Ciclos e retornos de St. Vincent

Annie Clark antecipa os passos de seu próximo disco, comenta sobre o recém-lançado single “The Melting Of The Sun” e explica como Kurt Vonnegut, Joni Mitchell e a Rússia fazem parte de suas inspirações

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Fotos: Zackery Michael

“Queria que a guitarra soasse como uma guitarra. Passei por um longo caminho até conseguir retornar ao lugar onde isso parecesse novo e divertido”, explica Annie Clark sobre o processo de composição do disco Daddy’s Home, com lançamento marcado para 14 de maio. Em entrevista ao Monkeybuzz, St. Vincent declara que seu sexto álbum conta histórias a respeito de pessoas com defeitos e que estão fazendo o melhor que podem – “Quero contar histórias com humor e compaixão, sem julgamento”.

Os reencontros dão o tom do registro. A paleta sonora da produtora passeia pelos discos “que mais escutou em sua vida”: os favoritos da família e os grandes conhecidos do público. Entre eles, Stevie Wonder, Steely Dan, WAR, Joni Mitchell, Curtis Mayfield, Betty Davis, Rolling Stones e Pink Floyd.

A guitarrista explica: “Novas narrativas usando sons antigos. Não são as influências mais esotéricas, coisas que você nunca escutou, são os discos que todo mundo ama”. Estamos falando sobre os primeiros anos da década de 1970, após a explosão do Movimento Hippie e poucos antes do Punk e da Disco Music. A textura e o sentimento vintage foram conquistados após horas no estúdio Electric Lady, em Nova York, temperando a mistura com equipamentos analógicos e o apoio de uma banda formada por 10 pessoas. Pela primeira vez, Annie contou com o apoio de cantoras de backing vocal, entre elas, Kenya Hathaway, filha do cantor Donny Hathaway (1945-1979).

“Elas adicionaram profundidade e criaram uma conversa. Estou perguntando, e elas respondendo. Traz mais vida”, diz Annie. Acostumada a um approach DIY em estúdios caseiros, para ela se tornou lugar comum gravar e duplicar a própria voz. “Foi como eu cresci fazendo, mas queria que este disco fosse como uma conversa”, comenta sobre uma das mudanças em Daddy’s Home.

“Quero contar histórias com humor e compaixão, sem julgamento”

A artista se lembra do momento em que teve a epifania do que viria a definir a estética da sua nova era. Ao passear pelas salas do estúdio nova-iorquino com o amigo e coprodutor Jack Antonoff, começou a fantasiar sobre a história e o legado musical do espaço e da cidade. A primeira música a passar pelo teste foi “… At The Holiday Party”, e logo as coisas começaram a tomar forma.

Repetindo a dupla do premiado MASSEDUCTION (2017), Annie e Jack se debruçaram durante um ano nas 11 músicas inéditas, alternando sessões entre Nova York e Los Angeles, devido ao início da pandemia. Unidos pelo espírito Indie – do passado em comum, em que dividem a experiência de turnês “na cara e na coragem” e vans apertadas –, eles também se encontram nas referências e no approach no estúdio. “Ele é um dos meus melhores amigos, espero que ele fale o mesmo (risos). Ele torce muito para uma ideia, algo que te deixa animada na hora. Essa ideia é ótima, vamos terminar”, comenta Annie sobre Antonoff.

Além do alto astral entre os parceiros criativos, segundo St. Vincent, ambos estão tocando muito, como nunca antes. “Estou animada para que as pessoas percebam isso. Toco muita guitarra que soa como uma guitarra clássica. Ele toca bateria, baixo, Wurlitzer – e está destruindo. Animada para que as pessoas saibam que ele pode destruir”, fala com entusiasmo sobre o novo trabalho.

O duo estava tão em forma que foram necessárias algumas edições até chegar à lista final, o momento em que decidiram descartar as faixas não essenciais. Por exemplo, as baladas não resistiram ao corte final. “Ninguém ficaria chocado em saber que consigo escrever uma balada triste. Faz parte do processo de se fazer coisas. Você precisa ser implacável”.

No caso da artista, o exercício precisa ser diário para mostrar resultados. Então, sim, Annie aparece para trabalhar mesmo quando não está com vontade. “Não é sexy, é como malhar todos os dias. Fazendo o disco, os músculos estavam tão em sintonia que não queria parar. Ideias e mais ideias. Isso acontece porque você está escrevendo diariamente, é o resultado desse esforço, pelo menos na minha experiência”, declara sobre o caminho do disco.

No início de março, para estrear a nova estética, St. Vincent lançou o vibrante single “Pay Your Way In Pain”, a primeira faixa de Daddy’s Home, acompanhada de um videoclipe. A artista, munida de peruca curta loira e um conjuntinho pantalona e blazer verde, olha para a câmera, e dança sobre os holofotes estourados e as luzes de boate. Como um “blues para 2021”, a letra fala sobre o que vivemos hoje, a falta comida e dinheiro, e serve como introdução ao universo nostálgico, mas atualizado do álbum.

“As coisas estão desmoronando, mas todos nós queremos a mesma coisa:  estamos em busca de amor”, comenta sobre a inspiração da faixa inicial. O conceito do trabalho brinca com duas identidades: “A primeira é a Daddy’s Girl, meio namoradeira, do tipo meia calça rasgada e com os saltos na mão. A outra é o próprio pai, o Daddy – eu fui o pai no clipe”. Em ambos os casos, Clark representa aqueles que a família tradicional não quer por perto. Na faixa, ela fala: “So, I went to the park just to watch the little children / The mothers saw my heels and they said I wasn’t welcome”. (Fui ao parque olhar as criancinhas / As mães olharam para os meus saltos e falaram que eu não era bem-vinda). Imagina o escândalo no parquinho?

De uma forma ou de outra, a artista deseja provocar e também comunicar. No segundo single, “The Melting Of The Sun”, lançado em 2 de abril, canta uma homenagem a algumas de suas artistas favoritas – nomes como Marilyn Monroe, Joni Mitchell, Nina Simone e Joan Didion. Aquelas que não receberam e continuam sem os devidos créditos: “Pessoas geniais como Joni Mitchell. Não costumam chamar mulheres de gênias. Obrigada pelo o que vocês fizeram – e fazem – para deixar a minha vida como artista mais fácil, espero conseguir fazer isso para a próxima geração”.

“Pessoas geniais como Joni Mitchell. Não costumam chamar mulheres de gênias. Obrigada pelo o que vocês fizeram – e fazem – para deixar a minha vida como artista mais fácil, espero conseguir fazer isso para a próxima geração”

Como criadora de uma linha de guitarras, disponíveis em sete cores, acompanha o crescimento de mulheres interessadas em tocar o instrumento. A artista ainda se lembra de uma das primeiras músicas que aprendeu: “Smells Like Teen Spirit”. E como o mundo dá voltas, em 2014, Annie tocou “Lithium” com os remanescentes do Nirvana na 29ª cerimônia do  Rock and Rock Hall of Fame. Agora se você, como várias pessoas compartilham pelas redes sociais, está em processo de familiarização com os acordes, não se estresse. “Aprenda as músicas que você ama. Nem se preocupe com a teoria, se dedique às partes divertidas”, aconselha St. Vincent.

O movimento cíclico, entre a artista do passado e a do presente, também tem a ver com a sua própria trajetória como artista solo.  A história de Daddy’s Home começa em 2019, quando o pai da cantora foi solto da prisão após um período de 12 anos – ele se envolveu em fraudes no mercado de ações. A angústia da situação foi combustível para o seu terceiro disco, Strange Mercy (2011). Filha de pais divorciados e com oito irmãos, durante mais de uma década, St. Vincent, de certa forma, usou as calças da família.

Se questionada sobre como manter o bom humor frente a situações adversas, logo corrige que o humor está mais para ironia, do que para o otimismo. “Meio como o estilo do (escritor) Kurt Vonnegut (1922-2007).  Consigo reconhecer o absurdo da vida, somos complicados e simples. Consigo dar risada dos absurdos da minha própria vida”, justifica. Além de Vonnegut, entre os seus autores favoritos estão os estadunidenses James Baldwin, Susan Sontag, Maggie Nelson, Rebecca Solnit, Raymond Carver, Flannery O’Connor, e também o argentino Jorge Luis Borges.

“Há uma economia de ideias, em que algumas são melhores do que as outras. Algumas causam mais sofrimento, e outras menos. Quero entender quais são as ideias que causam menos. Sendo honesta, estou do lado do pragmatismo. Qual ideia vai causar menos sofrimento? Ok, vamos explorar isso”

Existe um assunto em especial que a artista se vê muito interessada há um tempo: a Rússia. “Como não tive uma educação formal, preciso contar comigo mesma para aprender coisas”, explica. Ela chegou a cursar produção musical na Berklee College of Music, em Boston, mas não se formou. Em especial dos russos, indica as peças de Anton Tchekhov, os contos de Fiódor Dostoiévski e Arquipélago Gulag, de Aleksandr Soljenítsyn.

Interessada no aspecto filosófico de como o governo e as sociedades são organizadas, ela reconhece a complexidade do tema e o paradoxo entre idealismo e pragmatismo. “Há uma economia de ideias, em que algumas são melhores do que as outras. Algumas causam mais sofrimento, e outras menos. Quero entender quais são as ideias que causam menos”, argumenta. Para Annie Clark, essa dualidade também pode ser vista entre realidade e ilusão. “Sendo honesta, estou do lado do pragmatismo. Qual ideia vai causar menos sofrimento? Ok, vamos explorar isso”.

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ARTISTA: St. Vincent

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