Cinco Décadas de Johnny Cash

Aproveitando que em março sai um disco inédito de Johnny Cash, repassamos sua obra a limpo

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Em 25 de março deste ano, mais um capítulo da história de Johnny Cash será escrito. É a data do lançamento de um disco inédito, gravado pelo cantor entre 1981 e 1984, que ficou esquecido nos arquivos da Columbia Records, atual Sony Music. Encontradas por John Carter Cash, filho de Johnny e June Carter, as gravações foram devidamente organizadas e as informações sobre o tal disco reunidas, sob o título Out Among The Stars. O lançamento dá continuidade a um mito, o do Homem de Preto, o trovador sombrio da dureza da vida, do fio implacável da ira divina, de um homem que aceitou sofrer – e sofreu.

A verdade é que nós não conhecemos Johnny Cash. A maioria de seus admiradores em países como o Brasil, por exemplo, o conhecem pelos trabalhos dos anos 90/00, as American Recordings, gravadas sob a orientação do produtor Rick Rubin. Alguns poucos se lembram da voz de barítono de Cash sobre o instrumental esparso do U2 em The Wanderer, música contida no álbum Zooropa, de 1993. Uma parcela maior julga conhecer Johnny através da bela interpretação de Joaquin Phoenix em Johnny And June, filme de 2006, dirigido por James Mangold, que contou um pouco da história do sujeito, sobretudo até seu casamento com June Carter, colega, amiga e musa, em fins dos anos 60. A verdade é que Cash é um americano legítimo, em toda a extensão do termo. Contraditório, patriota, obstinado, religioso, fã da família, dos amigos e capaz de lembrar de onde veio. De seus tempos difíceis em Kingsville, Arkansas, até sua morte em setembro de 2003 em Nashville, Tennessee, Cash escondeu sob sua persona um homem sensível, frágil e forte, uma combinação pouco usual.

Seu primeiro grande sucesso se deu na Sun Records, na mesma fornada de jovens ídolos da interseção entre rock e country, com Elvis Presley, Jerry Lee Lewis e Carl Perkins. Cash era o menos rocker, o mais próximo da figura mítica do contryman. Como as fronteiras estilísticas e os rótulos não existiam com muita clareza, era possível entender Johnny como um rockstar, algo que também não existia à época. Após seu tempo na Sun, Johnny foi para a toda poderosa Columbia Records, na qual ficou até meados dos anos 80. Nos anos 60, enquanto seu casamento com Vivian Liberto ia de mal a pior, Cash registrou discos clássicos de country, buscando uma abordagem maior do estilo como um fio condutor da própria história americana. Assim foram Bitter Tears (Ballads Of The American Indian) (1964), Orange Blossom Special (1965) e os dois volumes de Sings The Ballads Of True West (1965) e Mean As Hell (1966), discos em que delimitou um espaço definido para uma country music séria, importante e atrativa aos fãs, tudo ao mesmo tempo. Sua aproximação crescente com June Carter daria as caras em forma de um álbum, Carryin’ On, de 1967, em que a dupla gravou canções clássicas, como “Jackson”, que venceu o Grammy daquele ano e atrelou a presença de June nas mitológicas apresentações de Cash.

Johnny era um grande viciado em anfetaminas. Começou a tomá-las, ao lado de grandes doses de bebidas alcoólicas já no início da década de 1960 e teve sua condição de dependente químico se agravando ao longo dos anos. Seu casamento com Vivian Liberto não resistiu à combinação drogas-turnês-presença de June Carter. Mas os dois não engataram um relacionamento amoroso até que Johnny estivesse livre dos vícios e mais próximo de uma conduta religiosa e espiritual. June era católica fervorosa, Johnny nem tanto, apesar de praticar a mesma fé desde seus primeiros anos de vida.Ao mesmo tempo em que essas questões se resolviam, Cash teve uma ideia que reinventou sua carreira e trouxe seu grande personagem. Ao perceber que recebia grande quantidade de cartas de fãs presos, decidiu gravar um disco ao vivo na penitenciárias de Folsom, na California.

A Columbia não concordou com a ideia e Cash precisou peitar os executivos e assumir os riscos do fracasso, se ele existisse. Em 1968, Cash, sua banda, sua futura esposa e sua carreira estavam em jogo no palco armado na prisão de Folsom. Johnny deixou o roteiro de lado, interagiu com os detentos como se estivesse diante de qualquer plateia e desfilou um rosário de canções sobre morte, arrependimento, maldade e desesperança, indo direto ao coração dos presos. Cash, apesar da roupa preta que adotara (por conta de um luto permanente pelos arrependidos, punidos e injustiçados pela vida) e da expressão séria, nunca passou um dia em uma penitenciária. Suas (muitas) prisões sempre duraram uma noite na delegacia, seja por roubar flores num quintal fechado ou por porte de drogas. Mesmo assim, suas canções de uma América que sumia diante dos olhos dos oldtimers lhe garantiam o trânsito e o uso daquela indumentária solene.

O disco gravado em Folsom foi um sucesso avassalador. Crítica e público abraçaram aquele registro cru e Cash decidiu fazer outro álbum ao vivo na prisão, em 1969, dessa vez na famosa penitenciária de San Quentin, próxima à cidade de San Rafael, também na California. Com um respaldo que não ocorrera em Folsom, Cash foi capaz de fazer um disco mais bem acabado, melhor gravado, mas que vive à sombra do ineditismo de seu antecessor. Ambos os registros são clássicos da música popular do século XX e indispensáveis em qualquer discoteca. Em poucos meses, Cash estaria apresentando um programa na rede ABC. No ar entre junho de 1969 e março de 1971, o Johnny Cash Show recebeu gente como Joni Mitchell, Stevie Wonder, Bob Dylan, Louis Armstrong, entre outros, em performaneces ao vivo, com participação de Johnny, que também conduzia entrevistas com seus convidados. Com a carreira em ordem, livre dos vícios, casado, convertido e vivendo para a família, Johnny seguiu pela década de 1970 gravando discos ao vivo, de estúdio, um álbum para crianças, chamado The Children’s Album, cujo relançamento em CD do início dos anos 00 traz textos de John Carter Cash falando quão amoroso seu pai costumava ser, chegando a levar seus amigos na caçamba de uma pick up até o cinema de Nashville, comprando ingressos e sorvete para todos.

O tempo, este homem de preto a seu jeito, não perdoou Johnny e ele estava novamente viciado em barbitúricos ao final dos anos 70. O país não parecia mais tão interessado em ouvir country music, preferindo vê-lo ao vivo cantando os clássicos do que gravando novas canções, que não pareciam traduzir a realidade da América. Johnny, que fora amigo de presidentes, protestara contra o Vietnã, brigara pelos índios americanos e tudo mais, agora se via às voltas com sua condição de dependente químico e precisava de uma saída.

A crise do country também vitimou a carreira de outros cantores importantes, como Willie Nelson, Kris Kristoferson e Waylon Jennings. A ideia de montarem um supergrupo de mavericks da canção foi natural e veio à luz The Highwaymen, que registraram um belo disco homônimo e esquecido, em 1985. Com canções como a faixa título e versões pungentes como Against The Wind, de Bob Seger, o álbum falava sobre um Oeste que não era mais velho, convertido numa paisagem desértica, com potenciais cowboys trabalhando por salários miseráveis, mexicanos escorraçados pelas fronteiras e pouca gente esperando trens que, em tempos idos, seriam capazes de mudar destinos e selar vidas. The Highwaymen fez sucesso, chegou a resgatar Johnny de seu vício readquirido, mas seu ciclo na Columbia havia chegado ao fim.

Contratado pela Mercury, Cash não melhorou seu panorama. Viu o interesse por sua obra minguar à medida que a geração MTV parecia se importar com canções muito distantes de sua realidade. Johnny estava no ostracismo quando recebeu um convite vindo da Irlanda. Bono Vox, católico e fã de Cash, compusera uma canção para ele e gostaria que os vocais de The Wanderer fossem todos gravados por ele. Bono foi até a casa de Johnny em Nashville, conheceu sua família, visitou seu zoológico particular e teve seu convite aceito. A faixa não foi o carro chefe de Zooropa, o disco de 1993 do U2, mas serviu para mostrar que Cash estava vivo e em forma. Nenhuma grande gravadora se interessou, mas outro convite chegou até Nashville, dessa vez, enviado por Rick Rubin, que havia fundado a Def Jam Records e produzido gente como Run DMC, Slayer, Beatie Boys, Black Crowes, entre outros.

Johnny se interessou e teve início uma parceria que duraria até sua morte. Rubin propunha a gravação de um disco acústico, apenas com a voz e o violão de Cash, registrados na sala de sua mansão. Em pouco tempo, American Recordings recebia a aclamação mundial em pleno 1994. O repertório trazia canções próprias e versões de originais de artistas da época. O sucesso foi imediato e estabeleceu uma conexão forte entre o velho Homem de Preto e uma audiência formada por filhos dos filhos de seus fãs originais.

Ao todo Cash e Rubin registraram seis volumes de American Recordings, seguindo a mesma receita do original, sendo que os volumes V e VI foram lançados após a morte de Johnny, em 2003. Um ano antes, Cash celebrou seu 70º aniversário. Seu catálogo na Columbia foi relançado, devidamente remasterizado e com algumas faixas bônus. Por conta da ocasião, Cash ganhou uma coletânea na série de discos duplos The Essential, ao lado das maiores estrelas do catálogo da gravadora ao longo dos anos. Em muitas declarações de feliz aniversário contidas no encarte, de gente tão distinta quanto Paul McCartney, Elvis Costello, Al Gore, Willie Nelson e sua esposa, June, que morreria pouco tempo depois, as palavras de Bono chamam a atenção ao mencionar que “em comparação com Cash, todo homem é um fresco”. Johnny morreria quatro meses após sua esposa, por conta de diabetes e uma doença neurológica desenvolvida a partir de 1997, chamada Síndrome de Shy-Drager. Seu legado é um dos maiores da história da música do século XX e seu lugar é ao lado dos grandes mestres e gigantes da canção.

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ARTISTA: Johnny Cash
MARCADORES: Redescubra

Autor:

Carioca, rubro-negro, jornalista e historiador. Acha que o mundo acabou no meio da década de 1990 e ninguém notou. Escreve sobre música e cultura pop em geral. É fã de música de verdade, feita por gente de verdade e acredita que as porradas da vida são essenciais para a arte.