido antes… Não sei explicar muito bem”.
O palco do duelo entre El Cabrone e Zé Doidim é São Paulo, mas também dentro da gente. Quando se mudou para a cidade, Catatau ia todas as noites para a Rua Treze de Maio, fazendo amizade com os músicos que tocavam por ali e de olho para ver se conseguia pegar um show mais alternativo no Café Piu-Piu. Chegava ao Bixiga de noite e voltava para casa às sete da manhã. Durante um ano, essa foi a receita de todas as noites. E, se a herança do Pessoal do Ceará já tinha sido soterrada em São Paulo, as notícias dos contemporâneos de Recife, com a emergência do Manifesto Manguebeat, em nada abalavam o preconceito contra nordestinos na cidade. “Não era fácil. Principalmente nessa época, em 1994, a gente fala da galera de Recife, do Manguebeat, mas quando eu cheguei em São Paulo não tinha nada disso, entendeu? Não tinha ninguém olhando pra aquelas coisas de Pernambuco ou do Ceará, era outro rolê. Era muito duro, a gente sofria muito preconceito todos os dias, então eu vivia uma situação, me virava e escrevia sobre o que tinha acontecido. O lance do Zé Doidim e El Cabrone era exatamente para falar sobre essas personalidades, que todos nós temos um lado bom e um lado ruim dentro da gente e eles ficam nessa luta constante”.
“Não era fácil. A gente fala da galera de Recife, do Manguebeat, mas quando cheguei em São Paulo não tinha nada disso. Não tinha ninguém olhando para aquelas coisas de Pernambuco ou do Ceará, era outro rolê. Era muito duro, a gente sofria muito preconceito. Eu vivia uma situação, me virava e escrevia sobre o que tinha acontecido. O lance do Zé Doidim e El Cabrone era para falar sobre essas personalidades, que todos nós temos um lado bom e um lado ruim e eles ficam nessa luta constante”

“Não lembro quantas cópias eu fiz desse EP, mas sei que eu fiz tipo um crowdfunding antes de existir a palavra crowdfunding”
Mas era uma questão de tempo até o movimento Manguebeat tomar a cena no sudeste. Ninguém passaria ileso à profusão sonora de Chico Science, Nação Zumbi, Mundo Livre S/A e Mestre Ambrósio. “Eu passei a tocar com todo mundo, com o Otto, Nação Zumbi, Karina Buhr, Mestre Ambrósio, muita gente de lá, o pessoal vinha para São Paulo e ficava lá em casa ou a gente se encontrava na Torre Dr. Zero. Eu sou contemporâneo da galera toda e, quando o EP saiu, eu até ficava irritado porque, como o Cidadão Instigado veio depois, todo mundo dizia que a gente era de Recife. Eu até brinco que eu virei pernambucano durante muitos anos porque ninguém acertava que a gente era de Fortaleza”, relembra.
Sonoramente, o ponto em comum dessa geração era uma busca por um rock genuinamente brasileiro. O EP de estreia do Cidadão Instigado reflete também a recusa de um essencialismo de um gênero musical, muito por conta da influência do guitarrista Carlos Santana e do disco A Noite do Espantalho. “Poeira” talvez seja a faixa em que a influência de Santana fique mais em evidência. A música, inclusive, foi a única que ganhou um videoclipe. Foi um pedido de pessoas que trabalhavam na MTV, conheciam Catatau e botavam muita fé no projeto. Queriam uma aposta. Pediram um clipe e ele escolheu “Poeira”, talvez a música menos comercial do disco, com um instrumental de quase sete minutos de duração em pura psicodelia jazzística latina. “Acho que era a única música que eles não queriam”, brinca Catatau. À época do lançamento, “Poeira” só passava na madrugada da MTV. Ao ser perguntado como conheceu as pessoas da emissora, Catatau só respondeu com um sorriso sincero e vago: “Ah, eu vivia atrás das coisas”.
Foram dois anos em São Paulo compondo, fazendo arranjos e gravando tudo em fitas cassete. Fernando Catatau criava as linhas de baixo, de guitarra e suspendia a frustração da espera no rodar das cassetes. Tentou montar uma banda em São Paulo e também nos oito meses que passou no Rio de Janeiro, mas só efetivamente conseguiu reunir um grupo quando voltou para Fortaleza, em 1996. Ao longo da história da banda, o Cidadão Instigado teve por volta de 30 formações. Nessa primeira, o grupo contou com a ajuda de Moisés Veloso, que cedeu seu estúdio e topou gravar parte do disco. A ficha técnica denuncia o tamanho do corre que foi colocar esse EP na rua, com seus seis anos de produção e gravação em quatro estúdios, dois no Ceará e dois em São Paulo. Uma vez gravado e mixado, faltava prensar.
“Cara, esse EP aí eu não lembro quantas cópias eu fiz, mas eu sei que eu fiz tipo um crowdfunding antes de existir a palavra crowdfunding”, brinca. “Na época, eu fiz vendas antecipadas com um recibo de papel mesmo, eu ia entregando de mão em mão, assinado. Foi uma parada muito louca, eu vendi quase tudo antecipado pra poder prensar. A galera acreditou e foi rolando assim. Eu fiz um show lá em Fortaleza e tudo, mas foi um passo a passo muito lento mesmo e, na realidade, o Cidadão Instigado sempre foi assim quando a gente foi independente; teve duas vezes que em que a gente teve apoio pra gravar o disco, mas no geral era do nosso bolso mesmo. Esse EP a gente conseguiu gravar graças ao apoio desse meu amigo que tinha o estúdio, mas a gente precisou levantar dinheiro, então a gente inventava qualquer coisa para poder fazer o CD”.