(Como) os shows têm que continuar?

Cinco personagens da cadeia produtiva musical refletem sobre a transformação que a pandemia causou na indústria

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Fotos: Helena Yoshioka/Monkeybuzz

Nada é tão único, ao pensarmos no universo musical, quanto a experiência de um show. É a oportunidade de vivenciar um momento que pode mudar completamente a concepção sobre um artista, para o bem ou para o mal. Quando nos propomos a assisti-los, instintivamente captamos as mais variadas características de uma apresentação. A afinação, o entrosamento dos diversos elementos da banda, a presença de palco, a desenvoltura ao se dirigir ao público. A acústica da casa, o acesso, o clima. São essas características que nos levam a pensar algo como “não esperava nada desse show e foi sensacional” ou “me arrependi de ter pagado o ingresso”. Ou diversas outras expressões menos comportadas, assim digamos. O fato é que um show é decisivo para muita gente fissurada em música. Do artista ao público, passando pelo contratante.

Além de ser de grande apreço do público, os shows englobam uma parcela significativa do lucro de artistas e de suas equipes. Como aconteceu com tantas outras esferas da vida, o novo coronavírus obrigou a indústria de shows a se reinventar, mesmo que de maneira provisória, para que o encontro entre público e artistas ainda pudesse acontecer.

Uma alternativa que tem sido constante e feito muito sucesso na quarentena são as lives. Desde as mais sofisticadas e controversas, com bandas completas e inúmeros patrocínios, como as sertanejas, a até as de cunho mais pessoal e intimista, como as de Teresa Cristina, que tem feito muito sucesso e aumentando seus “frequentadores” a cada nova edição.

Para entender o momento, descobrir como os agentes culturais estão se mobilizando e discutir as diversas complexidades que envolvem a questão, conversei com cinco personagens que estão envolvidos diretamente com o assunto: Suyanne Keidel, diretora executiva da Casa Natura Musical; Tiago Otto, Analista de Cultura do Departamento Nacional do Sesc; Paulo Papaleo, fundador do Mundo Pensante; Roberta Martinelli, apresentadora do Cultura Livre, da TV Cultura e do Som a Pino, na Rádio Eldorado; e Lucas Repullo, fundador do site e responsável pela curadoria e produção dos shows do Monkeybuzz.

 

Como a quarentena mudou a dinâmica desse universo?

“A gente vinha num ritmo crescente de shows, eventos corporativos e novos projetos na Casa (Natura Musical). Contando desde maio de 2017, foram mais de 400 shows de mais de 200 artistas diferentes e já estávamos nos programando para fazer muito mais em 2020. Vínhamos de um verão lindo, com uma sequência de shows esgotados e, nos meses seguintes, não seria diferente. O primeiro show adiado foi Elza Soares, que já tinha ingressos esgotados, assim como Vanguart, Letrux e Mart’nália, que estavam agendados entre os meses março e abril. Além disso já tínhamos a programação de maio, nosso mês oficial de aniversário, quase inteira fechada.

Suspendemos nossa programação física, tomando as medidas possíveis para preservar o máximo de empregos e salários da nossa equipe. Tivemos que rever algumas das nossas parcerias e adaptar nossos projetos para continuarmos atuando por meio dos nossos canais de comunicação on-line. Passamos a fazer lives em parceria com os artistas e outros convidados e também intensificamos a criação de conteúdo sobre música, sociedade, arte e cultura nas nossas redes sociais e newsletter. A nossa atuação nas redes, seja por meio dos posts ou das lives, está alinhada com o nosso objetivo enquanto casa de shows que é: ser mais que uma casa de shows. Somos um equipamento cultural que busca a construção de uma sociedade mais diversa, inclusiva, plural e sustentável, através do estímulo à preservação e à renovação da música e da cultura brasileira” – Suyanne Keidel, diretora executiva da Casa Natura Musical

“Acho que assim como toda a indústria, nós fomos pegos de surpresa. Estávamos em plena circulação com diversos projetos em todo o Brasil e quando, de fato, começaram a ser decretadas as quarentenas, tivemos que imediatamente repensar nossas atividades. Depois de projetos voltados para a área da saúde, surgiu a oportunidade de realizar algo para a cultura. A partir daí, idealizamos o projeto SESC Cultura ConVIDA, que visa apoiar toda a cadeia de artistas e agentes culturais que estão passando por dificuldade neste momento. Serão contemplados até 470 projetos de música, artes cênicas, artes visuais, audiovisual, literatura, infantis e patrimônio cultural, com investimento previsto de R$ 587.500,00. Com foco em trabalhos não divulgados nos grandes meios de comunicação, o projeto inclui ainda oficinas, debates e podcasts com profissionais que integrem o sistema produtivo da cultura”. – Tiago Otto, Analista de Cultura do Departamento Nacional do Sesc

“Foi um baque muito grande, eu diria até que é o maior da história para nós. Eu fundei o Mundo Pensante há 8 anos e posso te dizer que nunca passamos por nada parecido. Desde quando começou essa crise e ficou claro que não seria algo rápido, a gente se reuniu para quebrar a cabeça e poder de fato encarar esse baque e, aos poucos, algumas ideias foram surgindo. Começamos as fazer as festas on-line e delivery com o estoque de bebidas, já que estavam ali paradas. Como a gente tem um público muito identificado e fiel, aos poucos as pessoas começaram a participar mais, fazer doações, contribuir para a realização das festas. Outra questão importante é que não vivemos somente de shows e festas, mas também do centro cultural, com a idealização de cursos. Nós já tínhamos alguns deles disponíveis em plataformas on-line, mas, com a quarentena, passamos a disponibilizar todos. Isso aumentou muito a adesão, pois pessoas que antes não tinha a oportunidade de se matricular, por morar fora de São Paulo, agora poderia participar. Temos gente do Rio de Janeiro, do Paraguai e até de Tóquio participando”. – Paulo Papaleo, fundador do Mundo Pensante.

“Na rádio (Eldorado) eu já deixei alguns programas engatilhados e também alguns planejamentos com o meu produtor. Mas a ideia é que voltemos aos poucos, em etapas. Na TV Cultura, em um primeiro momento tinha já alguns programas (Cultura Livre) prontos e reprisamos outros. O que estamos fazendo agora é o Cultura Live, no Instagram, e temos lives programadas até o final de junho. Ainda não definimos, mas devemos voltar a gravar (o Cultura Livre) remotamente, após esse período das lives. Provavelmente será só comigo no estúdio e o artista de casa e, em um primeiro momento, talvez façamos algo como só voz e violão”. – Roberta Martinelli, apresentadora do Cultura Livre, da TV Cultura e do  Som a Pino, na Rádio Eldorado.

“2019 foi o ano em que o Monkeybuzz se estabeleceu de vez como produtor de shows. Somente no ano passado, igualamos o total de produções que havíamos feito de 2015 (ano em que trouxemos nossa primeira atração internacional para o Brasil) até 2018 e em 2020, pretendíamos manter esse número com pelo menos seis atrações. Começamos o ano com reuniões promissoras sobre patrocínio e em algumas das maiores agências de booking dos Estados Unidos, quando de repente todos os planos foram interrompidos por completo. Adiamos nossa atração já anunciada e cancelamos outras que já estavam fechadas e pagas. Felizmente, nosso negócio se divide entre as produções e o site, que é nosso foco desde 2012. Então pausamos por completo os shows, ampliamos o trabalho de jornalismo no site, inclusive com planos para diversificar a receita através do nosso conteúdo e estamos aguardando sinais mais concretos sobre quando teremos sinal de algum embrião de ‘normalidade’ para retomar a normalidade”. – Lucas Repullo, fundador do site e responsável pela curadoria e produção dos shows do Monkeybuzz.

BadBadNotGood e Arthur Verocai - 7 de novembro de 2019 (Foto: Laís Aranha/Monkeybuzz)

 O papel das lives e a sustentação financeira

“Neste momento em que é impossível que usemos o espaço físico da Casa (Natura Musical), foi preciso potencializar todas as iniciativas online e criar novas também. A Casa, em parceria com os artistas, fomentou dois projetos iniciais: o Sala da Casa e o Afetos. No primeiro, já se apresentaram nomes como Gustavo Bertoni (Scalene), Ale Sater (Terno Rei), Maria Beraldo, YMA, Fabriccio, Larissa Conforto (ÀIYÉ), entre outros nomes. O segundo, são conversas sobre música, arte e afetos entre dois convidados: desde artistas a pesquisadores, produtores e ativistas. Também estamos investindo na programação de lives com temáticas especiais. Já realizamos encontros on-lines especiais sobre o Dia do Choro, aniversário da Dona Ivone Lara, Semana da Língua Portuguesa e a Semana da África. Neste mês de junho, nossa programação do Sala da Casa e do Afetos é voltada especialmente ao mês do #OrgulhoLGBTQ+.” (SK)

“Percebemos que esta rentabilização está atingindo artistas (e seus produtores) de maneira desigual: grande parte da renda destes patrocínios estão sendo destinadas a artistas que já são consagrados do grande público (…). Se esses artistas “menores” já tinham dificuldade de se manter financeiramente apenas com a sua produção artística antes da pandemia, a situação ficou ainda pior com o alastramento da COVID-19 no país. Muitos deles dependem da performance ao vivo para se sustentarem e sustentarem toda a rede de trabalhadores que os acompanha: é nos shows que eles garantem sua renda por meio da venda do ingresso, de CD’s, vinis, camisetas e outros produtos de merchandising”. (SK)

“Nós somos financiados pela contribuição dos comerciantes, portanto, a questão dos ingressos de shows representa uma parcela muito pequena do nosso orçamento. Até porque, a grande maioria dos shows e espetáculos que promovemos são gratuitos e, mesmo aqueles que cobram taxas de ínfimas de entrada, são para pagar uma despesa mais pontual por ali. (TO)

“Quantos as lives que estão acontecendo com artistas mais renomados, eles já estavam contratados pelo Sesc. Houve ali uma adequação do para que os shows fossem feitos, mesmo de casa. No caso das unidades do Rio de Janeiro e de São Paulo, eles têm excelentes condições de infraestrutura aos artistas realizarem suas lives de casa e deve ser, sim, algo que veio para ficar. Porém, é importante falar que a continuidade delas não significa trocar uma coisa por outra, pois entendemos que os shows comportam uma grande quantidade de profissionais técnicos, como engenheiro de som, de luz, a produção e diversas outras categorias que vêm sofrendo com a situação. É por isso que o Sesc Cultura ConVIDA também abre oportunidades para esses profissionais técnicos apresentarem seus projetos, como uma oficina de técnico de áudio, por exemplo”. (TO)

“Como eu tinha comentado, nós quebramos a cabeça para ver como poderíamos sobreviver a esse baque. A gente tem os imóveis parados, o que certamente é uma despesa. Mas encontramos outras maneiras de nos sustentar financeiramente, com os cursos, as festas online e o delivery de bebidas. Mas já estamos com projeto de parcerias com artistas, como, por exemplo, o Bexiga 70. A ideia é que, além da entrega de bebidas, possamos entregar produtos personalizados de bandas parceiras e também do próprio Mundo Pensante. Pensamos também, porque não, em investir na infraestrutura para realizar as lives, pois não sabemos quando as pessoas vão se sentir confortáveis o bastante para sair de casa e frequentar um lugar com um certo número de pessoas. Então, é algo que podemos investir e ver como as plataformas podem se adaptar e nos ajudar”. (PP)

“Além dos programas que participo, eu tenho visto muitas lives. Eu até anoto os horários para poder acompanhar. Mas eu tenho comentado com os meus amigos o quanto é diferente de ir a um show. Quando você entra em um teatro ou casa de show, você chega, conversa com alguém, tem uma pausa para ir ao banheiro ou algo assim. Na live, a gente fica com o fone de ouvido focado, olhando só para o artista. É uma experiência completamente diferente”. (RM)

“Acredito que, financeiramente, há mais saídas para os artistas, propriamente, do que para as equipes deles. As marcas estão ajudando a quem já está estourado e eles naturalmente estão seguindo este caminho. Aos mais independentes restam os editais, mas, mesmo assim, é um meio muito competitivo. Saiu um do Itaú que foi muito criticado por dar espaço a pessoas que já tem bastante sucesso, por exemplo. Mas, no geral a gente vê os artistas se mexendo. O Fioti me disse que reuniu a equipe dele e que agora eles têm que virar comunicador também. É um processo. Quando comecei o Cultura livre há doze anos, eu pensava em como a coisa poderia virar na Internet, como atrair o público e fazer ser um produto rentável e, assim, construímos o programa”. (RM)

“Eu acredito que as lives realmente surpreenderam muita gente não apenas como alternativa de entretenimento e cultura, mas principalmente como uma das poucas alternativas de participação em uma experiência coletiva simultânea. Estão sendo importantes financeiramente para alguns músicos e produtores, mas também servindo para levar a experiência ao vivo para regiões do país em que muitos desses artistas não conseguiam chegar. No nosso caso, quando vimos a quantidade de boas iniciativas tomando forma, optamos por não nos tornarmos apenas ruído, além de percebermos o momento como de importante reflexão e calma para nós como veículo e produtora”. (LR)

E o retorno?

“Mesmo com uma vacina, não sei se voltaremos à normalidade no mundo dos shows, nem no geral. Isso considerando que a ‘normalidade’ é aquilo que vivíamos na pré-pandemia. Claro, ainda é o único jeito que conhecemos de viver, mas talvez tenhamos que repensá-lo. E isso também passa por repensar nossa cultura de consumir espetáculos de música — e nos aglomerar no geral.” (SK)

“Talvez, depois que tudo isso passar, tenhamos que viver em alerta constante. É um desafio. Sem dúvida, é o maior que já vivemos. Para uma reabertura futura da Casa, por exemplo, estamos acompanhando as medidas e protocolos sugeridos pelos órgãos responsáveis, elaborando os nossos estudos e viabilidades. Todo o cuidado será necessário e qualquer decisão deverá ser avaliada considerando a responsabilidade social que temos como um local de reunião e o bem estar de todos”. (SK)

“É muito difícil a gente ter um prognóstico, pois estamos em um momento de pouca clareza. Aqui no Sesc estamos iniciando uma conversa a respeito de um possível retorno, mas ainda não existe nenhum tipo de protocolo já formulado para ser seguido. Na minha opinião pessoal, acredito que em um primeiro momento as atividades sejam mais estabelecidas ao ar livre, depois com os teatros em capacidade muito reduzida e seguindo todos os protocolos de segurança.” (TO)

“Aqui, no Mundo Pensante, nós temos historicamente uma posição política muito clara. Nós não nos enquadramos no grupo de empresários que querem voltar as atividades a todo custo. Nós pensamos em saúde pública, que só retornaremos abrir nossos espaços quando houver uma vacina ou uma situação completamente segura a todos. Então, não sabemos quando vamos voltar, mas podemos pensar em possibilidades no futuro, como abrir os espaços com capacidade mais reduzida ou continuar as festas online. Porque imaginamos que nem todo mundo vai se sentir confortável tão cedo para frequentar uma casa de shows e submeter a aglomerações” (PP)

“Eu não consigo ver ainda (um retorno dos shows). Eu até perguntei para o Lenine esses dias, ‘Quando é que a gente volta?’, e ele me respondeu, ‘Roberta, a gente ainda está indo’. Mas acho que será uma volta gradativa, com as casas convidando os artistas para gravar em um primeiro momento, depois abrindo com capacidade bem reduzida e aos poucos aumentando.” (RM)

“É fato que as lives realmente vieram pra ficar e a gente vê muita gente se redescobrindo. A Teresa Cristina, por exemplo, está fazendo muito sucesso e conseguiu o primeiro patrocínio na vida depois de bastante tempo de carreira.” (RM)

“Impossível enxergar o futuro com clareza. Quando tudo começou, tínhamos um show agendado pra junho que bizarramente parecia possível. Depois começamos os diálogos para passá-lo pro segundo semestre, até que confirmamos para janeiro – data em que obviamente só acontecerá se tudo estiver seguro – o que para nós, infelizmente, não tem nenhuma relação de confiança com o que venha a ser anunciado legalmente. Voltaremos apenas quando a segurança da experiência estiver garantida de forma unânime.

Após acompanhar algumas experiências de reabertura em outros países nas últimas semanas, parece bem claro que não haverá uma linha clara em que poderemos dizer: a partir desta data, tudo voltará ao normal. Então tudo deve acontecer em etapas. Primeiro tudo parecerá minimamente seguro ‘oficialmente’, depois os primeiros artistas e produtores precisarão ser os pioneiros deste retorno, em seguida vamos avaliar a confiança do público em frequentar os eventos e só aí conseguiremos começar a formar a imagem deste novo cenário. Nossa postura no Monkeybuzz é completamente reativa. Estamos nos preparando estrutural e financeiramente para que quando seja seguro, a gente possa avaliar o terreno, entender as novas possibilidades e retomar nossas produções com a experiência mais redonda possível, nada será acelerado.” (LR)

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